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  • O CASO DE LADY SANNOX

    O CASO DE LADY SANNOX

    Arthur Conan Doyle
    (1859 – 1930)

    Todos conheciam as relações do ilustre médico Douglas Stone e de Lady Marion Sannox, figura brilhantíssima dos círculos sociais. Por isso mesmo, não faltou quem tecesse comentários quando se divulgou a notícia de que Lady Sannox havia-se recolhido a um convento e de que o famoso cirurgião Douglas Stone, o homem dos nervos de ferro, fora encontrado pelos criados, certa manhã, sentado em frente ao leito, rindo como um demente, abraçado a um almofadão… O seu grande talento se diluíra nas trevas da loucura.
    Douglas Stone era notável pelo sangue frio, precisão e equilíbrio com que realizava as mais difíceis operações. Entre os grandes cirurgiões de Londres, ele era dos que conseguiam maiores rendas em virtude de sua numerosíssima e distinta clientela. Sempre inclinado a divertir-se, sem tomar nada a sério, prendeu-se subitamente aos encantos de Lady Sannox. Entretanto, ela, se bem que para ele fosse a única, não o tinha, nem podia ter, na mesma conta.
    Lorde Sannox era um cavalheiro silencioso, reservado que, embora contasse apenas trinta e seis anos, parecia ter cinquenta. Afeiçoado ao cultivo das flores, amava a quietude do lar. Outrora a sua paixão favorita fora o teatro e até mesmo o explorara, como se explora um negócio qualquer. Foi então que conheceu a senhorita Marion Dawson, com quem contraiu matrimônio. Depois, perdeu o entusiasmo pelo teatro e passou a se dedicar apenas às orquídeas e aos crisântemos.
    Conheceria ele a vida frívola de sua esposa? Sofreria com resignação ou ignorava o que se passava? Todos faziam essa pergunta. E já não cabia dúvida: ele sabia até que ponto chegava o flerte de Lady Sannox e Douglas Stone. Os rumores da maledicência se espalhavam. As sociedades científicas já pretendiam riscar o nome de Douglas da lista de seus sócios.
    O idílio, entretanto, prosseguia.
    Uma noite, borrascosa e úmida, Douglas Stone esperava, nos seus aposentos, que chegasse a hora do seu encontro com Lady Sannox, combinado desde a véspera. Eram oito e meia e já se dispunha a pedir o seu coche, quando ouviu soar a campainha e ouviu, instantes depois, passos no corredor. O criado logo apareceu e anunciou:
    — Um cavalheiro deseja falar com o doutor. Parece-me que vem chamá-lo para atender a um doente… Aqui tem o seu cartão.
    Stone leu no quadrângulo de cartolina: “Hamil Alismyrna”. Disse ao criado:
    — Tenho que pedir-lhe que me dispense. Tenho um compromisso… Faça-o entrar, Jim. Preciso falar-lhe.
    O criado deu entrada a um homem baixo, raquítico, ligeiramente corcunda e cujo semblante contraído revelava acentuada miopia. A tez era escura, a barba e o bigode inteiramente negros e trazia nas mãos um turbante de musselina, com listras negras e roxas.
    — Boa noite, cavalheiro — disse-lhe Douglas. — Suponho que o senhor fala inglês, não é mesmo?
    — Sim, ainda que com certa dificuldade. Sou da Ásia Menor…
    — Deseja que eu o acompanhe a alguma parte?
    — Sim, doutor. Desejo que venha ver minha esposa.
    — Mas esta hora é demasiado tarde.
    — Porém, o caso é de urgência — replicou o turco. — Aqui tem o doutor cem libras pelos seus serviços e prometo que não durará uma hora…
    Douglas Stone mirou o punhado de moedas reluzentes que o estrangeiro lhe estendia e, em seguida, o relógio. Verificou que, com a demora de uma hora apenas, o seu encontro não ficaria prejudicado. Assim, resolveu não perder tão boa ocasião.
    — De que se trata? — perguntou.
    — De um caso muito triste. Já ouviu o doutor falar nas adagas dos almóadas?
    — Não.
    — Pois bem, são umas adagas muito antigas, de uma forma particular, com uma empunhadura parecida com as que vocês chamam de estribo. Sou comerciante de antiguidades e vim a Londres a negócios, devendo regressar a Esmirna na semana vindoura. Entre as curiosidades que eu trouxe, há uma daquelas armas…
    — Permita-me recordar-lhe que eu tenho um compromisso e que é necessário dispensar os detalhes e limitar-se ao fato, que é apenas o que me interessa…
    — É de suma importância o que estou relatando. Acontece que minha esposa desmaiou no quarto em que tenho as mercadorias e, caindo, feriu-se no lábio com essa maldita adaga.
    — Compreendo. Quer o senhor que eu faça a sutura da ferida…
    — Não. O caso é mais grave. A adaga está envenenada.
    — Envenenada?
    — Sim. E não se sabe se existe algum contraveneno. As pessoas feridas dormem, em profundo sono, durante trinta horas… E depois, a morte…
    — Mas, se não há cura, por que razão quer pagar-me tanto dinheiro?
    — Com remédios nada se conseguirá. Mas meu pai costumava dizer: “Se a ferida foi no dedo, é necessário cortá-lo”. Teremos de usar o bisturi. O veneno somente depois de muitas horas se espalha no organismo. Nas primeiras, fica concentrado no lugar da ferida. Imagine, porém, o lugar em que se feriu minha esposa… No lábio. É terrível!
    — Mas, se é a única salvação, é melhor perder o lábio do que a vida — replicou Stone, que, tomando a sua caixa cirúrgica, se pôs a caminho com o turco, que deixara um automóvel à porta.
    Quando chegaram à casa do mercador, uma velha, que trazia uma lâmpada na mão, veio abrir a porta.
    — Como está? — perguntou com angústia o comerciante. —Já falou?
    — Não, senhor — respondeu a velha. — O seu sono continua tão profundo como quando a deixou…
    E ambos seguiram a velha, entrando em um aposento de aspecto oriental, cheio de figuras grotescas, de utensílios primitivos, de armas exóticas, iluminado por uma débil lâmpada de azeite. Deitada sobre um sofá, estava uma mulher, com o rosto coberto pelo yashmak, o véu que as mulheres turcas costumam usar. A parte inferior do rosto estava descoberta e o médico pôde ver, no lábio inferior, uma pequena — mas profunda — incisão.
    — Peço permissão para que ela conserve o yashmak — disse o turco —, pois os nossos costumes religiosos impõem às nossas mulheres esse dever.
    O médico nem sequer respondeu. Para ele, ali não havia uma mulher, mas apenas um caso médico. Auscultou-a e, como não notasse sintoma algum, declarou que achava que poderia adiar a operação. O turco, porém, novamente o advertiu de que o veneno era mortal e que só a operação imediata poderia salvá-la.
    — O senhor assegura, por experiência própria, que é indispensável a operação? — indagou Stone, levado pelo escrúpulo profissional.
    — Juro por tudo quanto há de mais sagrado!
    — O rosto dela, todavia, vai ficar horrivelmente desfigurado.
    — Estou certo de que a sua boca já não inspirará o desejo de um beijo… Mas é necessário… É imprescindível…
    Ao ouvir esse brutal comentário, Douglas Stone voltou-se bruscamente. Não era ocasião para entrar em discussões. Apanhou os seus instrumentos cirúrgicos e aproximou a lâmpada. Sob o véu, apenas se distinguia o brilho amortecido dos olhos da narcotizada. O médico quis fazer uso do clorofórmio. O turco, porém, se opôs, declarando que o veneno da adaga por si só já produzia uma espécie de quase letargia. Douglas tomou o bisturi e, com três rápidos cortes, seccionou o lábio inferior da enferma.
    A mulher, soltando um grito de terror, ergueu-se do sofá. O véu caiu. E, apesar do sangue que lhe banhava o rosto, dolorosamente mutilado, Stone verificou que conhecia intimamente aquela mulher.
    Olhou para o homem que o levara àquela casa sombria. Esse, rapidamente, arrancou a barba e o bigode. Em vez do turco de Esmirna, era Lorde Sannox quem diante dele aparecia. Douglas Stone quedara mudo e imóvel, pela surpresa assombrosa. A mulher, soluçando, deixou pender a cabeça maravilhosamente loura. E Lorde Sannox sorria…
    Foi ele quem primeiro falou:
    — A operação era, na realidade, indispensável a Marion. Não física, mas moralmente. O doutor não concorda comigo?
    Douglas Stone não respondeu. Não ouvia nada.
    — Há tempos eu queria dar-lhes um pequeno castigo — prosseguiu Lorde Sannox. — Saiu tudo às mil maravilhas… Só lastimo que o doutor não tivesse a perspicácia de verificar que a ferida não foi praticada com uma adaga, mas com o meu anel sinete…
    Douglas Stone, nesse momento, desatou a rir, a soltar enormes gargalhadas. Lorde Sannox imediatamente se pôs sério e abandonou o quarto, sem fazer ruído.
    — Espere aqui até que a senhora desperte — disse o falso turco à velha que lhe abriu a porta.
    E, chegando à rua, ordenou ao chofer:
    — John, leve primeiro o doutor à sua casa. Creio que você terá de arrastá-lo pela escada abaixo. E diga aos seus criados que o “caso” o excitou um pouco…
    — Está bem, senhor…
    — E depois levará Lady Sannox para casa.
    — E o senhor, Lorde Sannox?
    — Ah! O meu endereço passará a ser o Hotel di Roma, em Veneza… Mandem para lá a minha correspondência.
    E, ajustando o turbante à cabeça, recomendou:

    — E diga ao Stevens que não se esqueça de mandar orquídeas à exposição de floricultura…


    Fonte: Texto traduzido e condensado de “The case of Lady Sannox”, de Arthur Conan Doyle, por autor desconhecido do séc. XX. Fonte: “A Noite Ilustrada”, edição de 8 de julho de 1931.
  • O VAMPIRO


    O VAMPIRO

    Anônimo do século XIX

    Há duzentos anos, numa aldeia da Boêmia, existia uma bela jovem pertencente a uma família de um lavrador. De nome Maria, tinha um bom coração. Amava os pais, aos quais, desde a tenra infância, tratava de ser útil, encarregando-se voluntariamente de várias atividades domésticas. Por este motivo, também era estimada da sua família e da gente do povoado. As mães a citavam como um exemplo de amor filial, e de um procedimento digno de toda a consideração.

    Maria tinha 18 anos quando chegou à sua aldeia um estrangeiro jovem e de boa presença, parecendo ser de alguma cidade, em razão do seu vestuário; pois, ainda que simples, era elegante, e as suas maneiras afáveis e corteses diferiam muito das que se usavam na aldeia. Maria, sagaz como era, não deixou de notar esta diferença e, desde esse momento, uma sorte funesta pareceu adejar sobre o seu destino.

    O estrangeiro estabeleceu sua morada junto à casa dos pais de Maria, e, desta maneira, muitas vezes a encontrava. Não deixava de olhar para ela de uma maneira singular e tão estranha que fez cismar a pobre moça. Maria nunca tinha sentido, da parte dos moços da aldeia, quando para ela olhavam, a influência ou atração que sobre ela exercia o jovem estrangeiro, o que lhe deu, depois, desejos de chorar e, algumas vezes, de rir, sem saber por quê, sofrendo fortes palpitações do coração.

    Passado algum, tempo, Hantz (era este o nome do estrangeiro) se animou a falar com a linda jovem e, desde então, ela não podia dormir. E se, devido ao cansaço, fechava os olhos, terríveis sonhos vinham agitar-lhe o sono. Era sempre o estrangeiro quem neles figurava, mas de uma maneira bem diferente: às vezes aparecia-lhe como um anjo do céu enviado para lhe oferecer a felicidade; outras vezes, como um demônio do inferno, que subia à terra expressamente para causar-lhe a perdição e levá-la consigo para as penas eternas. Então, a infeliz Maria lutava com esta horrível visão. Acordava sobressaltada, pálida e inundada de suor glacial; depois, era atacada de febre que lentamente lhe fazia desbotar as faces e os lábios, seguindo-se profunda tristeza que a consumia, ao mesmo tempo que angústias mortais lhe devoravam o coração. Enfim, Maria, pálida, magra e triste, já não parecia a mesma. Pobre moça!

    Por muito tempo, ela lutou contra o seu destino. Encomendou novenas, rezou, invocou os santos, jejuou semanas inteiras. Nada disto, porém, lhe valeu, e a infeliz julgou que o céu a tinha abandonado e caiu em desespero.

    Certa tarde, ao cair do sol, ela vinha sozinha da vila próxima. Andava depressa para que a escuridão a não apanhasse no caminho, visto que uma nesga de lua já nascia por sobre os morros distantes. Porém, lançando a vista para um pinheiral próximo do caminho, pareceu-lhe que um enorme fantasma lhe seguia os passos. Vislumbrou um misterioso espectro, que olhava para ela com olhos em chamas. Cheia de pavor, pôs-se a examinar, trêmula, aquela entidade fantástica. Procurando distinguir na escuridão aqueles contornos confusos, conseguiu ver bem distintamente que tinha dois chifres na cabeça, a língua vermelha e comprida, garras nas pontas dos dedos e os pés fendidos. Assustada, continuou a andar aceleradamente, conservando na imaginação a desmedida e horrenda figura que lhe aparecera.

    De repente, ouviu uma voz suave que a chamava, e voltando-se, viu Hantz junto a si.

    Ele disse, então:

    —Maria, não te assustes! Não sabes que eu te amo, e que só desejo te ver feliz?

    Neste momento, a lua cheia flutuava sobre o cume da montanha vizinha e, com a sua luz, a infeliz Maria já não via o horrendo fantasma que lhe parecera ter língua vermelha, grandes orelhas e garras.

    A sorte já pesava sobre o seu destino. Perdeu o juízo e respondeu:

    — Hantz, eu não estou com medo, e eu creio….

    Hesitou, e nada mais pôde dizer.

    Hantz, contudo, percebeu a sua perturbação e disse-lhe:

    — Maria, eu bem sei que tu me amas, e deves ficar certa que, pelo céu ou pelo inferno, seremos felizes.

    A estas palavras, a jovem estremeceu, e continuou a caminhar para sua casa acompanhada pelo estrangeiro, que. três dias depois, a pediu em casamento.

    Seus pais, sabendo que Maria estava disposta a casar-se com aquele moço, cujo comportamento era exemplar, consentiram, e dali a 25 dias, a pedido do noivo, foi o casamento celebrado exatamente quando era lua cheia.

    Maria, depois do casamento, parecia muito satisfeita. Todavia, ainda vivia incomodada, porque começou a ter sonhos horrorosos pela preocupação que tinha, motivada pela blasfêmia de Hantz, e por ele ter retardado o seu casamento até o dia da lua cheia. Isto lhe causava preocupações.

    De repente, Hantz ficou triste, uma palidez mortal lhe cobriu o rosto e perdeu inteiramente as forças. Não quis consultar um médico, e quando a pobre moça lhe perguntava, chorando, qual era a sua doença, a resposta era um sorriso. Enfim, depois de constante padecimento, antes da lua cheia, Hantz morreu.

    A sua morte foi muito sentida pelos parentes de Maria que, pela sua parte, ficou inconsolável por espaço de três dias, findos os quais, com admiração de todos, ela pareceu quase aliviada das suas penas.

    Tinham já passado três ou quatro meses sem que Maria desse sinal algum de padecimento. Empregava-se no serviço da casa, seguindo a sua marcha antiga, exceto, porém, em ir à missa e em rezar, o que seus pais muito estranhavam. Nunca lhe ouviram falar em Hantz, e isto provava que ela já o havia esquecido. Mas, quando mal esperavam, ela começou a emagrecer e a tornar-se pálida a ponto de a considerarem tísica, visto que não apresentava sintoma de outra moléstia.

