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Categoria: Policial
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A TATUAGEM – Saki (Conto)
A TATUAGEMSaki (Hector Hugh Munro)(1870-1916)Tradução de Paulo Soriano— O jargão artístico dessa mulher me cansa — disse Clovis a seu amigo jornalista. — Adora dizer que certos quadros “crescem sobre nós”, como se fossem uma espécie de fungo.
— Isso me lembra — disse o jornalista — a história de Henri Deplis. Eu já lhe contei alguma vez?
Clovis negou com a cabeça.
— Henri Deplis era por nascimento um nativo do Grão-Ducado de Luxemburgo. Em razão de uma reflexão mais madura, converteu-se em caixeiro-viajante. Suas atividades frequentemente o levavam além dos limites do Gão-Ducado e, estando numa pequena cidade do norte da Itália, chegaram-lhe notícias de que havia recebido um legado de um parente distante, que havia falecido.
Não era um grande legado, ao menos do modesto ponto de vista de Henri Deplis. Ainda assim, o impeliu a umas extravagâncias aparentemente inofensivas. Em particular, o levou a patrocinar a arte local, representada pelas agulhas de tatuagens do Signor Andreas Pincini. O Signor Pincini era, talvez, o mais brilhante mestre de tatuagem que a Itália havia conhecido, mas estava decididamente empobrecido, e pela soma de seiscentos francos empreendeu alegremente a tarefa de cobrir as costas de seu cliente, desde a clavícula até a cintura, com uma brilhante representação da Queda de Ícaro. O desenho, quando finalmente desenvolvido, causou uma ligeira desilusão no Sr. Deplis, que havia imaginado que Ícaro era uma fortaleza tomada por Wallenstein[1] na Guerra dos Trinta Anos, mas ficou mais que satisfeito com o trabalho executado, que foi aclamado por todos os que tiveram o privilégio de vê-lo como a obra-prima de Pincini.
Foi o seu maior esforço e o último. Sem sequer esperar o pagamento, o ilustre artesão deixou este mundo e foi enterrado em uma tumba ornamentada, cujos querubins alados proporcionavam pouco campo de aplicação para o exercício de sua arte favorita. Ficava, todavia, a viúva de Pincini, a quem eram agora devidos os seiscentos francos. Em sequência, veio à tona a grande crise na vida de Henri Deplis, caixeiro-viajante. O legado, sob o peso de numerosas cobranças, havia minguado a uma proporção insignificante, e quando uma premente fatura de vinho e diversas outras coisas correntes haviam sido pagas, restava pouco mais de quatrocentos e trinta francos para oferecer à viúva. A dama estava justamente indignada. Não tanto, como explicou voluvelmente, devido à sugestão de suprimir-se da dívida cento e setenta francos, mas sobretudo pelo intuito de diminuir o valor da reconhecida obra-prima do seu marido falecido. Em uma semana, Deplis se viu obrigado a reduzir a sua oferta a quatrocentos e cinco francos, o que atiçou a indignação da viúva, convolando-a em fúria. Cancelou a venda da obra de arte e, alguns dias depois, Deplis se inteirou, consternado, de que a viúva a doara a obra-prima à municipalidade de Bérgamo que, agradecida, a aceitou. Deixou a vizinhança o mais discretamente possível e se sentiu genuinamente aliviado quando seus negócios os levaram a Roma, onde esperava que sua identidade e a da famosa obra de arte pudessem perder-se de vista.
Mas Deplis carregava nas costas o peso do gênio do defunto. Certo dia, ao aparecer no fumegante corredor de um banho a vapor, foi imediatamente obrigado a vestir as roupas. Partia a ordem do proprietário, um italiano do Norte, que se recusou enfaticamente a permitir que a celebrada Queda de Ícaro fosse exibida em público sem a permissão da municipalidade de Bérgamo. O interesse público e a vigilância oficial aumentaram quando a questão foi mais amplamente conhecida, e Deplis já não mais podia tomar um simples banho no mar ou num rio nas tardes mais tórridas, a menos que se cobrisse até a clavícula com um grande traje de banho. Depois, as autoridades de Bérgamo conceberam a ideia de que a água salgada podia ser prejudicial à obra de arte e engendraram um perpétuo interdito que impedia ao atormentado caixeiro-viajante banhar-se no mar em qualquer circunstância. Este se sentiu ardentemente agradecido quando a firma, da qual era empregado, o destinou a um novo ramo de atividades na região de Bordeaux. Seu agradecimento, todavia, cessou na fronteira franco-italiana. Um imponente destacamento de forças oficiais impediu a sua partida, lembrando-o, severamente, de que uma lei específica proibia a exportação de obras de arte italianas.
