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Categoria: Universo XD
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O ovo de cristal – H.G. Wells (Conto)
O ovo de cristalH.G. Wells(1897)Havia, até um ano atrás, uma lojinha de aparência suja, no oeste de Londres, com um letreiro amarelo gasto em que se lia “C. Cave, Naturalista e Negociante de Antiguidades”. O conteúdo de sua vitrine era curiosamente variado: presas de elefante e um conjunto incompleto de peças de xadrez, miçangas e armas, uma caixa com olhos, dois crânios de tigres e um de humano, vários macacos de pelúcia comidos por traças (um segurava uma lâmpada), um armário antigo, algo que parecia um ovo de avestruz encardido, alguns equipamentos de pesca e um tanque de vidro vazio e extraordinariamente sujo. Havia, também, no momento em que essa história começa, um objeto de cristal, trabalhado na forma de um ovo e incrivelmente polido. Era para isso que dois homens olhavam do lado de fora da vitrine, um deles, um clérigo alto e magro, e o outro um jovem de barba escura e pele morena, com roupas discretas. O jovem falava e gesticulava com entusiasmo, parecendo ansioso para que seu companheiro comprasse o artigo.Enquanto estavam ali, o Sr. Cave apareceu na loja, a barba ainda cheia de farelos de pão com manteiga de seu chá da tarde. Assim que viu os homens e o objeto de sua admiração, seu semblante endureceu. Lançou um olhar culpado por cima do ombro e, suavemente, fechou a porta dos fundos. Ele era um homem pequeno e velho, de rosto pálido e olhos peculiarmente azuis. Seu cabelo era de um cinza sujo, e vestia um sobretudo azul gasto, um chapéu de seda antigo e um sapato felpudo rente ao calcanhar. Ficou observando a conversa dos dois homens. O clérigo enfiou a mão no bolso da calça, examinou um punhado de dinheiro e mostrou os dentes, em um sorriso afável. O Sr. Cave parecia ainda mais deprimido quando entraram na loja.O clérigo, sem cerimônias, perguntou o preço do ovo de cristal. O Sr. Cave, olhando nervosamente para a porta dos fundos, informou que custava cinco libras. O clérigo protestou, tanto para seu companheiro quanto para o Sr. Cave, que o preço era alto — era, de fato, muito mais do que o Sr. Cave pretendia cobrar quando recebeu o artigo —, e uma tentativa de barganha se iniciou. O Sr. Cave foi até a porta da loja e a abriu. “Cinco libras é meu preço”, disse, como se quisesse se poupar de uma discussão sem proveito. Assim que o fez, o rosto de uma mulher apareceu acima da cortina da porta que dava para os fundos, olhando com curiosidade para os dois fregueses. “Cinco libras é meu preço”, repetiu o Sr. Cave, com um tremor na voz.O jovem apenas observava o Sr. Cave com atenção, até que falou: “Dê-lhe às cinco libras”. O clérigo olhou para ele, para garantir que estava falando sério, e então olhou para o Sr. Cave de novo, percebendo que seu rosto estava branco. “Está muito caro”, disse o clérigo e, mergulhando a mão no bolso, começou a contar seus recursos. Ele tinha menos de uma libra, e apelou a seu companheiro, de quem parecia ser íntimo. Isso deu ao Sr. Cave a oportunidade de reunir seus pensamentos, e então começou a explicar de maneira agitada que o cristal não estava, de fato, à venda. Seus dois clientes ficaram naturalmente surpresos com isso, e perguntaram por que ele não havia dito isso antes de barganhar. O Sr. Cave ficou confuso, mas manteve sua história de que o cristal não estava mais à venda, pois um provável comprador já havia aparecido. Os dois, tratando esse comportamento como uma tentativa de aumentar ainda mais o preço, começaram a se retirar da loja. Mas, nesse momento, a porta dos fundos se abriu, e a dona de uma franja escura e olhos pequenos apareceu.Ela era uma mulher corpulenta, de características grosseiras, mais jovem e muito maior que o Sr. Cave. Andava pesadamente, e seu rosto estava vermelho. “Esse cristal está à venda”, ela disse. “E cinco libras é um preço bom o suficiente. Não sei o que está pensando, Cave, ao recusar a oferta dos cavalheiros!”