    Sua mãe observou, ou pelo menos assim lhe parecia, que ela, ao levantar-se da cama, estava mais débil e mais abatida do que de tarde, principalmente no tempo da lua cheia. Incitada pelos cuidados de mãe, fez um pequeno buraco na porta do quarto de Maria, a fim de se convencer pelos seus olhos e ouvidos se a sua filha querida rezava de noite, ou, enfim, qual era o motivo do seu padecimento. Durante as primeiras noites em que espiou pelo buraco da porta, não observou coisa alguma extraordinária, e já as suas desconfianças se haviam desvanecido quando, uma noite…

    Seriam onze horas e três quartos. Maria já se tinha deitado e a lua, saindo de uma nuvem, lançava os seus argênteos raios que, passando pela janela aberta, iluminavam o quarto. Então a mãe ouviu um gemido, depois uma voz débil, que dizia, sem dúvida sonhando:

    — Oh, Hantz! Oh, meu amigo! Eu sou a tua esposa querida. Eu te amo…. Oh, sim! Eu te amo…. E, não obstante, me parece que as tuas caricias me fazem gelar o coração e me matam….

    Depois, ela deu um doloroso e longo suspiro, e a mãe nada mais ouviu. Então olhou pelo buraco da porta e viu….

    Qual não foi o terror que invadiu a sua alma! Esfregou os olhos, beliscou os braços para se capacitar de que não sonhava, e viu…. um vampiro!

    Ela logo o reconheceu: era Hantz. Não aquele Hantz pálido, magro e descarnado pela enfermidade como estava no dia em que morreu, mas um Hantz robusto, fresco e vermelho como o tinha visto no tempo da sua perfeita saúde. Aquele espectro era Hantz, morto e enterrado no cemitério da aldeia havia mais de três meses….

    Ela viu o cadáver redivivo em pé, junto à cama da sua filha e debruçado sobre ela, aplicando-lhe os lábios ao pescoço. Viu uma gota de sangue sobre o pescoço de Maria, que corria dos lábios trêmulos do espectro.

    A pobre mulher, vendo isto, deu um grito espantoso e caiu desmaiada. Ao estrondo da queda, o pai de Maria, e toda a gente da casa acudiram. Levantaram a infeliz mãe, arrombarão a porta do quarto e nele só acharão o inanimado corpo de Maria!

    Chamou-se o médico imediatamente. Este, porém, depois de fazer o necessário exame, declarou que não havia meio algum de lhe restituir a vida, porque não tinha uma só gota de sangue no corpo. E, por duas nódoas roxas que se avistavam no pescoço, iguais às que deixam as sanguessugas, conheceu-se a verdade do médico.

    A mãe da infeliz Maria recuperou a consciência, mas, como contava o que tinha visto pelo buraco da porta, todos julgavam que estava louca.

    Muitos dias depois deste acontecimento, a linda Joanna, vizinha e amiga dos parentes de Maria, foi atacada da melancolia em tudo igual à de que padecia a sua camarada. Tratou-se de espiar da mesma maneira por um buraco que se fez na porta, e viu-se o fantasma de Hantz a chupar-lhe, também, o sangue das artérias do pescoço, como asseverara a mãe de Maria.

    O padre foi imediatamente chamado, e Joanna lhe confessou que, havia algum tempo, o espectro a visitava todas as noites, principalmente pela lua cheia, mas que nenhum mal lhe fazia. Contudo, como no pescoço já se divisassem duas nódoas roxas, o padre lhe rezou os exorcismos. Mas de nada valerão essas orações da Igreja: Joanna morreu poucos dias depois, sem lhe ficar no corpo uma só gota de sangue.

    Igual fim tiveram mais cinco moças do vilarejo. Então o povo, amotinando-se, tomou o expediente de desenterrar o corpo de Hantz, a fim de ver se poderia cessar tão horroroso mal. Todavia, como a exumação realizou-se durante a lua cheia, achou-se a sepultura vazia.

    Um doutor tanto pensou, tantos tratos deu ao juízo, que descobriu que os vampiros somente tinham o poder infernal de sair das suas covas durante a lua cheia. Conseguintemente, esperaram pelo minguante, cuja chegada se esperou com impaciência. E quando a lua apresentou uma diminuta parte do seu disco, correrão então a abrir a sepultura, e nele acharão o tal facínora que sossegadamente dormia com o sorriso nos lábios e com todas as aparências da melhor saúde. Atravessaram-lhe o ventre com uma estaca com tão boa vontade que nunca mais se levantou. Foi queimado e as cinzas lançadas ao vento. Este exemplo intimidou, sem dúvida, os outros vampiros daquelas terras, porque nunca mais se ouviu falar em semelhante flagelo.

  • Highlander – O Guerreiro Imortal | Uma análise psicológica

     

        Olá, pessoal! Hoje eu quero compartilhar com vocês uma análise psicológica sobre o filme Highlander – O Guerreiro Imortal, um clássico dos anos 80 que mistura ação, fantasia e aventura. O filme conta a história de Connor MacLeod, um guerreiro escocês que descobre ser imortal após sobreviver a um ferimento fatal em uma batalha contra o terrível Kurgan, seu maior inimigo. Ao longo dos séculos, Connor aprende a viver e a lutar como um imortal, sob a orientação do sábio Juan Sanchez Villa-Lobos Ramirez, interpretado pelo lendário Sean Connery. Mas ele também sofre as consequências de sua condição, como a solidão, o luto e o medo de perder sua humanidade.


    O filme explora vários temas psicológicos interessantes, como o sentido da vida, a morte, o amor, a identidade e o poder. Connor MacLeod é um personagem complexo e contraditório, que busca um propósito para sua existência eterna, mas também anseia por um fim para seu sofrimento. Ele ama profundamente sua esposa Heather, mas sabe que ela vai envelhecer e morrer enquanto ele permanece jovem e imutável. Ele se apega à sua origem escocesa, mas também se adapta às diferentes épocas e culturas que atravessa. Ele se sente responsável por impedir que Kurgan obtenha o prêmio final dos imortais, que seria o controle sobre toda a humanidade, mas também teme enfrentá-lo em um duelo mortal.


    Kurgan, por outro lado, é um personagem cruel e sádico, que não tem escrúpulos em matar seus adversários e tirar proveito de sua imortalidade. Ele representa o lado sombrio da natureza humana, que busca o poder a qualquer custo e não se importa com os sentimentos alheios. Ele é o oposto de Connor, que apesar de ser um guerreiro, tem um senso de honra e compaixão. Kurgan é movido pela raiva, pela inveja e pela ambição, enquanto Connor é movido pelo amor, pela esperança e pela coragem.


    O filme também mostra como os imortais lidam com sua condição de forma diferente. Alguns se isolam do mundo, outros se envolvem com as causas humanas, alguns se tornam amigos, outros se tornam inimigos. Os imortais têm uma conexão especial entre si, que é sentida quando eles se aproximam uns dos outros. Eles também têm uma experiência única quando eles matam outro imortal, pois eles recebem uma descarga de energia chamada de “quickening”, que lhes transfere os conhecimentos e as habilidades do imortal derrotado.

    A passagem do tempo e a certeza de que todos que ama iram morrer e apenas MacLeod irá permanecer vivo é algo que afeta a personalidade e a própria sanidade do personagem. Com o passar dos anos podemos perceber que ele é afetado pelas esperiências vividas, como a guerra, a era medieval e todos que ele perde. Tudo isso o torna uma pessoa amargurada e fechada para os relacionamentos. Podemos entender que Connor se torna depressivo deviso aos acontecimentos e a impossibilidade de morrer se torna uma maldição para ele, que no fim deseja o embate final contra Kurgan, mas sua missão de impedir que o vilão vença e ganhe o grande prêmio gera um conflito interno no personagem. Se a pressão não é o bastante para minar a mente do imortal, as perdas pessoais fazem ele se afundar cada vez mais na paranóia e tristeza, podemos ver isso na relação com o interesse amoroso dele no tempo presente. No caso ele não consegue se entregar de fato ao sentimento que ele possue por ela, pois as feridas do passado ainda se fazem presentes em sua memória.

    Podemos nos colocar em seu lugar e pensar: Se fossemos imortais, essas dores seriam ou não algo que faria você se fechar para o mundo?

    Podemos tirar muitas ideias, trazer para nossa realidade e pensar em formas de melhorar nossa própria vida tendo como base os insights que podemos ter ao assistir o filme.


    Highlander – O Guerreiro Imortal é um filme que nos faz refletir sobre questões existenciais e morais, mas também nos diverte com cenas de ação emocionantes e uma trilha sonora incrível da banda Queen. É um filme que marcou uma geração e que continua sendo relevante até hoje. Se você ainda não assistiu, eu recomendo que você confira esse clássico!

  • O dossiê Duas caras


        Olá, leitores! Hoje eu vou compartilhar com vocês um dossiê sobre o personagem duas caras, um dos vilões mais icônicos do universo do Batman. Vocês sabem quem ele é, como ele se tornou assim e quais são seus objetivos? Vamos descobrir juntos!


    O duas caras era originalmente Harvey Dent, um promotor público de Gotham City que lutava contra o crime organizado. Ele era um aliado de Batman e do comissário Gordon, e tinha uma reputação de ser incorruptível e justo. Ele era casado com Gilda Dent, uma artista plástica que o amava profundamente.


    No entanto, sua vida mudou drasticamente quando ele foi vítima de um ataque do mafioso Sal Maroni, que jogou ácido em seu rosto durante um julgamento. O ácido deformou metade do rosto de Dent, deixando-o com uma aparência horrível e assustadora. Além disso, o trauma psicológico fez com que ele desenvolvesse um transtorno dissociativo de identidade, criando uma segunda personalidade maligna e violenta que se opunha à sua personalidade original.

    A partir daí, ele se tornou o duas caras, um criminoso obcecado pela dualidade e pelo acaso. Ele passou a tomar todas as suas decisões baseadas em uma moeda que ele carrega consigo, que tem um lado normal e outro arranhado. Se o lado normal cair para cima, ele segue sua personalidade boa; se o lado arranhado cair para cima, ele segue sua personalidade má.


    O duas caras tem como objetivo principal destruir a ordem e a justiça de Gotham City, que ele considera hipócritas e falsas. Ele também tem uma relação de amor e ódio com Batman, que ele culpa por não ter impedido o ataque que o desfigurou, mas também reconhece como seu antigo amigo e aliado. Ele é um dos inimigos mais perigosos e imprevisíveis do homem-morcego.

    você sabia que o Duas-Caras foi um dos primeiros aliados do Batman? Antes de se tornar vilão, Harvey Dent trabalhou em parceria com o Cavaleiro das Trevas para combater o crime organizado em Gotham. Ele também foi amigo de infância de Bruce Wayne, o que torna sua rivalidade ainda mais trágica. Outra curiosidade é que o Duas-Caras foi responsável por encerrar a era do crime organizado em Gotham, quando matou o chefão Carmine Falcone com um tiro na cabeça. A partir daí, os criminosos fantasiados tomaram conta da cidade.


    O Duas-Caras também tem uma personalidade dividida, que se manifesta em sua aparência e em seu comportamento. Ele usa um terno de duas cores, uma metade preta e outra branca, para simbolizar sua dualidade. Ele também tem uma obsessão pelo número dois, que aparece em seus crimes e em seus codinomes. Por fim, ele usa uma moeda de dois lados para tomar decisões, deixando sua sorte nas mãos do destino. Essa moeda era originalmente de lados iguais, mas depois do acidente um lado ficou queimado, criando um contraste entre vida e morte.

    Ele já protagonizou várias histórias memoráveis nos quadrinhos, como O Longo Dia das Bruxas e Silêncio. E sem esquecer também do filme O Cavaleiro das Trevas, onde ele disse uma frase famosa: “Ou você morre herói ou vive o bastante para virar vilão”.

    Espero que vocês tenham gostado deste dossiê sobre o personagem duas caras. Ele é um dos meus favoritos, pois mostra como a vida pode mudar alguém de forma radical e trágica. E vocês, o que acham dele? Deixem seus comentários abaixo e até a próxima!

  • O quê aconteceu com os fliperamas?

     

        Você se lembra dos fliperamas? Aqueles lugares cheios de máquinas de jogos eletrônicos que faziam a alegria da garotada nos anos 80 e 90? Pois é, eles praticamente desapareceram do mapa nos últimos anos, e muita gente se pergunta o que aconteceu com eles. Neste post, vou contar um pouco da história dos fliperamas no Brasil e no mundo, e explicar os motivos que levaram ao seu declínio.


        Os fliperamas surgiram nos Estados Unidos na década de 70, como uma forma de entretenimento barata e divertida. Eles eram instalados em bares, lanchonetes, shoppings e outros locais públicos, e atraíam pessoas de todas as idades que queriam jogar os mais variados tipos de jogos, desde os clássicos como Pac-Man e Space Invaders até os mais modernos como Street Fighter e Mortal Kombat. Os fliperamas eram um sucesso tão grande que chegaram a faturar mais de 5 bilhões de dólares por ano nos EUA.


    No Brasil, os fliperamas chegaram um pouco mais tarde, por volta de 1980, mas também fizeram muito sucesso. Eles eram chamados de “arcades”, “videogames” ou simplesmente “fliper”, e se tornaram uma febre entre os jovens brasileiros. Os fliperamas eram o lugar ideal para se divertir com os amigos, competir pelos melhores scores, conhecer novos jogos e desafiar os adversários. Os fliperamas também eram uma forma de escapar da realidade difícil do país, que enfrentava uma crise econômica e social. E também eram a forma de crianças jogarem um bom game com o dinheiro do troco do refrigerante.


        Mas o que aconteceu com os fliperamas? Por que eles deixaram de existir? Bem, não há uma resposta única para essa pergunta, mas podemos apontar alguns fatores que contribuíram para o seu fim. Um deles foi o avanço da tecnologia dos consoles domésticos, que passaram a oferecer jogos cada vez mais sofisticados e realistas, com gráficos e sons superiores aos dos fliperamas. Além disso, os consoles permitiam jogar no conforto de casa, sem precisar gastar fichas ou enfrentar filas.


    Outro fator foi a mudança no perfil dos consumidores de jogos eletrônicos. Os jovens que cresceram jogando nos fliperamas se tornaram adultos com outras prioridades e interesses, e deixaram de frequentar esses lugares. Ao mesmo tempo, as novas gerações de jogadores se acostumaram a jogar online, através da internet, interagindo com pessoas do mundo todo. Os fliperamas perderam o seu apelo social e cultural, e se tornaram obsoletos.


    Por fim, outro fator que afetou os fliperamas foi a repressão legal e policial que eles sofreram em alguns países. No Brasil, por exemplo, muitos fliperamas foram fechados ou proibidos por causa de leis que associavam os jogos eletrônicos à violência, à criminalidade e à exploração infantil. Muitos donos de fliperamas foram multados ou presos por supostamente incentivar o vício e a delinquência entre os jovens.


    Hoje em dia, os fliperamas são raros e quase extintos. Eles só sobrevivem em alguns locais nostálgicos ou especializados, que tentam preservar a memória e o legado desses lugares mágicos. Os fliperamas fazem parte da história dos jogos eletrônicos e da cultura pop, e merecem ser lembrados com carinho por todos aqueles que um dia se divertiram com eles.

  • Tributo a Rita Lee | O adeus da mutante

        


        Rita Lee foi sem dúvidas uma das maiores artistas da música brasileira, com uma carreira que abrange mais de cinco décadas e diversos estilos, do rock à MPB, passando pelo pop e pela psicodelia. Neste post, vamos prestar um tributo a essa cantora, compositora e instrumentista que marcou gerações com suas letras irreverentes, sua voz marcante e sua personalidade única. Vamos relembrar cinco de suas músicas inesquecíveis, que mostram um pouco da sua versatilidade e do seu talento. Acompanhe!