Esse fato deu origem a uma reunião diplomática entre os governos italiano e luxemburguês, e em um dado momento a conjuntura europeia enturvou-se com a possibilidade de problemas. Mas o governo italiano se manteve firme. Declinou absolutamente das peripécias e mesmo da existência de Henri Deplis, caixeiro-viajante, e permaneceu inflexível em sua decisão de que a Queda de Ícaro (obra do falecido Pincini, Andreas), atualmente propriedade da municipalidade de Bérgamo, não devia jamais abandonar o país.
O alvoroço arrefeceu com o tempo, mas o infeliz Deplis, que estava constitucionalmente em condições de retrair-se, encontrou-se novamente, alguns meses mais tarde, no centro de uma furiosa controvérsia. Certo especialista em arte de nacionalidade alemã, que obtivera da municipalidade de Bérgamo a permissão para inspecionar a famosa obra-prima, declarou que era um Pincini falso, provavelmente obra de um discípulo que o mestre havia acolhido nos anos de sua decadência. A declaração de Deplis sobre o assunto carecia, obviamente, de valor, porquanto estivera sob a influência dos habituais narcóticos durante o longo processo de agulhar a estampa. O editor de uma revista italiana de arte refutou as opiniões do especialista alemão e se propôs a demonstrar que a vida privada do expert não se adequava a nenhum critério moderno de decência. A totalidade da Itália e Alemanha se entrelaçou na disputa, houve cenas tempestuosas no parlamento espanhol, e a Universidade de Copenhague outorgou uma medalha de ouro ao especialista alemão (enviando depois uma comissão para examinar as suas provas in situ), enquanto que dois estudantes poloneses em Paris se suicidaram para mostrar o que pensavam sobre o assunto.
Entretanto, o miserável portador humano da obra de arte não ia melhor do que antes, e não surpreende que caísse nas fileiras dos anarquistas italianos. Pelo menos quatro vezes foi escoltado até a fronteira como um perigoso e indesejável estrangeiro, mas era sempre trazido de volta com a Queda de Ícaro (atribuído a Pincini, Andreas, princípios do século XX). E depois, num certo dia, em um congresso anarquista de Gênova, um camarada trabalhador, no calor do debate, derramou uma ampola de líquido corrosivo em suas costas. A camisa vermelha que usava mitigou os efeitos, mas o Ícaro ficou arruinado a ponto de tornar-se irreconhecível. Seu agressor foi severamente admoestado por atacar um companheiro anarquista e foi condenado a sete anos de prisão por destruir um tesouro de arte nacional. Mal abandonou o hospital, Henri Deplis foi obrigado a cruzar a fronteira como um estrangeiro indesejável.
Nas ruas mais tranquilas de Paris, especialmente na vizinhança do Ministério de Belas Artes, pode-se encontrar, às vezes, um homem deprimido e ansioso que, se perguntado pelas horas, responderá com um sotaque ligeiramente Luxemburguês. Abriga a ilusão de que é um dos braços perdidos da Vênus de Milo, e espera convencer o governo francês a comprá-lo. Em todos os outros assuntos, creio que ele está razoavelmente são.
Publicado em: Contos de terror
[1] Albrecht von Wallenstein (1583 – 1634), general boêmio, lutou em favor de Fernando II, imperador do Sacro-Império Romano-Germânico, na Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648).