.O Sr. Cave, muito perturbado pela interrupção, olhou para ela furiosamente por cima dos aros dos óculos e, sem muita confiança, afirmou seu direito de gerenciar seus negócios à sua maneira. Uma discussão se iniciou. Os dois fregueses assistiram à cena com interesse e alguma diversão, ocasionalmente ajudando a Sra. Cave com sugestões. O Sr. Cave duramente insistiu em uma confusa e impossível história de que haviam perguntado pelo cristal naquela manhã, e sua agitação se tornou dolorosa. Mas ele manteve seu argumento com extraordinária persistência. Foi o jovem oriental que acabou com a curiosa controvérsia. Ele propôs que voltassem no prazo de dois dias, dando assim ao suposto interessado uma chance justa. “E então, devemos insistir”, disse o clérigo. “Cinco libras”. A Sra. Cave tomou a iniciativa de pedir desculpas pelo marido, explicando que ele às vezes era “um pouco esquisito” e, assim que os clientes saíram, o casal iniciou uma discussão sobre o incidente.A Sra. Cave falou com o marido com singular franqueza. O pobre homem, tremendo de emoção, se embaralhava entre as histórias, sustentando, por um lado, que havia outro cliente em vista, e, por outro, que o cristal valia de fato umas dez libras. “E por que pediu cinco?”, disse a esposa. “Deixe-me gerenciar meus negócios à minha maneira!”, repetiu o Sr. Cave.Ele vivia com os dois filhos de sua esposa e, no jantar daquela noite, a transação voltou a ser discutida. Nenhum deles tinha uma boa opinião sobre os métodos de negócio do Sr. Cave, e sua última ação parecia uma loucura culminante.“Eu acho que ele já se recusou a vender esse cristal antes”, disse o enteado, um garoto desajeitado de dezoito anos.“Mas cinco libras!”, disse a enteada, uma jovem argumentativa de vinte e seis.As respostas do Sr. Cave eram miseráveis. Ele só conseguia murmurar algumas afirmações fracas sobre conhecer melhor seu próprio negócio. Eles o fizeram largar o jantar pela metade e sair para a loja, com os ouvidos em chamas e lágrimas de irritação por trás dos óculos. Por que ele deixou o cristal na vitrine por tanto tempo? Que tolice! Essa era a maior preocupação em sua mente. Por um momento, não via como escapar da venda.Depois do jantar, seus enteados se arrumaram e saíram, enquanto sua esposa foi para o quarto refletir sobre a venda do cristal com um pouco de chá. O Sr. Cave voltou para a loja e ficou lá até tarde, supostamente preparando jardins ornamentais para os aquários, mas na realidade, para um propósito privado que será melhor explicado posteriormente. No dia seguinte, a Sra. Cave descobriu que o cristal havia sido removido da vitrine e estava atrás de alguns livros velhos sobre pesca. Ela o colocou de volta em um local visível, mas não discutiu mais a respeito, debilitada por uma forte dor de cabeça. O Sr. Cave nem precisava ter uma dor de cabeça para decidir escapar de uma discussão. O dia seguiu de forma desagradável. O Sr. Cave estava ainda mais distraído que o habitual, e incomumente irritável. À tarde, enquanto a esposa tirava seu costumeiro cochilo, ele removeu o cristal da vitrine.No dia seguinte, o Sr. Cave teve que entregar uma remessa de peixes para dissecação em um hospital da faculdade. Em sua ausência, a mente da Sra. Cave se voltou ao tema do cristal e aos melhores métodos de gastar suas cinco libras. Ela já havia planejado alguns expedientes muito agradáveis, como um vestido de seda verde e uma viagem à Richmond, quando um toque da campainha da porta da frente a convocou à loja. O cliente era um professor, que veio reclamar da não entrega de certos sapos solicitados no dia anterior. A Sra. Cave não aprovava esse ramo específico dos negócios de seu marido, e o cavalheiro, que a havia chamado em um tom um tanto agressivo, se retirou após uma breve troca de palavras — inteiramente civis, da parte dele. A visão da Sra. Cave, então, naturalmente se voltou para a vitrine, já que o cristal era a garantia das cinco libras e de seus sonhos. Não foi diminuta sua surpresa ao notar a ausência!Ela foi para o local atrás do balcão, onde o havia descoberto no dia anterior. Não o encontrou lá, e imediatamente iniciou uma busca impaciente pela loja.Quando o Sr. Cave retornou de seus negócios com os peixes, por volta das duas da tarde, encontrou a loja revirada e sua esposa irritada, de joelhos atrás do balcão, mexendo em seus materiais de taxidermia. Assim que ouviu o sino da loja anunciando sua entrada, ela se ergueu, vermelha e irritada, acusando-o de escondê-lo.“Esconder o quê?”, perguntou o Sr. Cave. “O cristal!”.Ao ouvir isso, o Sr. Cave, aparentando surpresa, correu para a vitrine. “Não está aqui?” ele perguntou. “Grande pai! O que fizeram dele?”