    1. Ovelha Negra (1975)

    Uma das canções mais famosas de Rita Lee, Ovelha Negra fala sobre a rebeldia e a liberdade de ser diferente em uma sociedade conservadora. A música foi lançada no álbum Fruto Proibido, da banda Rita Lee & Tutti Frutti, e se tornou um hino para os jovens que se sentiam excluídos ou incompreendidos. Com uma melodia simples e um refrão pegajoso, Ovelha Negra é um clássico do rock nacional. Confira o vídeo:


    2. Lança Perfume (1980)

    Outro sucesso absoluto de Rita Lee, Lança Perfume é uma música que mistura elementos do pop, do disco e do samba, criando uma sonoridade contagiante e dançante. A letra faz referência ao lança-perfume, um tipo de droga inalável muito popular nos carnavais brasileiros na época. A música foi lançada no álbum Rita Lee (também conhecido como Rita Lee & Roberto), que marcou a parceria da cantora com o músico e produtor Roberto de Carvalho, seu marido até hoje. Lança Perfume foi um sucesso não só no Brasil, mas também na Europa e na América Latina. Veja o vídeo: 


    3. Erva Venenosa (1983)

    Uma versão em português da música Poison Ivy, dos norte-americanos The Coasters, Erva Venenosa é uma divertida sátira às mulheres fatais que seduzem e envenenam os homens. A música foi lançada no álbum Bombom, da banda Rita Lee & Roberto de Carvalho, e se destacou pelo seu ritmo animado e pela sua letra cheia de humor e ironia. Erva Venenosa é uma das músicas mais tocadas nas festas de flashback até hoje. Assista ao vídeo: 


    4. Flagra (1982)

    Uma das músicas mais emblemáticas da década de 1980 no Brasil, Flagra retrata o cotidiano de uma geração que vivia sob a ditadura militar e que buscava formas de expressar sua identidade e sua resistência. A música foi lançada no álbum Saúde, da banda Rita Lee & Roberto de Carvalho, e se tornou um sucesso instantâneo por sua letra crítica e sarcástica, que faz alusão à censura, à repressão e à violência policial. Flagra também ficou famosa pelo seu clipe inovador, que mostrava imagens reais de protestos e manifestações populares. 


    5. Amor e Sexo (2003)

    Uma das músicas mais recentes de Rita Lee, Amor e Sexo é uma celebração da sexualidade humana em todas as suas formas e cores. A música foi lançada no álbum Balacobaco, o último de estúdio da cantora até o momento, e se destacou pela sua letra ousada e libertária, que defende o amor livre e o prazer sem culpa. Amor e Sexo também ficou conhecida por ter sido tema de abertura do programa homônimo da Rede Globo, apresentado por Fernanda Lima. Confira o vídeo: 


    Esperamos que você tenha gostado deste tributo a Rita Lee, um dos maiores ícones do rock nacional.

  • "Robin de Sherwood" | Conto

    Leitor de Tela



    Robin Hood era um fora da lei que vivia na floresta de Sherwood, na Inglaterra medieval. Ele era famoso por roubar dos ricos e dar aos pobres, e por liderar um grupo de homens leais chamados de “Merry Men”. Ele também era um excelente arqueiro e espadachim, e tinha uma paixão pela bela Lady Marian.


    Um dia, ele soube que o xerife de Nottingham estava planejando capturar o rei Ricardo Coração de Leão, que estava voltando das Cruzadas. O xerife era um homem cruel e corrupto, que cobrava impostos abusivos do povo e apoiava o príncipe João, o irmão traidor do rei. Robin Hood decidiu impedir o plano do xerife e salvar o rei. Ele reuniu seus homens e armou uma emboscada na estrada onde o rei deveria passar. Ele se disfarçou de monge mendigo e se aproximou da comitiva real. Ele pediu uma esmola ao rei, que reconheceu sua voz e seu rosto. O rei ficou surpreso ao ver Robin Hood ali, mas fingiu não conhecê-lo. Ele lhe deu uma moeda de ouro e perguntou quem ele era. Robin Hood respondeu: “Eu sou um pobre homem que vive na floresta de Sherwood. Eu tenho muitos amigos lá, mas nenhum inimigo. Eu amo a justiça e odeio a opressão. Eu sou leal ao meu senhor, o rei Ricardo Coração de Leão.” O rei sorriu e disse: “Você é muito corajoso em dizer isso nesta terra dominada pelo príncipe João e pelo xerife de Nottingham. Eles são os meus inimigos, e também os seus.” Robin Hood disse: “Não tema, meu senhor. Eles não sabem que você está aqui. Eles estão esperando por você em outra estrada, onde eu preparei uma surpresa para eles.” O rei ficou curioso e perguntou: “Que surpresa é essa?” Robin Hood disse: “Venha comigo e veja com seus próprios olhos.” Ele levou o rei para a floresta, onde seus homens estavam escondidos nas árvores. Eles saudaram o rei com alegria e respeito. O rei ficou impressionado com a lealdade e a bravura dos homens de Robin Hood. Robin Hood disse: “Meus amigos, este é o nosso verdadeiro soberano, o rei Ricardo Coração de Leão. Ele voltou das Cruzadas para reclamar seu trono do príncipe João e do xerife de Nottingham.” Os homens gritaram: “Viva o rei! Viva Robin Hood!” Robin Hood disse: “Agora vamos à nossa surpresa. Nós trocamos as placas das estradas para enganar os inimigos do rei. Eles estão indo para uma armadilha que nós preparamos para eles.” Ele mostrou ao rei uma grande pilha de madeira coberta com folhas secas. Dentro dela havia barris cheios de pólvora. Robin Hood disse: “Quando eles chegarem perto desta pilha, nós acenderemos um pavio que vai fazer tudo explodir.” O rei ficou admirado com a astúcia de Robin Hood. Ele disse: “Você é um gênio! Você merece ser meu cavaleiro!” Ele tirou sua espada da bainha e tocou no ombro de Robin Hood. Ele disse: “Eu te nomeio Sir Robin de Locksley!” Robin Hood se ajoelhou diante do rei. Ele disse: “Eu aceito esta honra com humildade e gratidão.” O rei abraçou Robin Hood. Ele disse: “Você é meu amigo fiel! Agora vamos ver como os nossos inimigos vão se sair!” Eles se esconderam novamente nas árvores e esperaram. Logo, o xerife e seus homens chegaram à pilha de madeira, acreditando ser a comitiva real. Quando acenderam o pavio, uma grande explosão ocorreu, lançando-os para longe.
    Os homens de Robin Hood avançaram e capturaram o xerife e seus homens. Com a ajuda do rei, eles foram levados à justiça e condenados por suas ações cruéis.
    Robin Hood e seus homens foram celebrados como heróis por todo o reino, e Sir Robin de Locksley tornou-se um lendário cavaleiro. Ele casou-se com Lady Marian, sua amada, e continuou a lutar pela justiça e pelos direitos dos pobres.
    O rei Ricardo Coração de Leão reconheceu sua lealdade e coragem, e Robin Hood se tornou seu braço direito. Juntos, eles restauraram a paz e a justiça na Inglaterra, tornando-se lendas que viveriam para sempre na história.

  • AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS


    AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS

    Robert E. Howard
    (1906 – 1936)
    Tradução de Fernando Neeser de Aragão

    Acordei subitamente e me sentei na cama, me perguntando sonolento quem batia tão violentamente à porta, ameaçando despedaçar os painéis. Uma voz guinchava, intoleravelmente aguçada, como se por terror louco.

    – Conrad, Conrad! – alguém guinchava do outro lado da porta. – Pelo amor de Deus, deixe-me entrar! Eu o vi! Eu o vi!

    – Parece ser Job Kiles – disse Conrad, erguendo sua longa estrutura do divã onde estivera dormindo, após ter cedido sua cama para mim. – Não derrube a porta! – ele gritou, procurando por seus chinelos – Estou indo!

    – Bem, apresse-se! – gritou o visitante invisível – Acabei de olhar para dentro dos olhos do Inferno!

    Conrad acendeu uma luz e abriu rapidamente a porta; e, numa figura meio caída, meio cambaleante e com olhos desvairados, reconheci o homem a quem Conrad chamara de Job Kiles – um homem rançoso e miseravelmente velho, que vivia na pequena propriedade vizinha à de Conrad. Agora, uma mudança pavorosa acontecera com o homem, normalmente tão reservado e senhor de si. Seu cabelo ralo estava totalmente eriçado; gotas de suor lhe brilhavam na barba cinza e, de tempos em tempos, ele tremia como se de uma febre violenta.

    – Em nome de Deus, o que houve, Kiles? – exclamou Conrad, encarando-o – Você parece que viu um fantasma!

    – Um fantasma! – a voz elevada de Kiles estalou e caiu num guincho de risada histérica – Eu vi um demônio do Inferno! Eu lhe digo, eu o vi esta noite! Há apenas alguns minutos! Ele me olhou pela minha janela e riu para mim! Oh, Deus, aquela risada!

    – Quem? – Conrad perguntou brusca e impacientemente.

    – Meu irmão Jonas! – gritou o velho Kiles.

    Até Conrad se sobressaltou. Jonas, irmão gêmeo de Job, havia morrido há uma semana. Tanto Conrad quanto eu tínhamos visto seu cadáver ser colocado na tumba, no alto das inclinações íngremes das Colinas de Dagoth. Eu me lembrava do ódio que existira entre os irmãos: Job, o avarento, e Jonas, o esbanjador, que passou seus últimos dias em pobreza e solidão, na velha e arruinada mansão da família, nos declives mais baixos das Colinas de Dagoth; todo o seu veneno pairando sobre sua alma azedada, que se centrava no irmão sovina que morava numa casa própria, no vale. Este sentimento havia sido recíproco. Até mesmo quando Jonas estava morrendo, Job havia, de má vontade, se permitido ser convencido a ir até seu irmão. Enquanto isso ocorria, ele havia estado sozinho quando este último morreu, e a cena de morte deve ter sido horrenda, pois Job havia corrido para fora da sala, trêmulo e com o rosto pálido, perseguido por uma horrível crepitação de risada, quebrada bruscamente pelo súbito estrépito de morte.

    Agora, o velho Job tremia diante de nós, o suor lhe escorrendo da pele acinzentada e balbuciando o nome de seu irmão morto.

    – Eu o vi! Eu me levantei e sentei esta noite mais tarde que o usual. Assim que apaguei a luz para ir à cama, seu rosto me olhou malevolamente através da janela, emoldurado pelo luar. Ele voltou do Inferno para me arrastar para baixo, como jurou fazer enquanto morria. Ele não é humano! Há anos, ele não era! Suspeitei disso quando ele retornou de sua longa perambulação no Oriente. Ele é um demônio em forma humana. Um vampiro! Ele planeja me destruir corpo e alma!

    Fiquei mudo e totalmente perplexo, e até Conrad não encontrou palavras. Confrontado pela aparente evidência de completa loucura, o que dizer ou fazer? Meu único pensamento era o de que Job Kiles estava obviamente insano. Ele agora agarrava Conrad pela gola de sua roupa de dormir, e o sacudia violentamente na agonia de seu terror.

    – Só há uma coisa a ser feita! – ele gritou, com a luz do desespero em seus olhos – Devo ir até a tumba dele! Preciso ver, com meus próprios olhos, se ele ainda jaz lá, onde o enterramos! E vocês devem vir comigo! Não ouso atravessar sozinho a escuridão! Ele pode estar esperando por mim… jazendo à espera, atrás de alguma sebe ou árvore!

    – Isto é loucura, Kiles! – advertiu Conrad – Jonas está morto… você teve um pesadelo…

    – Pesadelo! – sua voz se ergueu a um grito estalado – Tive vários, desde que fiquei ao lado de seu maligno leito de morte, e ouvi as ameaças blasfemas escorrerem como um rio negro de seus lábios espumantes; mas aquilo não foi sonho! Eu estava completamente acordado, e eu lhes digo… eu lhes digo que vi meu irmão-demônio Jonas, me olhando malévola e horrendamente através da janela!

    Ele torceu as mãos, gemendo de terror, com todo o seu orgulho, compostura e equilíbrio varridos por terror total, primitivo e animal. Conrad me olhou de relance, mas eu não tinha sugestão a oferecer. O assunto parecia tão completamente insano, que a única coisa óbvia a fazer parecia ser chamar a polícia e mandar o velho Job para o manicômio mais próximo. Mas havia, em seus modos, um terror fundamental que parecia atingir até mesmo a sensação ao longo de minha espinha.

    Como se sentindo nossa dúvida, ele voltou a gritar:

    – Eu sei! Vocês acham que estou louco! Estou tão são quanto vocês! Mas estou indo até aquela tumba, se eu tiver que ir só! E, se me deixarem ir só, meu sangue ficará em suas consciências! Vocês irão?

    – Espere! – Conrad começou a se vestir apressadamente. – Nós vamos com você. Acho que a única coisa que destruirá esta alucinação é ver seu irmão no caixão dele.

    – Sim – o velho Job riu terrivelmente. – Em sua tumba, no caixão sem tampa! Por que ele preparou aquele caixão aberto antes de morrer, e deixou ordens para que nenhum tipo de tampa fosse colocado sobre ele?

    -–Ele sempre foi excêntrico – respondeu Conrad.

    – Ele sempre foi um demônio – rosnou o velho Job. – Nós nos odiávamos desde a juventude. Quando ele desperdiçou sua herança e voltou rastejando, paupérrimo, ele se ressentiu porque eu não queria dividir com ele minhas riquezas tão duramente adquiridas. Aquele cão negro! Aquele demônio das covas do Purgatório!

    – Bom, vamos ver logo se ele está em segurança na sua tumba – disse Conrad. – Está pronto, O’Donnel?

    – Pronto – respondi, prendendo ao coldre minha pistola 45. Conrad riu.

    – Não consegue esquecer sua criação texana, hein? – ele gracejou. – Acha que pode ser chamado para balear um fantasma?

    – Bom, você não sabe dizer – respondi. – Não gosto de sair à noite sem ela.

    – Pistolas são inúteis contra um vampiro – disse Job, movendo-se com impaciência. – Só há uma única coisa que prevalecerá contra eles! Uma estaca enfiada no coração negro do demônio.

    – Grandes céus, Job! – Conrad riu abruptamente. – Não consegue falar sério sobre essa coisa?

    – Por que não? – Uma chama de loucura se ergueu em seus olhos. – Existiram vampiros em épocas passadas… ainda existem no Leste Europeu e Oriente. Eu o ouvi se gabar a respeito do próprio conhecimento de cultos secretos e magia negra. Suspeitei disso… então, enquanto jazia moribundo, ele me contou seu segredo medonho… jurou que voltaria do túmulo e me arrastaria com ele para o Inferno!

    Saímos de casa e atravessamos o gramado. Aquela parte do vale era pouco povoada, embora poucas milhas a sudoeste brilhassem as luzes da cidade. Adjacente aos jardins de Conrad a oeste, ficava a propriedade de Job, a casa escura avultando magra e silenciosa por entre as árvores. Aquela casa era o único luxo que o velho avarento permitia a si mesmo. Uma milha ao norte, fluía o rio, e ao sul se erguiam os sombrios contornos negros daquelas baixas e onduladas colinas estéreis, com longas inclinações cobertas por arbustos, às quais os homens chamam de Colinas de Dagoth – um nome curioso, não-aparentado com qualquer língua indígena conhecida, mas usado inicialmente por aqueles homens vermelhos para designarem aquela cordilheira raquítica. Eram praticamente inabitadas. Havia fazendas nas inclinações externas, em direção ao rio, mas os vales internos tinham solos muito rasos, e as próprias colinas eram rochosas demais para o cultivo. A pouco menos de 800 metros da propriedade de Conrad, se erguia a estrutura vagabunda que havia abrigado a família Kiles durante uns 300 anos – pelo menos, as pedras fundamentais datavam dessa época, embora o resto da casa fosse mais moderno. Acho que o velho Job estremeceu ao olhar para ela, ali empoleirada como um abutre no ninho, contra o negro fundo ondulado das Colinas de Dagoth.