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O CASO DE LADY SANNOX
Arthur Conan Doyle(1859 – 1930)Todos conheciam as relações do ilustre médico Douglas Stone e de Lady Marion Sannox, figura brilhantíssima dos círculos sociais. Por isso mesmo, não faltou quem tecesse comentários quando se divulgou a notícia de que Lady Sannox havia-se recolhido a um convento e de que o famoso cirurgião Douglas Stone, o homem dos nervos de ferro, fora encontrado pelos criados, certa manhã, sentado em frente ao leito, rindo como um demente, abraçado a um almofadão… O seu grande talento se diluíra nas trevas da loucura.Douglas Stone era notável pelo sangue frio, precisão e equilíbrio com que realizava as mais difíceis operações. Entre os grandes cirurgiões de Londres, ele era dos que conseguiam maiores rendas em virtude de sua numerosíssima e distinta clientela. Sempre inclinado a divertir-se, sem tomar nada a sério, prendeu-se subitamente aos encantos de Lady Sannox. Entretanto, ela, se bem que para ele fosse a única, não o tinha, nem podia ter, na mesma conta.Lorde Sannox era um cavalheiro silencioso, reservado que, embora contasse apenas trinta e seis anos, parecia ter cinquenta. Afeiçoado ao cultivo das flores, amava a quietude do lar. Outrora a sua paixão favorita fora o teatro e até mesmo o explorara, como se explora um negócio qualquer. Foi então que conheceu a senhorita Marion Dawson, com quem contraiu matrimônio. Depois, perdeu o entusiasmo pelo teatro e passou a se dedicar apenas às orquídeas e aos crisântemos.Conheceria ele a vida frívola de sua esposa? Sofreria com resignação ou ignorava o que se passava? Todos faziam essa pergunta. E já não cabia dúvida: ele sabia até que ponto chegava o flerte de Lady Sannox e Douglas Stone. Os rumores da maledicência se espalhavam. As sociedades científicas já pretendiam riscar o nome de Douglas da lista de seus sócios.O idílio, entretanto, prosseguia.Uma noite, borrascosa e úmida, Douglas Stone esperava, nos seus aposentos, que chegasse a hora do seu encontro com Lady Sannox, combinado desde a véspera. Eram oito e meia e já se dispunha a pedir o seu coche, quando ouviu soar a campainha e ouviu, instantes depois, passos no corredor. O criado logo apareceu e anunciou:— Um cavalheiro deseja falar com o doutor. Parece-me que vem chamá-lo para atender a um doente… Aqui tem o seu cartão.Stone leu no quadrângulo de cartolina: “Hamil Alismyrna”. Disse ao criado:— Tenho que pedir-lhe que me dispense. Tenho um compromisso… Faça-o entrar, Jim. Preciso falar-lhe.O criado deu entrada a um homem baixo, raquítico, ligeiramente corcunda e cujo semblante contraído revelava acentuada miopia. A tez era escura, a barba e o bigode inteiramente negros e trazia nas mãos um turbante de musselina, com listras negras e roxas.— Boa noite, cavalheiro — disse-lhe Douglas. — Suponho que o senhor fala inglês, não é mesmo?— Sim, ainda que com certa dificuldade. Sou da Ásia Menor…— Deseja que eu o acompanhe a alguma parte?— Sim, doutor. Desejo que venha ver minha esposa.— Mas esta hora é demasiado tarde.— Porém, o caso é de urgência — replicou o turco. — Aqui tem o doutor cem libras pelos seus serviços e prometo que não durará uma hora…Douglas Stone mirou o punhado de moedas reluzentes que o estrangeiro lhe estendia e, em seguida, o relógio. Verificou que, com a demora de uma hora apenas, o seu encontro não ficaria prejudicado. Assim, resolveu não perder tão boa ocasião.— De que se trata? — perguntou.— De um caso muito triste. Já ouviu o doutor falar nas adagas dos almóadas?— Não.— Pois bem, são umas adagas muito antigas, de uma forma particular, com uma empunhadura parecida com as que vocês chamam de estribo. Sou comerciante de antiguidades e vim a Londres a negócios, devendo regressar a Esmirna na semana vindoura. Entre as curiosidades que eu trouxe, há uma daquelas armas…— Permita-me recordar-lhe que eu tenho um compromisso e que é necessário dispensar os detalhes e limitar-se ao fato, que é apenas o que me interessa…— É de suma importância o que estou relatando. Acontece que minha esposa desmaiou no quarto em que tenho as mercadorias e, caindo, feriu-se no lábio com essa maldita adaga.— Compreendo. Quer o senhor que eu faça a sutura da ferida…— Não. O caso é mais grave. A adaga está envenenada.— Envenenada?— Sim. E não se sabe se existe algum contraveneno. As pessoas feridas dormem, em profundo sono, durante trinta horas… E depois, a morte…— Mas, se não há cura, por que razão quer pagar-me tanto dinheiro?