.Nesse momento, seu enteado entrou na loja pela porta dos fundos — ele havia chegado pouco antes do Sr. Cave —, soltando palavrões a torto e a direito. Ele estava estagiando no brique do final da rua e fazia as refeições em casa, por isso estava incomodado de não encontrar seu almoço preparado.Assim que ouviu sobre o sumiço do cristal, esqueceu-se da refeição, e sua raiva se voltou da mãe para o padrasto. Suas primeiras suspeitas, é claro, eram de que ele o havia escondido. Mas o Sr. Cave negou veementemente saber do destino do objeto, oferecendo juramentos de sua palavra — e por fim chegou ao ponto de acusar a esposa e o enteado de o terem roubado. Assim se iniciou uma discussão extremamente amarga e emotiva, que culminou com a Sra. Cave em um estado entre a histeria e o ódio, e fez com que o enteado chegasse meia hora atrasado no serviço. O Sr. Cave buscou na loja um refúgio das emoções de sua esposa.À noite, o assunto foi retomado, com menos paixão e uma aura judicial, sob presidência da enteada. A janta foi infeliz e acabou em uma cena dolorosa. Finalmente o Sr. Cave cedeu a uma irritação extrema e saiu batendo a porta com violência. O resto da família, discutindo o caso com a liberdade de sua ausência, revirou a casa em busca do cristal.No dia seguinte, os dois clientes apareceram novamente. Foram atendidos por uma Sra. Cave quase em lágrimas. Ela deixou claro que ninguém podia imaginar tudo o que já tinha passado em seus muitos anos de casamento, e deu, também, um relato deturpado do desaparecimento. O clérigo e o jovem trocaram um riso silencioso, e disseram que o caso era muito extraordinário. Como a Sra. Cave parecia disposta a lhes contar toda a história de sua vida, eles se preparam para sair da loja. Nesse momento, a Sra. Cave, com um fio de esperança, pediu o endereço do clérigo, para que, caso obtivesse algo de Cave, pudesse avisá-lo. O endereço foi devidamente informado, mas, posteriormente, extraviado. A Sra. Cave não se lembra de nada sobre o assunto.Na noite daquele dia, os Caves pareciam ter esgotado suas emoções. O Sr. Cave, que havia saído à tarde, jantou em um isolamento sombrio que, para ele, significava um contraste alegre perante a inflamada controvérsia dos dias anteriores. Durante algum tempo, a convivência foi difícil na casa dos Cave, mas nem o cristal, nem os clientes apareceram.Agora, sem conversa fiada, devemos admitir que o Sr. Cave é um mentiroso: ele sabia perfeitamente bem onde estava o cristal. Estava em um aparador, parcialmente coberto por um pano de veludo preto, ao lado de uma garrafa de uísque americano, nos aposentos do Sr. Jacoby Wace, professor no Hospital St. Catherine, na Rua Westbourne. Vêm do Sr. Wace, inclusive, as informações sobre as quais essa narrativa se baseia. Cave havia levado o cristal para o hospital na sacola dos peixes, e pressionou o jovem professor a guardá-lo para ele. O Sr. Wace, a princípio, teve dúvidas; sua relação com Cave era peculiar. Ele gostava de personalidades incomuns e havia mais de uma vez convidado o velho para fumar e beber em seus aposentos, buscando entender suas visões bastante divertidas sobre a vida em geral e sobre sua esposa, em particular. O Sr. Wace havia encontrado a Sra. Cave, também, nas ocasiões que o Sr. Cave não podia atendê-lo. Ele conhecia a constante interferência à qual Cave estava sujeito e, após ponderar a história judicialmente, decidiu dar um refúgio ao cristal. O Sr. Cave prometeu explicar melhor as razões de sua afeição pelo cristal em outro momento, mas falou claramente de ter visões nele. Ele ligou para o Sr. Wace na mesma noite.E, então, contou uma história complicada. O cristal, disse ele, chegou a sua posse com alguns objetos estranhos em uma venda casada de outro negociante de curiosidades. Sem saber qual seria seu valor, colocou o preço em menos de uma libra. Ele ficou na vitrine por alguns meses, e Cave estava pensando em reduzir o valor, quando fez uma descoberta singular.Naquela época, sua saúde estava muito debilitada — e deve-se ter em mente que, durante toda essa experiência, sua condição física decaía —, e ele sofria bastante devido à negligência e aos maus-tratos recebidos de sua esposa e enteados. Sua esposa era vaidosa, extravagante, insensível, e tinha um gosto crescente por beber sozinha; sua enteada era malvada e abusada, e seu enteado havia desenvolvido uma aversão violenta a ele, não perdendo chances de demonstrá-la. As exigências de seus negócios o pressionavam, e ao Sr. Wace, parecia que ele não estava livre do ocasional abuso de substâncias. Cave havia iniciado sua vida em uma posição confortável e era um homem de aceitável educação, mas sofria, por semanas a fio, de melancolia e insônia. Com medo de perturbar a família, escapulia silenciosamente do lado de sua esposa quando os pensamentos se tornavam intoleráveis, e passeava pela casa. Por volta das três da manhã de um dia de agosto, o acaso o levou à loja.O