    Era uma selvagem noite ventosa, a qual atravessamos em nossa louca busca. Nuvens passavam sem parar pela lua, e o vento uivava pelas árvores, trazendo estranhos ruídos noturnos e pregando curiosas peças com nossas vozes. Nossa meta era a tumba que se acocorava numa inclinação mais alta de uma colina que se projetava do resto da cordilheira, correndo para trás e acima do planalto alto no qual se erguia a casa do velho Kiles. Era como se o ocupante do sepulcro olhasse sobre a casa ancestral e para o vale, que sua gente outrora possuíra da aresta ao rio. Agora, todo o chão pertencente à velha propriedade era a faixa que subia as inclinações até as colinas, a casa numa extremidade e a tumba na outra.

    A colina sobre a qual o túmulo fora construído divergia das demais, como eu dissera, e, ao irmos para o sepulcro, passamos perto de sua extremidade íngreme e coberta por matagal, a qual recuava bruscamente para dentro de um penhasco vertical e coberto por moita. Estávamos nos aproximando da ponta dessa aresta, quando Conrad comentou:

    – O que possuiu Jonas, para construir seu túmulo tão longe das criptas da família?

    – Ele não o construiu – rosnou Job. – Foi construído há muito tempo por nosso ancestral, o velho Capitão Jacob Kiles, e por causa dele, esta projeção particular ainda é chamada de Colina Pirata… pois ele era um bucaneiro e contrabandista. Algum estranho capricho o fez construir seu tumulo lá em cima e, em sua vida, ele passou muito tempo sozinho ali, especialmente à noite. Mas ele nunca o ocupou, pois estava perdido no mar, numa luta com um navio de guerra. Ele costumava observar, em busca de inimigos ou soldados, desde aquele penhasco à nossa frente, e é por isso que as pessoas o chamam, até hoje, de Cabo do Contrabandista.

    “O túmulo estava em ruínas, quando Jonas começou a morar na antiga casa, e ele o restaurou para receber seus ossos. Ele bem sabia que não ousava dormir em solo santificado! Antes de morrer, ele havia feito todos os preparativos – a tumba havia sido reconstruída, e o caixão sem tampa colocado nela para recebê-lo…”.

    Estremeci, apesar de mim mesmo. A escuridão, as nuvens desvairadas passando pela lua leprosa, os ruídos estridentes do vento, as sombrias colinas escuras avultando sobre nós, as palavras desvairadas de nosso companheiro, tudo trabalhava minha imaginação para povoar a noite com formas de horror e pesadelo. Olhei nervosamente para as inclinações cobertas por arbustos, negras e repelentes na luz mutável, e me vi desejando que não estivéssemos passando tão perto dos despenhadeiros com moitas e assombrados por lendas do Cabo do Contrabandista, se sobressaindo da cordilheira sinistra como a proa de um navio.

    – Não sou uma garota tola, para ser assustado por sombras. – O velho Job tagarelava. – Vi seu rosto maligno na janela iluminada pela lua. Sempre acreditei secretamente que os mortos caminham à noite. Agora… o que é isso?

    Ele parou bruscamente, congelado numa altitude de terror completo. Instintivamente, aguçamos nossos ouvidos. Ouvimos os galhos das árvores se sacudirem na ventania. Ouvimos o farfalhar alto da grama alta.

    – É apenas o vento – murmurou Conrad. – Ele distorce qualquer som.

    – Não! Não, eu lhe digo! Era…

    Um grito fantasmagórico veio com o vento – uma voz aguçada com medo e agonia mortais:

    – Socorro! Socorro! Oh, Deus, tenha piedade! Oh, Deus! Oh, Deus!

    – A voz do meu irmão! – gritou Job. – Ele está me chamando desde o Inferno!

    – De onde ela veio? – sussurrou Conrad, com lábios subitamente secos.

    – Não sei. – Minha pele se arrepiava umidamente até meus membros. – Não sei dizer. Pode ter vindo de cima… ou de baixo. Ela soa estranhamente abafada.

    – O aperto da sepultura abafa a voz dele! – guinchou Job. – A mortalha grudada nele sufoca seus gritos! Eu lhes digo que ele uiva nas grelhas em brasa do Inferno, e quer me arrastar para compartilhar seu destino! Lá! Lá sobre o túmulo!

    – A rota final de toda a humanidade – murmurou Conrad, cuja brincadeira medonha com as palavras de Job não me adicionou conforto. Seguimos o velho Kiles, mal conseguindo lhe seguir o passo enquanto ele galopava – uma figura magra e grotesca, atravessando as inclinações e galgando em direção ao vulto acocorado, ao qual o ilusório luar revelava como uma caveira brilhando obtusamente.

    – Você reconheceu essa voz? – murmurei para Conrad.

    – Não sei. Estava abafada, como você mencionou. Pode ter sido um truque do vento. Se eu disser que achei que foi Jonas, você pensaria que estou louco.

    – Não agora – murmurei. – Achei que fosse insanidade, no início. Mas o espírito da noite entrou no meu sangue. Estou pronto para acreditar em qualquer coisa.

    Havíamos galgado os declives e ficado diante da maciça porta de ferro do túmulo. Acima e atrás dela, a colina se erguia íngreme, oculta por densos matagais. O sombrio mausoléu parecia investido de agouro sinistro, causado pelos acontecimentos fantásticos da noite. Conrad virou a luz de sua lanterna sobre aquela visão ponderosa, com sua aparência antiga.

    – Esta porta não foi aberta – disse Conrad. – A tranca não foi violada. Veja: aranhas já haviam feito suas teias por toda a soleira, e os fios estão intactos. O capim diante da porta não foi pisado, como aconteceria se alguém tivesse recentemente entrado no túmulo… ou saído dele.

    – O que são portas e janelas para um vampiro? – queixou-se Job. – Eles passam por paredes sólidas como fantasmas. Eu lhes digo, não descansarei até ter entrado nessa tumba e feito o que devo fazer. Tenho a chave… a única chave existente no mundo que se encaixará naquela tranca.

    Ele a puxou para fora: uma ferramenta antiga, a qual enfiou na fechadura. Houve um estalar e ranger de básculas enferrujadas, e o velho Job recuou, como se na expectativa de algum fantasma com presas de hiena voar em sua direção, através da porta que se abria.

    Conrad e eu espiamos a parte de dentro – e admito que eu me firmei, sacudindo por conjecturas caóticas. Mas a escuridão lá dentro era estígia. Conrad fez menção de ligar sua lanterna, mas Job o impediu. O velho parecia ter recuperado grande parte de sua compostura normal.

    – Dê-me a lanterna – ele disse, e havia determinação sombria em sua voz. – Irei só. Se ele retornou para o túmulo… se ele estiver novamente em seu caixão, sei como lidar com ele. Esperem aqui, e se eu gritar, ou se ouvirem sons de luta, corram para dentro.

    – Mas… – Conrad começou uma objeção.

    – Não questione! – guinchou o velho Kiles, começando novamente a se descompor. – Esta é minha tarefa, e eu a farei só!

    Ele praguejou quando Conrad inadvertidamente girou o raio de luz diretamente em seu rosto; logo, agarrando a lanterna e puxando algo de seu paletó, entrou furtivamente no túmulo, empurrando a porta maciça para trás de si.

    – Mais insanidade – murmurei inquieto. – Por que ele insistiu tanto para o acompanharmos, se pretendia entrar sozinho? E você percebeu o brilho nos olhos dele? Pura loucura!

    – Não estou tão certo – respondeu Conrad. – Pareceu-me mais um triunfo maligno. Quanto a estar só, você dificilmente pode chamar assim, pois estamos a apenas poucos passos de distância dele. Ele tem algum motivo para não querer que entremos na tumba com ele. O que foi aquilo que ele tirou do paletó, quando entramos?

    – Parecia uma estaca afiada e um pequeno martelo. Por que ele pegaria um martelo, já que não há o que ser desamarrado sobre o caixão?

    – Claro! – Conrad falou bruscamente. – Como fui tolo em não ter entendido. Não me admira que ele queira adentrar o túmulo sozinho! O’Donnel, ele está falando sério sobre esse disparate de vampiro! Não se lembra das insinuações que ele deixou escapar, sobre estar preparado e tudo o mais? Ele pretende enfiar aquela estaca no coração do irmão! Vamos! Não pretendo deixar que ele mutile…

    Da tumba, vibrou um grito que me assombrará quando eu estiver morrendo. Seu timbre medonho paralisou nossos passos e, antes que pudéssemos recuperar o juízo, houve um correr louco de pés, o impacto de um corpo voador contra a porta; e, para fora da tumba, como um morcego soprado para fora dos portões do Inferno, voou a figura de Job Kiles. Ele caiu de ponta-cabeça aos nossos pés, a lanterna elétrica em sua mão caindo ao chão e se apagando. Atrás dele, a porta de ferro ficou entreaberta e eu pensei ter ouvido um estranho barulho de deslizar e arrastar na escuridão. Mas toda a minha atenção foi voltada para o coitado que se torcia aos nossos pés em horríveis convulsões.

    Nós nos inclinamos sobre ele. A lua, deslizando de trás de uma nuvem escura, iluminou seu rosto lívido e nós gritamos involuntariamente diante do horror ali estampado. Toda a luz de sanidade fora apagada de seus olhos arregalados, como uma vela apagada no escuro. Seus lábios frouxos se moviam, salpicando espuma. Conrad o sacudiu:

    – Kiles, em nome de Deus, o que aconteceu com você?

    Um horrível choramingar babante foi a única resposta; logo, entre os sons salivantes e sem significado, percebemos palavras humanas, babantes e meio inarticuladas.

    – A coisa! A coisa no caixão!

    Então, quando Conrad gritou uma pergunta feroz, os olhos rolaram para cima e pararam, os lábios contraídos se congelaram num horrível sorriso triste, e toda a estrutura magra do homem parecia afundar e desmoronar sobre si mesma.

    – Morto! – murmurou Conrad, empalidecido.

    – Não vejo ferimento. – sussurrei, sacudido até minha própria alma.

    – Não há ferimentos… nenhuma gota de sangue.

    – Então… então… – Mal tive coragem de transformar o pensamento pavoroso em palavras.

    Olhamos medrosamente para a tira retangular de negrura, destacada na porta parcialmente aberta da tumba silenciosa. O vento guinchou subitamente através da grama, como uma exultante canção de triunfo demoníaco; e um súbito tremor se apossou de mim.

    Conrad se ergueu e endireitou os ombros.

    – Vamos! – ele disse. – Só Deus sabe o que se esconde naquele túmulo infernal… Mas temos que descobrir. O velho estava muito agitado, presa de seus próprios medos. Seu coração não era muito forte. Algo deve ter causado sua morte. Está comigo?

    Qual terror de uma ameaça tangível e compreendida pode se igualar ao de uma ameaça invisível e sem nome? Mas balancei minha cabeça em consentimento, e Conrad pegou a lanterna, a ligou e grunhiu de prazer por ela não estar quebrada. Então, aproximamo-nos da sepultura como homens que se aproximam da toca de uma serpente. Minha pistola estava engatilhada em minha mão, quando Conrad abriu bruscamente a porta. Sua luz dançava rapidamente sobre as paredes úmidas, chão empoeirado e teto abobadado, até descansar no caixão sem tampa que se encontrava sobre seu pedestal de pedra no centro. Deste, nós nos aproximamos com a respiração presa, sem ousar fazer conjectura sobre qual horror estranho e não-terrestre poderia ir ao encontro de nossos olhos. Inspirando rapidamente, Conrad passou a luz de sua lanterna dentro dele. Um grito escapou dos nossos lábios: o caixão estava vazio.

    – Meu Deus! – sussurrei – Job estava certo! Mas onde está o vampiro?

    – Nenhum caixão vazio tirou a vida do corpo de Job Kiles – respondeu Conrad. – Suas últimas palavras foram “a coisa no caixão”. Havia algo dentro dele… algo que, ao ser visto, extinguiu a vida de Job Kiles como uma vela apagada.

    – Mas onde está essa coisa? – perguntei com desconforto, um arrepio bem medonho me subindo e descendo pela espinha. – Ela não pode ter saído da tumba, sem a termos visto. Foi algo que pode ficar invisível à vontade? Estaria acocorada invisível na tumba conosco, aqui neste instante?

    – Esta conversa é loucura – Conrad falou bruscamente, mas olhando rápida e instintivamente sobre o ombro à direita e esquerda. Logo, ele acrescentou:

    – Você percebeu um leve odor repulsivo ao redor deste caixão?

    – Sim, mas não consigo defini-lo.

    – Nem eu. Não é exatamente um ranço de cripta. É uma espécie de cheiro terrestre de réptil. Ele me lembra vagamente os cheiros que senti debaixo da superfície da terra. Ele se adere ao caixão… como se alguma coisa profana do fundo da terra houvesse jazido ali.

    Ele correu a luz sobre as paredes novamente, e a deteve subitamente, focando-a na parede de trás, a qual estava fora da camada de rocha da colina na qual a tumba foi construída.

    – Veja!

    Na parede supostamente sólida, aparecia uma longa abertura fina. Com uma só passada, Conrad a alcançou, e juntos a examinamos. Empurramos cautelosamente a porção da parede mais próxima dela, e ela cedeu silenciosamente para dentro, abrindo-se numa escuridão tamanha como eu nunca sonhara existir deste lado da sepultura. Recuamos involuntariamente e ficamos tensos, como se na expectativa de algum horror noturno saltar sobre nós. Logo, a risada brusca de Conrad foi como um choque de água gelada sobre nervos tensos.

    – Pelo menos, o ocupante da tumba usa um meio não-sobrenatural de entrar e sair – ele disse. – Esta porta secreta foi evidentemente construída com extremo cuidado. Veja, é meramente um grande bloco vertical de pedra que gira sobre um pino. E o silêncio com o qual ele funciona mostra que o pino e os encaixes foram lubrificados recentemente.

    Ele dirigiu seu raio de luz para dentro do buraco atrás da porta, e este revelou um túnel estreito correndo paralelo à soleira da porta, claramente para dentro da rocha sólida da colina. As paredes e o chão eram lisos e polidos, e o teto curvo.

    Conrad recuou, voltando-se para mim:

    – O’Donnel, eu pareço sentir algo realmente obscuro e sinistro aqui, e tenho certeza de que isso possui uma influência humana. Sinto como se tivéssemos nos deparado com um rio negro e oculto, correndo sob nossos próprios pés. Para onde ele leva, não sei dizer, mas creio que o poder por trás de tudo isso seja Jonas Kiles. Acredito que o velho Job realmente viu seu irmão na janela esta noite.

    – Mas, a tumba vazia ou não, Jonas Kiles está morto.

    – Acho que não. Creio que ele estava num estado autoinduzido de catalepsia, tal como é praticado pelos faquires hindus. Já vi alguns casos, e juraria que eles estavam realmente mortos. Eles descobriram o segredo da animação suspensa voluntária, apesar dos cientistas e céticos. Jonas Kiles viveu vários anos na Índia e, de alguma forma, ele deve ter aprendido aquele segredo.

    “O caixão aberto, o túnel guiando do ponto da tumba à crença de que ele estava vivo quando foi colocado lá. Por alguma razão, ele queria que as pessoas acreditassem que havia morrido. Pode ser o capricho de uma mente perturbada. Pode ter um significado mais profundo e sombrio. À luz de sua aparição ao irmão e da morte de Job, acredito mais na segunda opção; mas, neste momento, minhas suspeitas são horríveis e fantásticas demais para expressar em palavras. Contudo, eu pretendo explorar este túnel. Jonas pode estar escondido em algum lugar dele. Está comigo? Lembre-se, aquele homem pode ser um maníaco homicida, ou se não, ele pode ser ainda mais perigoso que um louco”.