— Com remédios nada se conseguirá. Mas meu pai costumava dizer: “Se a ferida foi no dedo, é necessário cortá-lo”. Teremos de usar o bisturi. O veneno somente depois de muitas horas se espalha no organismo. Nas primeiras, fica concentrado no lugar da ferida. Imagine, porém, o lugar em que se feriu minha esposa… No lábio. É terrível!— Mas, se é a única salvação, é melhor perder o lábio do que a vida — replicou Stone, que, tomando a sua caixa cirúrgica, se pôs a caminho com o turco, que deixara um automóvel à porta.Quando chegaram à casa do mercador, uma velha, que trazia uma lâmpada na mão, veio abrir a porta.— Como está? — perguntou com angústia o comerciante. —Já falou?— Não, senhor — respondeu a velha. — O seu sono continua tão profundo como quando a deixou…E ambos seguiram a velha, entrando em um aposento de aspecto oriental, cheio de figuras grotescas, de utensílios primitivos, de armas exóticas, iluminado por uma débil lâmpada de azeite. Deitada sobre um sofá, estava uma mulher, com o rosto coberto pelo yashmak, o véu que as mulheres turcas costumam usar. A parte inferior do rosto estava descoberta e o médico pôde ver, no lábio inferior, uma pequena — mas profunda — incisão.— Peço permissão para que ela conserve o yashmak — disse o turco —, pois os nossos costumes religiosos impõem às nossas mulheres esse dever.O médico nem sequer respondeu. Para ele, ali não havia uma mulher, mas apenas um caso médico. Auscultou-a e, como não notasse sintoma algum, declarou que achava que poderia adiar a operação. O turco, porém, novamente o advertiu de que o veneno era mortal e que só a operação imediata poderia salvá-la.— O senhor assegura, por experiência própria, que é indispensável a operação? — indagou Stone, levado pelo escrúpulo profissional.— Juro por tudo quanto há de mais sagrado!— O rosto dela, todavia, vai ficar horrivelmente desfigurado.— Estou certo de que a sua boca já não inspirará o desejo de um beijo… Mas é necessário… É imprescindível…Ao ouvir esse brutal comentário, Douglas Stone voltou-se bruscamente. Não era ocasião para entrar em discussões. Apanhou os seus instrumentos cirúrgicos e aproximou a lâmpada. Sob o véu, apenas se distinguia o brilho amortecido dos olhos da narcotizada. O médico quis fazer uso do clorofórmio. O turco, porém, se opôs, declarando que o veneno da adaga por si só já produzia uma espécie de quase letargia. Douglas tomou o bisturi e, com três rápidos cortes, seccionou o lábio inferior da enferma.A mulher, soltando um grito de terror, ergueu-se do sofá. O véu caiu. E, apesar do sangue que lhe banhava o rosto, dolorosamente mutilado, Stone verificou que conhecia intimamente aquela mulher.Olhou para o homem que o levara àquela casa sombria. Esse, rapidamente, arrancou a barba e o bigode. Em vez do turco de Esmirna, era Lorde Sannox quem diante dele aparecia. Douglas Stone quedara mudo e imóvel, pela surpresa assombrosa. A mulher, soluçando, deixou pender a cabeça maravilhosamente loura. E Lorde Sannox sorria…Foi ele quem primeiro falou:— A operação era, na realidade, indispensável a Marion. Não física, mas moralmente. O doutor não concorda comigo?Douglas Stone não respondeu. Não ouvia nada.— Há tempos eu queria dar-lhes um pequeno castigo — prosseguiu Lorde Sannox. — Saiu tudo às mil maravilhas… Só lastimo que o doutor não tivesse a perspicácia de verificar que a ferida não foi praticada com uma adaga, mas com o meu anel sinete…Douglas Stone, nesse momento, desatou a rir, a soltar enormes gargalhadas. Lorde Sannox imediatamente se pôs sério e abandonou o quarto, sem fazer ruído.— Espere aqui até que a senhora desperte — disse o falso turco à velha que lhe abriu a porta.E, chegando à rua, ordenou ao chofer:— John, leve primeiro o doutor à sua casa. Creio que você terá de arrastá-lo pela escada abaixo. E diga aos seus criados que o “caso” o excitou um pouco…— Está bem, senhor…— E depois levará Lady Sannox para casa.— E o senhor, Lorde Sannox?— Ah! O meu endereço passará a ser o Hotel di Roma, em Veneza… Mandem para lá a minha correspondência.E, ajustando o turbante à cabeça, recomendou:— E diga ao Stevens que não se esqueça de mandar orquídeas à exposição de floricultura…Fonte: Texto traduzido e condensado de “The case of Lady Sannox”, de Arthur Conan Doyle, por autor desconhecido do séc. XX. Fonte: “A Noite Ilustrada”, edição de 8 de julho de 1931.