    – Estou com você – grunhi, apesar da minha pele se arrepiar diante da perspectiva de mergulhar naquela cova escura. – Mas, e quanto ao grito que ouvimos ao passarmos pelo Cabo? Não houve fingimento de agonia! E qual foi a coisa que Job viu no caixão?

    – Não sei. Pode ter sido Jonas, vestido com algum disfarce infernal. Devo admitir que há muito mistério unido a este assunto, mesmo que aceitemos a teoria de que Jonas está vivo e por trás de tudo isso. Mas vamos olhar dentro daquele túnel. Ajude-me a levantar Job. Não podemos deixá-lo aqui jazendo deste jeito. Nós o colocaremos no caixão.

    E assim, erguemos Job Kiles e o colocamos no caixão do irmão que ele odiava, onde ele jazeu com olhos vidrados mirando desde suas congeladas feições cinzas. Enquanto eu o olhava, o canto fúnebre do vento parecia ecoar suas palavras em meus ouvidos: “Lá! Sobre o túmulo”. E seu caminho o havia realmente levado para o túmulo.

    Conrad entrou primeiro pela porta secreta, à qual deixamos aberta. Enquanto adentrávamos aquele túnel negro, tive um momento de puro medo; e fiquei feliz que a pesada porta externa da tumba não possuísse fecho de mola, e que Conrad tivesse em seu bolso a única chave com a qual a tranca maciça pudesse ser fechada. Tive uma sensação desconfortável de que o demoníaco Jonas poderia trancar a porta, deixando-nos encerrados na tumba até o Juízo Final.

    O túnel parecia correr irregularmente cada vez mais para o leste… e se mover cautelosamente, reluzindo a luz diante de nós.

    – Este túnel nunca foi aberto por Jonas Kiles – sussurrou Conrad – Há um verdadeiro ar de antiguidade nele… Veja!

    Outra portada escura apareceu à nossa direita. Conrad dirigiu sua lanterna para dentro dela, mostrando outra passagem mais estreita. Outras portas se abriram dentro dela, em ambos os lados.

    – É uma rede regular – murmurei. – Corredores paralelos conectados por túneis menores. Quem imaginaria tal coisa sob as Colinas de Dagoth?

    – Como Jonas Kiles a descobriu? – perguntou-se Conrad – Veja; há outra portada à nossa direita… e outra… e mais outra! Você está certo… é uma verdadeira rede de túneis. Quem, em nome do céu, os cavou? Devem ser o trabalho de alguma raça pré-histórica desconhecida. Mas este corredor em particular foi usado recentemente. Vê como a poeira está agitada no chão? Todas as portas estão à direita, e nenhuma à esquerda. Este corredor segue a linha externa da colina, e deve haver uma saída em algum lugar ao longo dele. Veja!

    Estávamos passando pela abertura de um dos escuros túneis que se cruzavam, e Conrad havia lançado sua luz sobre a parede ao lado dele. Lá, nós vimos uma seta tosca, feita com giz vermelho e apontando para o túnel menor.

    – Isso não pode levar para a saída – murmurei. – Ele mergulha ainda mais fundo nas entranhas da colina.

    – Vamos segui-lo, de qualquer forma – respondeu Conrad. – Podemos achar facilmente o caminho de volta para este túnel externo.

    Então, nós o adentramos, cruzando outros corredores maiores, e, em cada um, encontrando a seta que ainda apontava o caminho por onde íamos. O fino raio de luz de Conrad parecia quase perdido naquela densa escuridão, e presságios inomináveis e medos instintivos me assombravam enquanto mergulhávamos cada vez mais fundo no coração daquela colina amaldiçoada. Súbito, o túnel terminou abruptamente numa escada estreita, que guiava para baixo e desaparecia na escuridão. Um estremecimento involuntário me sacudiu enquanto eu descia o olhar para aqueles degraus esculpidos. Quais pés profanos os haviam pisado em eras esquecidas? Logo, nós vimos algo mais – uma pequena câmara se abrindo para o túnel, bem no topo da escada. E, quando Conrad dirigiu sua luz para dentro dela, uma exclamação involuntária irrompeu de meus lábios. Não havia ocupante, mas ela estava cheia de evidências de ocupação recente. Entramos e ficamos seguindo o movimento do fino raio de luz.

    Que aquela câmara havia sido ocupada por humanos, isso não me espantava, dadas as nossas descobertas anteriores, mas ficamos horrorizados com a condição do conteúdo. Havia uma cama de acampamento ao lado dela, quebrada, os cobertores espalhados sobre o chão rochoso em tiras esfarrapadas. Livros e revistas estavam rasgados em pedaços e espalhados a esmo; latas de comida jaziam espalhadas sem cuidado, batidas e tortas, algumas delas arrebentadas e com seu conteúdo derramado. Havia uma lâmpada esmagada sobre o chão.

    – Um esconderijo para alguém – disse Conrad. – E aposto minha cabeça que é Jonas Kiles. Mas que caos! Veja estas latas, aparentemente abertas ao serem batidas contra o chão de pedra… e esses cobertores, rasgados em tiras, como um homem rasgaria um pedaço de papel. Bom Deus, O’Donnel, nenhum ser humano faria tamanha devastação!

    – Um louco faria – murmurei – O que é isso?

    Conrad havia parado e apanhado uma agenda. Ele a ergueu até a luz de sua lanterna.

    – Muito rasgada – ele grunhiu. – Mas temos sorte, de qualquer forma. É o diário de Jonas Kiles! Conheço sua caligrafia. Veja, esta última página está intacta e com a data de hoje! Uma prova positiva de que ele está vivo, na falta de outra prova.

    – Mas onde ele está? – sussurrei, olhando ao redor com medo. – E por que toda esta devastação?

    – A única coisa na qual posso pensar – disse Conrad – é que o homem era, pelo menos, parcialmente lúcido quando entrou nestas cavernas, mas, desde então, ficou insano. É melhor ficarmos alertas; se ele está louco, é totalmente possível que ele possa nos atacar no escuro.

    – Eu pensei nisso – grunhi com um estremecimento involuntário. – É um belo pensamento: um louco se escondendo nestes infernais túneis negros, para saltar sobre nossas costas. Prossiga; leia o diário, enquanto eu fico de olho na porta.

    – Vou ler este último registro – disse Conrad. – Talvez ele lance alguma luz sobre o tema.

    E, focando a luz sobre os rabiscos, ele leu:

    “Agora tudo está pronto para meu grande golpe. Esta noite, deixo para sempre este abrigo, nem ficarei triste, pois a eterna escuridão e silêncio estão começando a sacudir meus nervos de aço. Estou ficando imaginativo. Mesmo enquanto escrevo, pareço ouvir sons furtivos, como se de coisas rastejando de baixo, embora eu nunca tenha visto sequer um morcego ou uma cobra nestes túneis. Mas amanhã ocuparei a bela casa de meu amaldiçoado irmão. Enquanto ele – e é uma ótima zombaria eu me arrepender de não poder compartilhar isso com alguém – tomará meu lugar na fria escuridão – mais escura e fria que estes túneis escuros.

    “Devo escrever, se não posso falar disso, pois estou emocionado com a minha própria sagacidade. Que astúcia diabólica a minha! Com quão demoníaca velhacaria eu planejei e preparei! Não havia ninguém no caminho, antes da minha ‘morte’ – há, há, há, se os tolos soubessem! –, no qual trabalhei nas superstições de meu irmão – deixando cair alusões e místicas observações. Ele sempre me considerou uma ferramenta do Maligno. Antes da minha ‘enfermidade’ final, ele tremeu à beira de acreditar que eu havia me tornado sobrenatural ou infernal. Logo, em meu ‘leito de morte’, quando despejei toda a minha fúria sobre ele, seu espanto foi genuíno. Eu sabia que ele estava totalmente convencido de que sou um vampiro. Bem, eu realmente conheço meu irmão. Estou certo de que ele fugiu de sua casa e preparou uma estaca para enfiar em meu coração. Mas ele não tomará atitude alguma, até ter certeza de que suas suspeitas são verdadeiras.

    “Darei a ele esta certeza. Esta noite, aparecerei em sua janela. Aparecerei e sumirei. Não quero matá-lo de medo, porque assim meus planos de nada serviriam. Sei que, quando ele se recuperar de seu primeiro susto, virá até minha tumba para me matar com sua estaca. E, quando ele estiver em segurança na tumba, eu o matarei. Trocarei de roupa com ele – o colocarei em segurança na tumba, no caixão aberto – e voltarei furtivamente à sua bela casa. Nós nos parecemos bastante um com o outro, de modo que, com meu conhecimento e boa educação, posso imitá-lo perfeitamente. Além disso, quem suspeitaria? É bizarro demais – fantástico demais. Assumirei sua vida onde ele a deixou. As pessoas podem se surpreender com a mudança em Job Kiles, mas isso não irá além da surpresa. Viverei e morrerei no lugar de meu irmão e, quando a morte vier realmente a mim, que ela seja bastante adiada! Vou jazer em pompa, na cripta funerária do velho Kiles, com o nome de Job Kiles em minha lápide, enquanto o verdadeiro Job jaz, sem que ninguém imagine, na velha tumba da Colina do Pirata! Ah, é uma ótima, ótima zombaria!

    “Eu me pergunto como o velho Job Kiles descobriu estes caminhos subterrâneos. Ele não os construiu. Eles foram entalhados em cavernas obscuras e rocha sólida, pelas mãos de homens esquecidos – há quanto tempo, eu não ouso arriscar uma conjectura. Enquanto estou aqui, aguardando a hora de estar pronto para agir, eu me entretive explorando-os. Percebi que são bem mais amplos do que eu havia suspeitado. As colinas devem estar conectadas com eles, e eles afundam na terra até uma profundeza incrível, pavimento sob pavimento, como os andares de um prédio, cada pavimento conectado com o inferior por uma única escada. O velho Jacob Kiles deve ter usado estes túneis – pelo menos, os do pavimento superior – para o depósito do saque e contrabando. Ele construiu a tumba para ocultar suas verdadeiras atividades e, é claro, abriu a entrada secreta e pôs a porta no eixo. Ele deve ter descoberto as tocas através da entrada oculta do Cabo do Contrabandista. A velha porta que ele construíra aqui era uma mera massa de lascas apodrecidas e metal enferrujado, quando a encontrei. Como ninguém a descobriu depois dele, é provável que ninguém encontre a nova porta que construí com minhas próprias mãos, para substituir a antiga. Mesmo assim, tomarei as devidas precauções no tempo certo.

    “Eu tenho me perguntado bastante sobre a identidade da raça que deve um dia ter habitado estes labirintos. Não encontrei ossos nem crânios, embora eu tenha descoberto, no pavimento superior, instrumentos curiosamente endurecidos de cobre. Nos poucos andares seguintes, achei utensílios de pedra, até o décimo andar, onde eles desapareceram. E, também no andar superior, encontrei porções de paredes decoradas com pinturas grandemente desbotadas, mas evidenciando habilidade indubitável. Estas gravuras pintadas, eu encontrei em todos os pavimentos, inclusive no quinto, embora as decorações de cada andar fossem mais toscas que as do andar superior, até as últimas pinturas serem meras manchas sem significado, como as que um macaco faria com um pincel. Além disso, os instrumentos de pedra eram muito mais toscos nos níveis inferiores, assim como o feitio dos tetos, escadas, portadas, etc. Tem-se uma fantástica impressão de uma raça aprisionada, cavando cada vez mais fundo dentro da terra negra, século após século, e perdendo cada vez mais de seus atributos humanos, à medida que afundava a cada novo nível.

    “O décimo-quinto andar não tem rima nem razão; os túneis correm sem rumo e sem plano aparente – assumindo um contraste com o pavimento mais alto, o qual é um triunfo da arquitetura primitiva, de modo que é difícil acreditar que tenham sido construídas pela mesma raça. Muitos séculos devem ter se passado entre a construção das duas camadas, e os construtores devem ter se degradado muito. Mas a décima-quinta camada não é o fim destas tocas misteriosas.

    “A abertura da portada na única escada da camada mais alta foi bloqueada por pedras, que haviam caído do teto – provavelmente há centenas de anos, antes do velho Capitão Jacob descobrir aqueles túneis. Levado pela curiosidade, tirei os escombros, apesar daquilo exigir demais de minha força, e abri um buraco na pilha hoje mesmo, embora eu não tivesse tempo de explorar o que havia embaixo. Eu, de fato, duvido que pudesse fazê-lo, pois minha luz me mostrou, não a sucessão usual de degraus de pedra, mas um poço íngreme e liso, levando à negrura lá embaixo. Um macaco ou uma serpente pode subir e descer por ele, mas não um ser humano. Para quais fossos ele guia, eu não me importo em sequer tentar imaginar. Por alguma razão, a descoberta de que a décima-quinta camada não era a do poço não-pisado me deu uma estranha sensação arrepiante, e me levou a fantásticas conjecturas sobre o destino final da raça que outrora viveu nestas colinas. Supus que os escavadores, afundando cada vez mais na escala da vida, haviam se extinguido nas camadas mais baixas, embora eu não tenha achado nenhum resto para justificar minhas teorias. As camadas mais baixas não ficam em rocha quase sólida, como as que estão mais próximas da superfície. Elas estão em terra negra e numa espécie de pedra bem mole, e foram aparentemente cavadas com os utensílios mais primitivos; em alguns lugares, elas até parecem ter sido cavadas com dedos e unhas. Poderiam ser tocas de animais, exceto pela tentativa evidente de imitar os sistemas mais bem-organizados acima. Mas, sob a décima-quinta camada, como pude ver, mesmo através de minhas investigações superficiais desde acima, toda imitação para; as escavações sob a décima-quinta camada são buracos loucos e brutos; e, para quais profundezas eles descem, não tenho desejo de saber.

    “Sou perseguido por fantásticas especulações no tocante à identidade da raça, que literalmente afundou na terra e desapareceu em suas profundezas negras há tanto tempo. Uma lenda insistia, entre índios destes arredores, que, muitos séculos antes da chegada dos homens brancos, seus ancestrais expulsaram uma estranha raça estrangeira para dentro das cavernas das Colinas de Dagoth, e a trancou ali para que morresse. Que não morreram, mas sobreviveram de alguma forma por, pelo menos, muitos séculos, é evidente. Quem eram, de onde vieram e qual foi seu destino final, nunca se saberá. Antropólogos podem catar alguma evidência das pinturas na camada mais alta, mas não pretendo que ninguém venha saber sobre essas tocas. Alguns destes desenhos obscuros retratam inconfundivelmente índios em guerra com homens evidentemente da mesma raça que os artistas. Estes modelos, eu me aventuraria a dizer, lembram mais o tipo caucasiano que o indígena.

    “Mas está chegando a hora de minha visita ao meu amado irmão. Irei pela porta no Cabo do Contrabandista, e retornarei pelo mesmo caminho. Alcançarei a tumba antes do meu irmão, por mais rápido que ele venha – e eu sei que ele virá. Então, quando o ato estiver feito, sairei da tumba, e nenhum homem colocará novamente o pé nestes corredores. Pois me certificarei de que a tumba não será aberta, e uma conveniente explosão de dinamite derrubará rochas suficientes dos penhascos acima, para selar de forma eficaz a porta no Cabo do Contrabandista para sempre”.

    Conrad pôs a agenda dentro do bolso.

    – Louco ou são – ele disse sombriamente –, Jonas Kiles é um verdadeiro demônio. Não estou muito surpreso, mas estou levemente chocado. Que plano infernal! Mas ele errou em uma coisa: ele aparentemente supunha que Job viria sozinho para o túmulo. A prova de que ele não calculou o bastante.

    – Basicamente – respondi. – Mas, no que diz respeito a Job, Jonas teve sucesso em seu plano diabólico: ele conseguiu matar o irmão, de alguma forma. Evidentemente, ele estava na tumba quando Job entrou. Ele, de alguma forma, o aterrorizou até a morte, e então, evidentemente percebendo nossa presença, escapuliu pela porta secreta.

    Conrad sacudiu a cabeça. Um nervosismo crescente ficava evidente em suas maneiras, à medida que ele continuava a leitura do diário. De vez em quando, ele parava e erguia a cabeça em atitude de escuta.

    – O’Donnel, não acredito que foi Jonas a quem Job viu no caixão… mudei um tanto de opinião. Uma perversa mente humana estava inicialmente por trás de tudo isto, mas alguns aspectos deste assunto, eu não posso atribuir à humanidade.

    “Aquele grito que ouvimos no Cabo, a condição desta sala, a ausência de Jonas, tudo indica algo ainda mais obscuro e sinistro que o plano de assassinato feito por Jonas Kiles”.

    – O que você quer dizer? – perguntei inquieto.

    – Suponha que a raça que cavou estes túneis não morreu! – ele sussurrou. – Suponha que seus descendentes ainda vivam, em algum estado de existência anormal, nos fossos negros sob os andares dos corredores! Jonas menciona, em seus apontamentos, que ele pensou ter ouvido sons furtivos, como o de coisas rastejando desde abaixo!

    – Mas ele morou nestes túneis durante uma semana. – adverti.

    – Você esquece que o poço que leva aos fossos foi obstruído até hoje, quando ele removeu as rochas. O’Donnel, eu creio que os fossos mais baixos são habitados, que as criaturas acharam seu caminho até estes corredores, e que foi a visão de uma delas, dormindo no caixão, que matou Job Kiles!

    – Mas isto é completa loucura! – exclamei.

    – Mas estes túneis já foram habitados em tempos passados e, de acordo com o que lemos, os habitantes devem ter decaído a um nível incrivelmente baixo de vida. Que prova temos de que seus descendentes não continuaram vivendo nos horríveis buracos negros que Jonas viu sob o compartimento mais baixo? Ouça!

    Ele apagou a lanterna e ficamos na escuridão por alguns minutos. De algum lugar, ouvi um fraco e deslizante barulho rastejante. Deslizamos furtivamente para dentro do túnel.

    – É Jonas Kiles! – eu sussurrei, mas uma sensação gelada subiu e desceu por minha espinha.

    – Então, ele estava se escondendo lá embaixo – murmurou Conrad. – Os sons vêm da escada… como se algo rastejasse de baixo. Não ouso acender a lanterna… se ele estiver armado, pode sacar sua arma.

    Eu me perguntava por que Conrad, que tinha nervos de ferro na presença de inimigos humanos, estaria tremendo como uma folha. Eu me perguntava por que pingos gelados de horror sem nome estariam percorrendo minha espinha. E logo eu estava eletrizado. De algum lugar de trás do túnel, na direção pela qual havíamos chegado, ouvi outro som suave e repelente.

    E, naquele instante, os dedos de Conrad afundaram como aço em meu braço. Na escuridão tenebrosa sob nós, duas faíscas amarelas e oblíquas cintilaram subitamente.

    – Meu Deus! – veio o sussurro chocado de Conrad. – Não é Jonas Kiles!

    Enquanto falávamos, outro par se juntou ao primeiro – subitamente, a escuridão bem abaixo de nós estava viva com flutuantes brilhos amarelos, como estrelas malignas refletidas num golfo anoitecido. Eles fluíam escada acima em nossa direção, silenciosos exceto por aquele detestável som deslizante. Um nojento cheiro terroso fluía até nossas narinas.

    – Para trás, em nome de Deus! – ofegou Conrad, e começamos a recuar da escada, em direção ao túnel pelo qual tínhamos chegado. Então, veio subitamente a investida de algum corpo pesado através do ar, e, girando, atirei cega e a queima-roupa na escuridão. E meu grito, quando o tiro iluminou momentaneamente as sombras, foi ecoado por Conrad. No instante seguinte, corríamos pelo túnel como homens correndo do inferno, enquanto, atrás de nós, algo caía pesadamente, se debatia e espojava no chão, em suas convulsões de morte.

    – Acenda sua lanterna – ofeguei. – Não podemos nos perder nestes labirintos infernais.

    O raio de luz apunhalou a escuridão à nossa frente, e nos mostrou o corredor externo, onde havíamos visto pela primeira vez a seta. Lá, nós paramos por um instante, e Conrad dirigiu sua luz de volta ao túnel. Só vimos a escuridão vazia, mas, além daquele curto raio de luz, só Deus sabe que horrores rastejavam pela escuridão.

    – Meu Deus! Meu Deus! – Conrad ofegou. – Você viu? Você viu?

    – Não sei! – ofeguei. – Vislumbrei algo semelhante a uma sombra voadora, no clarão do tiro. Não era um homem… tinha a cabeça semelhante à de um cão…

    – Eu não estava olhando naquela direção – ele sussurrou. – Eu olhava escada abaixo, quando o clarão de sua arma cortou a escuridão.

    – O que você viu? – minha pele estava úmida de suor frio.

    – Palavras humanas não são capazes de descrever! – ele gritou. – A terra negra ganhou vida, como se houvesse vermes gigantes. A escuridão se aglomerando com vida blasfema. Em nome de Deus, vamos sair daqui… por este corredor, até o túmulo!

    Mas, quando demos um passo adiante, fomos paralisados por sons furtivos à nossa frente.

    – Os corredores estão inçados deles! – sussurrou Conrad. – Rápido! Pelo outro caminho! Este corredor segue a linha da colina e deve levar até a porta no Cabo do Contrabandista.

    Até o dia da minha morte, eu me lembrarei daquela fuga através daquele negro corredor silencioso, com o horror que se movia furtivamente aos nossos calcanhares. Por um momento, achei que algum espectro com presas de demônio pularia sobre nossas costas, ou sairia da escuridão à nossa frente. Então, Conrad, dirigindo sua luz turva para a frente, deu um soluço ofegante de alívio.

    – A porta, finalmente. Meu Deus, o que é isto?

    Quando sua lanterna brilhara sobre uma pesada porta com tranca de ferro, com uma chave pesada na fechadura maciça, ele havia tropeçado sobre algo que jazia caído ao chão. Sua luz mostrava uma contorcida forma humana, sua destruída cabeça jazendo numa poça de sangue. O rosto estava irreconhecível, mas conhecíamos a forma magra, ainda vestida em roupas de túmulo. A verdadeira Morte havia finalmente alcançado Jonas Kiles.

    – O grito quando passamos pelo Cabo esta noite! – sussurrou Conrad – Era seu guincho de morte! Ele havia retornado aos túneis, após se mostrar para seu irmão… e o horror caiu sobre ele na escuridão!

    Súbito, enquanto nos erguíamos sobre o corpo, ouvimos novamente aquele maldito e deslizante ruído rastejante na escuridão. Enlouquecidos, saltamos até a porta; giramos violentamente a chave e abrimos bruscamente a porta. Com um soluço de alívio, cambaleamos até a noite enluarada. Por um instante, a porta se abriu atrás de nós; logo, quando nos viramos para olhar, uma rajada feroz de vento a fechou.

    Mas, antes que ela se fechasse, uma figura medonha saltou em nossa direção, meio iluminada pelos esparsos raios de lua: o esparramado corpo mutilado e, sobre ele, uma cinza monstruosidade bamboleante – um horror de olhos flamejantes e cabeça de cão, tal como loucos veem em negros pesadelos. Logo, a porta que se fechara sumiu de vista, e fugimos através da inclinação sob o luar móvel. Ouvi Conrad balbuciar:

    – Crias dos fossos negros de loucura e noite eterna! Obscenidades rastejantes fervilhando no lodo das profundezas inimagináveis da terra… o horror supremo do retrocesso… o ponto mais baixo da degeneração humana… bom Deus, seus ancestrais eram homens! Os fossos sob a décima-quinta camada, para dentro de quais infernos de blasfemo horror negro eles afundam, e por quais hordas demoníacas são povoados? Deus proteja os filhos dos homens daqueles… Aqueles que moram sob as tumbas!




  • A VIRGEM DE CERA

    A VIRGEM DE CERA

    (Narrativa Irlandesa)
    Abraham Valdelomar (1888 – 1919)
    Tradução de Paulo Soriano

    Para o Dr. Castro Rojas


    I

    — O rei…

    — Sempre contos de realeza!…

    — Os reis são esplêndidos e generosos. Em suas cabeças triunfa o ouro cinzelado e em seus tronos riem as pedras da África. E tornam as nossas narrativas magníficas. Têm joias, mulheres e cavalos. Favoritas do Cairo e leitos de mármore rosa. Eles compram cantos dos trovadores sentimentais e as graves máximas dos filósofos; a honorabilidade dos gentis-homens, a discrição das damas e a fina condescendência dos cavaleiros.

    Falemos dos reis! Eles tornam esplêndidas nossas narrativas e enchem de pompa nossos pensamentos. O ouro dos reis!

    O palácio de campo da senhorita Indrash estava envolto por uma atmosfera de superstição. Não havia na aldeia quem tivesse atravessado as grades de seus jardins ou o mistério de seus aposentos. Uns diziam que viram a dama sair, à noite, rodeada por enormes vampiros que a mantinham escrava e se alimentavam de seu sangue. Outros diziam que ela roubava as crianças das aldeias para beber-lhes o sangue fresco. Outros mais diziam vê-la fugir, à noite, aos bosques das comarcas vizinhas.

    Certa feita, propagou-se na aldeia a notícia de que um peregrino, que havia chegado às grades do castelo, vira Indrah chorando atrás de umas sebes. Mais tarde chegou a dizer-se que a enigmática senhorita havia saído à noite, em procissão, pelas ruas da aldeia. O medo apavorou os singelos aldeões e, como ninguém mais voltou a sair de noite, as procissões se multiplicaram.

    Então começaram as súplicas e as orações públicas. Ofereceram sacrifícios de flores nos templos e queimaram cabelos de crianças nas chaminés. Por fim, guardaram as aves brancas nos sarcófagos e pensaram em oferecer em holocausto a mais jovem virgem. Apesar disto, um jovem camponês, ao voltar à noite da gelosia de sua amada, teve que ocultar-se apressado. A procissão estava passando…

    — Indrah ia nela?

    — Ia em meio a um grupo de encurvados, com aspecto de vampiros negros, dos quais só se viam os olhos. No centro, quase morrediça e apoiada nos braços de um deles, ia a virgem pálida de cera. Indrah tinha uma transparência opalina e nenhuma cor profanava a brancura da jovem. Os acompanhantes, com amplas capas escuras, ruminavam surdamente sonatas incompreensíveis.

    No dia seguinte, encontraram o camponês desorientado, vítima de uma crispação horrível. Morreu descrevendo entrecortadamente a procissão de Indrah. Então, na aldeia, ao medo sucedeu o espanto. Os homens começaram a preocupar-se; os velhos caminhavam taciturnos e encurvados, como se pensassem em algo sombrio; as mulheres não assomaram nos jardins secos e mortos; os rapazes já não iam ao campo; e as crianças, tristes e pálidas, dormiam nos cantos úmidos de seus casebres.

    A cada dia aparecia um cadáver crispado e aquele lugar tomou o aspecto de cidade morta. Os velhos calavam sempre, os jovens não se amavam, as crianças não riam e as mulheres eram vítimas de alucinações. Aquela raça começou a extinguir-se.

    II

    — Quem era Indrah?…

    — Ninguém sabia. Um aventureiro louco, um assassino original, um decepcionado ou um ser extraordinário vivia nos rochedos de um país do Norte, que dá para o mar, e onde não sai o sol. Era o rei Míndor.

    Para chegar à sua atalaia, era preciso cruzar os pampas, onde o vento zumbia sempre; um vento gelado que arrancava as roupas e rachava os lábios. Em doze jornadas se chegava ao castelo de Míndor. O rei tinha vassalos que traziam os viajantes perdidos, os quais, pela generosidade de Míndor, dormiam no castelo, depois de serem convidados a ceias extraordinárias, em que os viajantes ficavam loucos de prazer, por razões que alguns creem e atribuem a bebidas excitantes. Neste estado de felicidade suprema, os viajantes eram trasladados para o jardim do castelo, onde havia um poço circular com beirada de ônix. O poço tinha uma escadaria de mármore como a entrada de um palácio subterrâneo que, ao girar, lançava em suas profundezas aquele que pisava a famosa escadaria.

    Para lá eram levados os viajantes, ébrios de uma suprema felicidade, os quais, ao cair no poço, mesclavam-se aos cadáveres dos desgraçados que lhes haviam precedido nas ceias do castelo. Muitos homens ainda viviam, loucos, nesse poço, que era uma boca do inferno. Uma vez a cada vinte dias, ao pôr-se o Sol, abriam-se as portas enormes desse poço profundíssimo e sinistro. O rei, apoiado ao parapeito do poço, com sua taça de ouro, olhava, dominado por um prazer febril, quando as comportas se abriam e precipitavam-se as águas, pujantes e enormes, que tragavam num redemoinho os escombros humanos.

    Logo, o elemento selvagem enchia todo o poço e, então, fechavam-se as comportas e deixava-se sair a água novamente.

    — Mas… E quanto a Indrah?

    — Era a filha do rei. Certa tarde, os vassalos cavaleiros desenhavam suas silhuetas nos pampas frios e escuros da comarca. Pouco a pouco, as formas foram se tornando nítidas e já aos pés do castelo viram chegar um novo peregrino, um jovem louro, de cor ardente, com a tez seca e os lábios rachados. Indrah teve por ele um sentimento que jamais experimentara por qualquer dos viajantes que chegavam ao palácio para morrer no poço. Só os via durante os banquetes e as ceias que Míndor oferecia às suas vítimas. Desta vez, Indrah estava apaixonada.

    — Ela assistiu ao banquete?…

    — Sim. Com olhos de tristeza, ao ver os obséquios dispensados ao jovem, sofria horrivelmente. Ao terminar a ceia, quando Nildo — assim se chamava o mancebo — embriagara-se pelo efeito os vinhos dourados e tintos, os pajens levaram-no, numa cadeira, ao pequeno jardim do poço. Indrah, que havia visto tudo, seguiu o seu pai.

    — Ainda não, pai!

    Míndor não respondeu. Os pajens seguiram seu caminho entre as sebes e instalaram Nildo, que não se dava conta de nada, no anel do poço. O rei lhe dizia:

    — Mas te falta ver, mancebo louro, meus palácios encantados. Irás penetrar no maior e poderoso reino. Lá os jardins são eternos. Suaves e excitantes são os aromas das mulheres belas e pródigas. O Sol da manhã nunca se põe e os que foram aos meus reinos jamais regressaram. Gostarias de vê-lo?

    — Sim, magnífico!

    — Pai! — gritou Indran, num arranque gutural e selvagem. — Pai, este não!

    Nildo, sem nada perceber, sorria, pensando em deleites ainda melhores. Os lacaios fizeram-no entrar no poço por umas das escadarias de mármore que cobriam o horrível segredo. Nildo avançou tranquilamente.

    — Pai!…

    A escada girou. A pancada do homem sobre a água produziu um estalido que soou lugubremente no profundíssimo poço. O rei deitou o ouvido, enquanto Indrah, enlouquecida, se perdia através das sebes do jardim. O rei olhava, apoiado ao parapeito, com uma satisfação imensa. Via, em meio à escuridão do poço, como os homens famintos mordiam os dedos de Nildo e outros, loucos, riam da fúnebre aventura, em meio à lama daquele ninho infernal.

    — Abri as comportas! — gritou Míndor.

    E as águas enormes e selvagem se precipitaram, afogando, em seus redemoinhos, os gritos de dor, de loucura e os espasmos terríveis. O poço estava cheio.

    — Fechai!… Fechai mais depressa!…

    A água começou a chegar às bordas do anel do poço, em vez de retirar-se. O rei gritou mais forte ainda:

    — Fechai, vassalos, fechai mais depressa!…

    Na área das comportas ninguém respondia. O poço começou a transbordar louca e desordenadamente. Parecia que todo o mar se precipitava furioso por esse vórtice gigantesco. No fundo, houve um ranger de correntes e rasgaduras formidáveis; tremeu a terra em que pisava o monarca e tudo se perdeu no avassalador impulso das ondas. Uma monstruosa invasão do mar lançou-se sobre o palácio, inundou os jardins reais vertiginosamente e, em poucos instantes, aquilo era domínio do mar, que, depois de profanar as galerias do rei e salões de ouro, invadiu a região e lá permaneceu… permaneceu por muitos dias.

    — E indrah?

    Quando viu Nildo cair, louca e desesperadamente pegou as chaves das comportas, matou o velho guardião e abriu para sempre as goelas do selvagem elemento. Quando o seu pai exclamou “ Fechai, vassalos, fechai depressa as comportas!”, Indrah lançou as enormes chaves ao fundo do mar e fugiu em seguida…

    Ninguém sabe quando ela veio morar no palácio de campo daquele país, onde dizem os aldeões que sai nas noites procurando Nildo.

    — Mas, e os encurvados?….

    — Peregrinos jovens que ela havia salvado e que não mais a abandonaram. Nas noites de seu passeio, levavam-na com grande solicitude e, depois de passear pela cidade, voltavam à ao palácio antes do nascer do Sol.

    III

    Mas na aldeia morriam as pessoas, vítimas de espasmos horríveis. Certo dia, os habitantes se reuniram e combinaram surpreender o palácio de Indrah. Chamaram os campônios das regiões vizinhas e todos, à hora do crepúsculo, lançaram-se ao palácio armados de pedra, picaretas e enxadas.

    Atropelaram velhos guardas e penetraram no grande salão escuro onde acreditavam que iriam encontrar Idrah e os vampiros. Os antigos servidores de Indrah fugiram e, ao fazê-lo, deixaram cair o corpo da virgem, sobre o qual avançaram os aldeões.

    — Era o cadáver de Indrah?

    — Não. Era uma representação em cera que se fazia passar por ela. Indrah havia morrido com certeza e aqueles homens, em sua honra, fizeram-na viver naquele bloco modelado que, como se fosse a própria Indrah, levavam a passeio todas as noites na aldeia.

    — Quando fizeram o manequim?

    — Ninguém sabe ainda, mas quando se viaja aos países do Norte, frios, secos e cheios de atalaias, os velhos contam esta lenda da virgem de cera e o rei Mindor.

    Causa-nos muita melancolia viajar pelos países do Norte. Eles têm lendas muito tristes — a Europa não sabe disto — e, nos rochedos abruptos e abandonados, vivem ainda aqueles reis.

    Estás triste. Nem sempre são belos os contos de realeza.





  • O Sinaleiro

    Ilustração de “The Signal-man”, feita por Edward Dalziel, em 1866.


    O sinaleiro

    Charles Dickens
    (1866)


    — Olá! Você, aí embaixo!

    Quando ele ouviu uma voz chamando-o, estava à porta de sua cabine, com uma bandeira na mão, enrolada na sua vareta curta. Considerando-se a natureza da área, imaginar-se-ia que ele não pudesse duvidar de onde vinha a voz; mas em vez de olhar para cima, onde eu me postara no alto do patamar praticamente por sobre a sua cabeça, ele virou-se e olhou para a Linha abaixo. Havia algo de estranho na sua maneira de fazê-lo, mas eu não — absolutamente não —, poderia dizer o quê. Mas sei que era estranho o bastante para atrair minha atenção, embora sua silhueta estivesse parcialmente oculta e ensombrecida na passagem do nível abaixo, e a minha, bem acima dele, tão imersa no brilho incandescente de um crepúsculo rubro; sendo necessário proteger meus olhos com a mão antes de o ver.

    — Olá! Aí embaixo!

    Depois de olhar para a Linha abaixo, ele voltou novamente e, levantando os olhos, viu minha silhueta no alto.

    — Existe um caminho pelo qual eu possa descer e falar com você? — perguntei.

    Olhou para mim sem responder e olhei para ele, sem pressioná-lo imediatamente com uma repetição de minha pergunta ociosa. Foi então que houve uma vaga vibração no chão e na atmosfera, rapidamente transformando-se em uma violenta pulsação e progressiva agitação que me fez recuar, como se ela tivesse força para arrastar-me para baixo. Quando uma nuvem de vapor do trem veloz havia passado por mim, olhei novamente o nível inferior e o vi enrolando novamente a bandeira que ele desfraldara à passagem do trem.

    Repeti minha pergunta. Após uma pausa, durante a qual ele pareceu me olhar com uma atenção concentrada, acenou com sua bandeira enrolada em direção a um ponto em meu patamar, distante. Umas duas ou três centenas de jardas.

    — Está bem! — Respondi-lhe e desci àquele ponto.

    Lá, à força de olhar atentamente ao meu redor, encontrei um caminho escavado e irregular descendo em ziguezague, que segui.

    O entalhe era extremamente profundo e anormalmente abrupto. Era feito em pedra úmida, que se tornava mais gotejante e molhada à medida que eu descia. Por isso, o percurso foi lento o bastante para me dar tempo de recordar um ar singular de relutância ou obrigação com o qual ele me apontara o caminho.

    Após descer o zigue-zague o suficiente para vê-lo novamente, vi que ele se postara entre os trilhos pelos quais o trem passara recentemente, como se estivesse esperando que eu aparecesse. Tinha a mão esquerda no queixo e o cotovelo esquerdo pousava na mão direita, cruzada sobre o peito. Sua postura era de tal expectativa e cautela que me detive por um instante, surpreso.

    Retomei minha descida e, caminhando cautelosamente até o nível dos trilhos e aproximando-me dele, vi ser um homem moreno com aparência doentia, uma barba escura e sobrancelhas um tanto cerradas. Seu posto ficava no lugar mais solitário e lúgubre que eu jamais vira. De ambos os lados, um gotejante muro de pedras irregularmente recortadas, que a tudo ocultava, exceto uma faixa de céu; o panorama numa direção apresentava apenas um prolongamento torto desse grande calabouço; na outra direção, mais proximamente, avistava-se uma luz vermelha sombria e a entrada ainda mais sombria de um túnel negro, em cuja arquitetura maciça havia apenas um ar terrivelmente opressivo e irrespirável. Esse lugar recebia tão pouca luz do sol que exalava um cheiro de terra insuportável; e atravessava-o um vento tão frio que fiquei gelado, como se tivesse me distanciado do mundo real.

    Antes que ele se movesse, eu fiquei tão próximo que poderia tocá-lo. Sem tirar os olhos de mim nem mesmo então ele recuou um passo e levantou a mão.

    — Esse posto era solitário — disse eu. — E havia chamado minha atenção quando de lá de cima olhara para baixo.

    Raramente aparecia um visitante, eu supunha; mas essa seria uma raridade indesejável? Talvez em mim ele pudesse ver um homem que igualmente fora encerrado em limites estreitos durante toda a vida, mas que, finalmente livre, fora recentemente desperto para essas grandes obras. Assim dirigi-me a ele; mas não estou certo de que foram essas as palavras usadas, pois, além de eu não ser bom em entabular uma conversa, havia algo no homem que me intimidava.

    Ele lançou um olhar muito estranho para a luz vermelha perto da boca do túnel e perscrutou-a, como se algo estivesse faltando ali e depois olhou para mim.

    — Aquela luz fazia parte de sua ocupação? Não é?

    — Você sabe que sim — respondeu ele, numa voz baixa.

    Um pensamento terrível me veio à mente enquanto examinava atentamente os olhos fixos e o rosto saturnino, que se tratava não de um homem, mas de um espectro. Desde então tenho me perguntado se seu espírito não estava contaminado.

    Quanto a mim, recuei. Mas, ao fazê-lo, detectei em seus olhos algum medo latente de mim. Isso pôs a correr o pensamento terrível.

    — Você olha para mim como se me receasse — falei, forçando um sorriso.

    — Eu não tinha certeza — respondeu ele. —… Se o vira antes.

    — Onde?

    Ele apontou para a luz vermelha para onde olhara.

    — Lá? — disse eu.

    Com um olhar atento e cauteloso, ele respondeu (mas com voz inaudível) que sim.

    — Meu bom amigo, o que eu estaria fazendo lá? Mas, de qualquer forma, eu nunca estive lá, pode estar certo disso.

    — Acho que posso — repetiu ele. — Sim, acho que posso.

    Seu rosto se desanuviou, assim como o meu. Respondeu às minhas indagações com solicitude e palavras precisas. Ele tinha muito que fazer ali? Sim, diria que sim, tinha muitas coisas sob sua responsabilidade, mas o que se exigia dele eram pontualidade e atenção, não um trabalho real — manual. Para mudar aquele sinal, ajustar aquelas luzes e girar essa maçaneta de ferro de quando e quando era tudo que tinha a fazer. Com relação àquelas muitas horas longas e solitárias que me chamavam tanto a atenção, ele podia apenas dizer que a rotina de sua vida assim se acomodara e que a ela se habituara. Ele aprendera lá uma linguagem — se conhecê-la apenas pela visão e ter formado suas próprias ideias toscas de sua pronúncia pudesse ser chamado de aprendizado. Ele também trabalhava com frações e decimais e tentara um pouco de álgebra; mas tinha dificuldade, desde criança, com números. Era-lhe necessário, quando em serviço, permanecer sempre naquela corrente de ar úmido e não podia nunca subir para a luz do sol, por entre aqueles altos muros de pedra? Ora, isso dependia da hora e das circunstâncias. Sob certas circunstâncias, havia menos trabalho no Ramal do que nos outros, independente de horas diurnas ou noturnas. Quando o tempo estava bom, ele às vezes saía um pouco daquelas sombras inferiores; mas, como estava sempre sujeito a chamadas de sua campainha elétrica, e nessas ocasiões precisava ficar atento a ela com ansiedade redobrada, o alívio era menor do que eu poderia supor.

    Ele me levou ao seu cubículo, onde havia uma lareira, uma escrivaninha para um livro oficial no qual ele devia registrar certas entradas, um aparelho telegráfico com seu dispositivo de discagem, mostrador e agulhas e o pequeno sino de que falara. Quando expressei minha certeza de que ele perdoaria minha observação quanto ao fato de que era um homem instruído e (sem ofensa, esperava eu) talvez acima daquele cargo, ele observou que era extremamente raro encontrarem-se exemplos de ligeira discordância desse tipo entre uma grande quantidade de pessoas; que ouvira casos assim nas oficinas, na polícia, até mesmo naquele último recurso desesperado, o exército; e que ele sabia ser assim, mais ou menos, em qualquer equipe de uma grande companhia de estradas-de-ferro. Fora, quando jovem (se me fosse possível crer, sentado naquela cabine; até mesmo a ele era difícil crer), um estudante de filosofia natural e frequentara cursos; mas havia se comportado mal, perdido suas oportunidades, decaído, e nunca mais se recuperara. Não se queixava disso. Fizera sua cama e deitara-se nela. Era tarde demais para fazer outra.

    Tudo isso — que eu resumi aqui — ele o disse de jeito calmo, com seus olhares sérios divididos entre mim e o fogo. Ele intercalava a palavra “Senhor” de tempos em tempos e especialmente quando se referia a sua juventude: como se me pedisse para compreender que ele não pretendia ser senão o que eu nele via. Diversas vezes ele foi interrompido pelo sininho e precisou ler mensagens e enviar respostas. Uma das vezes, teve de postar-se além da porta e agitar uma bandeira enquanto um trem passava e trocar algumas palavras com o foguista. Observei que, no desempenho de seus deveres, ele era notavelmente pontual e atento, interrompendo seu discurso numa sílaba e permanecendo em silêncio até terminar o que tinha a fazer.

    Em suma, eu daria as melhores recomendações a respeito desse homem para esse emprego, salvo pela circunstância de que, enquanto falava comigo, interrompeu-se duas vezes, empalideceu, virou seu rosto para o sininho que não estava tocando, abriu a porta da cabine (que ficava fechada para impedir a umidade insalubre) e olhou para a luz vermelha próxima à boca do túnel. Em ambas as ocasiões voltou para o fogo com o ar inexplicável que eu observara, mas não fora capaz de definir, quando ainda estávamos muito distantes um do outro.

    Então, eu disse, quando me levantei para despedir-me:

    — Você quase me fez pensar que encontrei um homem feliz. (Mas devo confessar que o disse para animá-lo).

    — Creio que era — replicou ele, na voz baixa com que falara pela primeira vez. — Mas estou perturbado, senhor, estou perturbado.

    Ele teria retirado as palavras, se pudesse. Mas dissera-as, contudo, e eu rapidamente a agarrei.

    — Com o quê? O que o perturba?

    — É muito difícil explicá-lo, senhor. É algo sobre o que é muito difícil falar. Se algum dia o senhor me fizer outra visita, tentarei contar-lhe.

    — Mas eu tenho realmente a intenção de fazer-lhe outra visita. Diga-me, quando poderei fazê-lo?

    — Saio de manhã cedo e volto novamente amanhã às dez da noite, senhor.

    — Virei às onze.

    Mostrou-se agradecido e foi até a porta comigo.

    — Acenderei minha luz branca, senhor — disse ele, naquele seu tom de voz baixa que lhe era peculiar. — Até o senhor encontrar seu caminho para cima. Quando chegar lá, não grite! E quando estiver no topo, não grite!

    Sua atitude parecia fazer o lugar me parecer mais frio, mas eu nada mais disse senão “Está bem”.

    — E quando descer amanhã à noite, não grite! Permita-me fazer-lhe uma última pergunta. O que o fez gritar “Alô! Alô, aí embaixo” esta noite?

    — Sabe-se lá — disse eu. — Gritei algo assim…

    — Não assim, senhor. As palavras foram exatamente essas. Conheço-as bem.

    — Admito que foram essas as palavras. Eu as disse, sem dúvida, porque eu o vi embaixo.

    — Por nenhum outro motivo?

    — Por que outro? Que outro motivo poderia haver?

    — Não teve nenhuma sensação de que lhe eram comunicadas de algum modo sobrenatural?

    — Não.

    Ele me desejou boa noite e levantou sua lanterna. Andei pelo lado da linha de trilhos abaixo (com uma sensação muito desagradável de um trem vindo atrás de mim), até encontrar o lugar de subida. Era mais fácil subir do que descer, e eu voltei para meu hotel sem quaisquer incidentes.



    ***



    Pontualmente, coloquei meu pé no primeiro entalhe do zigue-zague na noite seguinte quando os relógios ao longe estavam batendo às onze horas. Ele estava a minha espera, no fundo, com sua luz branca acesa.

    — Não gritei — disse eu, quando nos aproximamos. — Posso falar agora?

    — Claro que sim, senhor.

    — Boa noite, então, aqui está minha mão.

    — Boa noite, senhor; aqui está a minha.

    Com isso, caminhamos lado a lado até sua cabine. Entramos, fechamos a porta e sentamo-nos ao lado do fogo.

    — Decidi, senhor — começou ele, inclinando-se para frente assim que nos sentamos e falando num tom pouco acima de um sussurro. — Que não precisará perguntar duas vezes sobre o que me perturba. Tomei o senhor por outra pessoa ontem à noite; o que me perturba.

    — Esse engano?

    — Não. A outra pessoa.

    — Quem é ela?

    — Não sei.

    — Parecida comigo?

    — Não sei. Nunca vi o rosto. O braço esquerdo está na frente do rosto, e o braço direito está acenando. Acenando com violência. Assim.

    Segui seu gesto com meus olhos e era o de um braço a agitar-se com extrema comoção e veemência; “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”.

    — Numa noite enluarada — disse o homem. — Eu estava sentado aqui quando ouvi uma voz gritar “Alô! Aí embaixo!”. Fiz um movimento, olhei daquela porta e vi essa pessoa de pé, ao lado da luz vermelha perto do túnel, acenando exatamente como lhe mostrei agora. A voz parecia rouca de tanto gritar e gritava: “Cuidado! Cuidado!” E, depois novamente “Alô! Aí embaixo! Cuidado!”. Peguei minha lanterna, acendi a luz vermelha e corri em direção à figura, dizendo “O que há de errado? O que aconteceu? Onde?” Eu estava perto da escuridão do túnel. Avancei para bem perto dele, pois estranhei o fato de manter a manga diante de seus olhos. Corri para ele e, quando estendi minha mão para puxar a manga, ele desapareceu.

    — Dentro do túnel? — indaguei.

    — Não. Corri para dentro do túnel, quinhentas jardas. Parei e levantei minha lanterna acima da cabeça e vi as figuras de uma certa distância e as gotas de umidade descendo pelas paredes e escorrendo pelo arco. Corri para fora novamente, mais rápido do que correra para dentro dele (pois tenho um pavor mortal do lugar) e olhei tudo em volta da luz vermelha com a minha própria luz vermelha e subi a escada de ferro até a galeria acima e desci novamente, correndo de volta para cá. Telegrafei para ambos os lados. “Houve um alerta. Alguma coisa errada?”. A resposta de ambos foi “Está tudo certo?”.

    Afastando o lento toque de um dedo gelado a subir pela minha espinha, expliquei-lhe que aquela imagem devia ser uma ilusão de óptica e que se sabia que essas imagens, originadas por doença dos nervos delicados que comandam as funções dos olhos, muitas vezes perturbavam os pacientes, alguns dos quais haviam reconhecido a natureza de sua ansiedade e até mesmo comprovado-a por experiências consigo mesmos.

    — Quanto ao grito imaginário — expliquei. — Ouça apenas por um momento o vento nesse vale artificial enquanto falamos com vozes tão baixas e como ele faz dos fios do telégrafo uma harpa extremamente sonora!

    — Tudo isso estava muito certo — respondeu ele, depois que já estávamos sentados por bons minutos, e já deveria ter pensado no vento e nos fios, ele que tantas vezes passara longas noites de inverno ali, sozinho e em vigília. Mas rogou-me atentar para o fato de que ainda não terminara.

    Pedi desculpas, e ele lentamente acrescentou estas palavras, tocando em meu braço:

    — Seis horas após a Aparição, aconteceu o famoso acidente desta Linha e durante dez horas os mortos e feridos foram trazidos de dentro do túnel, sobre o ponto em que estivera a imagem.

    Um calafrio desagradável subiu-me pelo corpo, mas fiz o possível para ignorá-lo. Era inegável, repliquei, que se tratava de uma coincidência notável e na medida certa para impressioná-lo. Mas era inquestionável que coincidências notáveis ocorriam sempre e que elas devem ser levadas em conta ao lidar com assuntos desse tipo. Embora eu certamente devesse admitir, acrescentei (pois julgava prever que ele iria contra-argumentar) que homens de bom senso geralmente não incluem coincidências nas previsões dos acontecimentos cotidianos.

    Ele novamente rogou-me que atentasse para o fato de que não terminara.

    Novamente pedi desculpas por tê-lo interrompido.

    — Isso — disse ele, pondo a mão em meu braço de novo e olhando por sobre o ombro com olhos vazios. — Aconteceu exatamente um ano atrás. Seis ou sete meses se passaram, e eu me recobrara da surpresa e do choque quando uma manhã, ao amanhecer, de pé naquela porta, olhei para a luz vermelha e vi o espectro novamente.

    Ele parou, com um olhar fixo para mim.

    — Ele gritou?

    — Não. Ficou em silêncio.

    — Ele acenou?

    — Não. Encostou-se ao poste da lanterna, com às duas mãos diante do rosto. Assim.

    Mais uma vez, segui seu gesto com os olhos. Era um gesto de luto. Já vi essa postura em figuras de pedra sobre túmulos.

    — Você foi até ele?

    — Entrei e sentei-me, em parte para recobrar o domínio de meus pensamentos, em parte porque me sentia a ponto de desmaiar. Quando fui novamente até a porta, a luz do dia brilhava e o fantasma desaparecera.

    — Mas nada mais aconteceu? Foi tudo?

    Ele me tocou o braço com seu dedo indicador duas ou três vezes, acompanhando cada um desses gestos com uma inclinação da cabeça, aterrorizado.

    — Naquele mesmo dia, quando um trem saiu do túnel, notei, numa janela do vagão para o meu lado, o que parecia uma confusão de mãos e de cabeças, e algo acenava. Eu o vi, a tempo de fazer um sinal para o foguista parar. Ele desligou e freou, mas o trem arrastou-se outras cento e cinquenta jardas ou mais. Corri para ele e, enquanto o acompanhava, ouvi gritos agudos e choros terríveis. Uma bela e jovem senhora morrera instantaneamente em um dos compartimentos e foi trazida para cá; deitaram-na neste chão, aqui, entre nós dois.

    Involuntariamente, recuei minha cadeira, enquanto meu olhar ia das tábuas para as quais ele apontava para ele próprio.

    — Verdade, senhor. Verdade. Foi exatamente assim que aconteceu, estou lhe dizendo.

    Eu não conseguia pensar em nada para dizer, nada que conviesse, e minha boca estava muito seca. O vento e os fios receberam a história com um longo gemido de lamento. Ele recomeçou:

    — Agora, senhor, ouça bem e avalie a perturbação de meu espírito. O espectro voltou, uma semana atrás. Desde então, ele está lá, de quando em quando, intermitentemente.

    — Ao lado da lanterna?

    — Ao lado da lanterna de alerta.

    — O que ele parece estar fazendo?

    Ele repetiu, se possível com uma emoção e veemência maior, a gesticulação anterior de “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”. Depois continuou:

    — Não tenho paz ou tranquilidade por causa disso. Ele me chama, durante minutos seguidos, de uma forma angustiada, “Aí embaixo! Cuidado! Cuidado!” Ele fica acenando para mim. Ele toca meu sininho…

    Nesse momento, eu o interrompi:

    — Ele tocou seu sino ontem à noite, quando eu estava aqui e você foi até a porta?

    Duas vezes.

    — Ora, veja — disse eu — Como sua imaginação o engana. Meus olhos estavam no sino, e meus ouvidos atentos, e se estou vivo, ele NÃO tocou então. Não, nenhuma vez, exceto do modo natural das coisas físicas, quando a estação comunicou-se com você.

    Ele balançou a cabeça e disse:

    — Eu nunca me enganei, senhor. Nunca confundi a badalada do espectro com a humana. O badalar do fantasma é uma vibração estranha no sino, que não provém de nada mais, e não afirmei que não se vê o sino balançar. Não surpreende que o senhor não o tenha ouvido. Mas eu ouvi.

    — E o espectro pareceu estar lá, quando você olhou para fora?

    — Ele estava lá.

    — Ambas às vezes?

    Repetiu com firmeza:

    — Ambas às vezes.

    — Você poderia ir até à porta comigo e procurá-lo agora?

    Ele mordeu o lábio inferior como se relutasse um pouco, mas levantou-se. Abri a porta e fiquei no degrau, enquanto ele se deteve na soleira. Ali estavam as altas paredes de pedras molhadas do entalho. Ali estavam as estrelas bem acima delas.

    — Você o vê? — perguntei-lhe, observando atentamente seu rosto.

    Seus olhos estavam arregalados e fatigados; mas não muito mais do que haviam estado os meus quando os dirigira atentamente para o mesmo ponto.

    — Não — respondeu ele. — Ele não está lá.

    — Exatamente — disse eu.

    Entramos novamente, fechamos a porta e sentamo-nos. Eu estava pensando em como aproveitar essa vantagem, se é que podemos chamá-la assim, quando ele retomou a conversa de um modo tão direto, admitindo que não poderíamos discordar seriamente diante do fato, que senti estar em uma posição muito desfavorável.

    — A esta altura o senhor compreenderá perfeitamente — disse ele. — Que o que me perturba de modo tão terrível é a pergunta: o que quer dizer o espectro?

    — Eu não tinha certeza — disse-lhe eu. — De tê-lo compreendido perfeitamente.

    — Ele está me avisando do quê? — disse ele, ruminando, os olhos no fogo e apenas de vez em quando os voltando para mim.

    — Qual é o perigo? Onde está o perigo? Há um perigo à espreita, em algum lugar na linha. Alguma terrível desgraça está para acontecer. Quanto a isso não há dúvida, nesta terceira vez, depois do que aconteceu antes. Mas com certeza isso me atormenta. O que posso fazer?!

    Ele tirou seu lenço e enxugou as gotas de suor de sua testa febril.

    — Se eu telegrafar “Perigo”, para um dos lados ou para ambos, não posso alegar nenhum motivo para tanto — continuou ele, enxugando as palmas das mãos. — Eu iria me arrumar problemas e não adiantaria nada. Eles pensariam que estou louco. O que sucederia seria isto: mensagem “Perigo! Cuidado!” Resposta: “Que Perigo? Onde?” Mensagem: “Não sei. Mas, pelo amor de Deus, cuidado!” Eles me demitiriam. O que mais poderia fazer?

    Seu sofrimento causava grande pena. Era a tortura mental de um homem consciencioso, oprimido intoleravelmente por uma responsabilidade ininteligível que envolvia vidas.

    — Quando ele ficou pela primeira vez sob a luz de perigo — continuou, afastando da testa seus cabelos escuros e esfregando as mãos pelas têmporas, num gesto de desespero febril — Por que não me dizer onde esse acidente devia acontecer; se ele devia acontecer? Por que não me dizer como ele poderia ter sido evitado; se ele pudesse ser evitado? Quando de sua segunda aparição, ele escondeu o rosto; por que, em vez disso, não me disse, “Ela vai morrer. Diga-lhes para mantê-la em casa?” Se ele viesse, nessas duas ocasiões, apenas para me mostrar que seus avisos eram verdadeiros e, portanto para preparar-me para o terceiro, por que simplesmente não me avisar agora? E eu, Deus me ajude, um simples e pobre sinaleiro neste lugar solitário! Por que não ir até alguém com credibilidade e poder para agir?!

    Quando o vi nesse estado, compreendi que, em favor do pobre homem, assim como para a segurança do público, o que me cabia fazer no momento era acalmá-lo. Consequentemente, deixando de lado toda discussão entre nós sobre o que era real e o que não era, argumentei com ele que quem quer que exercesse tão conscienciosamente sua função fazia-o bem, e que ao menos para seu consolo ele compreendia seu dever, embora não compreendesse essas aparições malditas. Nesse esforço eu me saí muito melhor do que na tentativa de convencê-lo de que estava errado. Ele ficou calmo; as ocupações inerentes a seu posto, à medida que a noite avançava, começaram a requisitar cada vez mais sua atenção, e eu o deixei às duas da manhã. Eu me ofereci para ficar a noite toda, mas ele absolutamente não quis.

    Que eu mais de uma vez olhei para trás, para a luz vermelha, enquanto subia pelo caminho, que eu não gostava da luz vermelha e que teria dormido muito mal se minha cama estivesse sob ela são fatos que não vejo motivo para esconder. Nem gostei das duas sequências do acidente e da moça morta. Não vejo motivo para esconder isso também.

    Mas o que mais me ocupava o pensamento era a reflexão sobre como deveria agir, agora que me fora feita uma tal revelação. Eu verificara que o homem era inteligente, atento, escrupuloso e pontual; mas por quanto tempo ele continuaria assim, nesse estado de espírito? Apesar de sua posição subordinada, ele tinha uma responsabilidade da maior importância. Gostaria eu (por exemplo) de apostar minha própria vida nas possibilidades de ele continuar a executá-la com perfeição?

    Incapaz de superar uma sensação de cometer de certa forma uma traição se comunicasse aos seus superiores na Companhia o que ele me dissera, sem primeiro ter uma conversa franca e propor uma solução intermediária para ele, resolvi por fim oferecer-me para acompanhá-lo (e também guardar segredo por uns tempos) ao melhor médico especialista que pudéssemos consultar na região e pedir sua opinião. Uma mudança no seu turno de serviço ocorreria na noite seguinte, segundo ele me informara; ele estaria livre uma hora ou duas após o amanhecer e voltaria logo depois do anoitecer. Tínhamos marcado nosso encontro conforme esse esquema.

    A noite seguinte estava agradável, e eu saí cedo de casa, a fim de desfrutá-la. O sol ainda não se pusera quando atravessei a calçada próxima do topo do entalhe profundo. Eu estenderia minha caminhada por uma hora, disse comigo, meia hora para ir e meia hora para voltar, e então já seria hora de ir à cabine do meu sinaleiro.

    Antes de prosseguir meu passeio, pisei na borda e mecanicamente olhei para baixo, no lugar de onde o vira pela primeira vez. Não consigo descrever o calafrio que me percorreu quando, junto à boca do túnel, vi o vulto de um homem, com sua manga esquerda sobre os olhos, acenando veementemente com o braço direito.

    O indizível horror que me sufocava passou num minuto, pois logo vi que esse vulto era de fato um homem e que havia um pequeno grupo de outros homens em pé a uma pouca distância dali, para quem ele parecia estar encenando o gesto que fizera. A luz de perigo ainda não estava acesa. Junto ao poste, estava uma pequena tenda baixa, que nunca vira antes, com suportes de madeira e lona. Não parecia maior do que uma cama.

    Com uma sensação inelutável de que havia algo errado — com um súbito medo do sentimento de culpa pelo erro fatal de ter deixado o homem ali e não ter feito com que enviasse alguém para supervisioná-lo ou corrigir o que ele fazia — desci o caminho chanfrado o mais depressa que pude.

    — O que aconteceu? — perguntei aos homens.

    — O sinaleiro foi morto esta manhã, senhor.

    — Não é o homem daquela cabine, é?

    — É sim, senhor.

    — O homem que conheço?

    — O senhor o reconhecerá, se o conhecia — disse o homem que era um porta-voz, descobrindo solenemente sua própria cabeça e levantando uma ponta da lona. — Pois seu rosto não se alterou.

    — Meu Deus! Como isso aconteceu, como isso aconteceu? — perguntei, virando para um e para outro, enquanto a cabine era novamente fechada.

    — Ele foi morto por uma locomotiva, senhor. Ninguém na Inglaterra conhecia melhor seu trabalho do que ele. Mas, não se sabe por quê, ele não saiu do trilho externo. Foi em pleno dia. Ele havia acendido a luz e tinha na mão a lanterna. Quando a locomotiva saiu do túnel, ele estava de costas para ela e foi atingido. Aquele homem ali estava no comando e mostrando como aconteceu. Mostre a este cavalheiro, Tom.

    O homem, que usava uma capa tosca e escura, recuou para o lugar onde estivera antes, junto à boca do túnel.

    — Depois da curva do túnel, senhor — disse ele. — Eu o vi no fim, como que numa luneta. Não deu tempo de diminuir a velocidade, e eu sabia que ele era muito cuidadoso. Como ele pareceu não ouvir o apito, eu desliguei a máquina quando estávamos próximos dele e chamei-o o mais alto que pude.

    — O que você disse?

    — Eu disse “Alô, aí embaixo! Cuidado! Cuidado! Pelo amor de Deus, saia do caminho!”

    Levei um choque.

    — Ah!Foi horrível, senhor. Eu não parei de gritar para ele. Pus meu braço na frente dos olhos, para não ver, e acenei este outro até o último momento; mas de nada adiantou.

    Para não prolongar a narrativa com detalhes acerca de algumas das estranhas circunstâncias mais do que de outras, posso, ao encerrá-la, sublinhar a coincidência de que o alerta do maquinista da locomotiva incluía não apenas as palavras que o infeliz sinaleiro repetira para mim e que dizia persegui-lo, mas também as palavras que não ele, mas eu próprio associara — e apenas mentalmente — ao gesto que ele imitara.