lugarzinho sujo estava incrivelmente escuro, exceto por um ponto onde se percebia um brilho incomum de luz. Ao se aproximar, ele descobriu ser o ovo de cristal, que estava no canto do balcão, próximo à vitrine. Um raio de luz fino atingia uma fenda nas persianas, colidindo com o objeto e preenchendo todo seu interior.O Sr. Cave percebeu que isso não estava de acordo com as leis da óptica que conhecia desde a juventude. Ele compreendia que a luz poderia ser refratada pelo cristal e focalizada em seu interior, mas essa difusão abalou suas concepções da Física. Aproximou-se do cristal, olhando-o e contornando-o, com um passageiro renascimento da curiosidade científica que havia, na juventude, determinado sua escolha profissional. Ficou surpreso ao descobrir que a luz não era estável, mas se contorcia na substância do ovo, como se aquele objeto fosse uma esfera oca de algum vapor luminoso. Movendo-se para obter pontos de vista diferentes, de repente descobriu que havia se colocado entre o raio de luz e o cristal, e ele continuava luminoso. Atônito, o tirou do lugar e o levou ao canto mais escuro da loja. O cristal permaneceu brilhante por cerca de quatro ou cinco minutos, até que sua luz desapareceu lentamente. Ele o colocou novamente na fina faixa de luz, e sua luminosidade foi quase imediatamente restaurada.Até tal ponto, ao menos, o Sr. Wace foi capaz de confirmar a notável história do Sr. Cave. Ele mesmo havia repetidamente posto o cristal sob um raio de luz que tinha o diâmetro menor do que um milímetro. E numa perfeita escuridão, como a produzida por um embrulho de veludo, o cristal aparentava estar, sem dúvida, levemente fosforescente. Parecia, contudo, que a luminosidade era de um tipo excepcional, que não era igualmente visível a todos os olhos: O Sr. Harbinger — cujo nome pode ser familiar ao leitor científico, por sua conexão ao Instituto Pasteur — não conseguia enxergar luz alguma. E a própria capacidade do Sr. Wace de apreciar o fenômeno estava fora de comparação à do Sr. Cave. Mesmo para o Sr. Cave, o poder variava consideravelmente. Sua visão era mais vívida durante estados de extrema fraqueza e fadiga.Desde o princípio, a luz do cristal exercia um curioso fascínio sobre o Sr. Cave. E é representativo da solidão de sua alma o fato de que preferiu não contar sobre suas curiosas observações a ser humano algum. Ele parecia viver em tal atmosfera de rancor mesquinho que mesmo admitir a existência de um prazer seria arriscar a perda dele. Percebeu que, à medida que o amanhecer avançava, aumentava a quantidade de luz difusa, e o cristal se tornava, aparentemente, não luminoso. Durante algum tempo, não conseguiu ver nada, exceto à noite, nos cantos escuros de sua loja.Então lhe ocorreu usar um pano velho de veludo, que tinha para a exposição de uma coleção de minerais, e ao dobrá-lo e colocá-lo sobre a cabeça e as mãos, era possível ver o movimento luminoso dentro do cristal mesmo durante o dia. Ele foi muito cauteloso, para que não fosse descoberto pela esposa, e praticou essa ocupação apenas à tarde, enquanto ela dormia no andar de cima. Então, um dia, girando o cristal em suas mãos, viu algo. Foi como um lampejo, logo desaparecendo, mas deu-lhe a impressão de, por um momento, ver um campo amplo e estranho. Ao movê-lo novamente, teve a mesma visão.A partir desse ponto, seria entediante e desnecessário explorar todas as fases da descoberta do Sr. Cave. Basta dizer que o efeito tenha sido esse: o cristal, colocado em um ângulo de 137 graus em relação à direção do raio iluminador, deu uma imagem clara e consistente de um campo peculiar. Não era como um sonho: produzia uma impressão definitiva da realidade e, quanto melhor a luz, mais real e sólida parecia. Era uma imagem em movimento: isso é, certos objetos se moviam nela, mas lentamente e de maneira ordenada, como coisas reais, e, conforme a direção da iluminação e da visão mudava, a imagem mudava também. Deve ter sido, de fato, como olhar através de uma janela ovalada, virando-a para ter diferentes perspectivas.As declarações do Sr. Cave, o Sr. Wace me garantiu, eram extremamente circunstanciais e totalmente livres de qualquer daquela qualidade emocional que oculta impressões alucinatórias. Mas devemos lembrar que todos os esforços do Sr. Wace em ver com semelhante clareza na fraca opalescência do cristal foram fracassados, por mais que tentasse. A diferença na intensidade das impressões tidas pelos dois homens foi muito grande, e é plausível pensar que, o que era uma visão para o Sr. Cave, fosse apenas uma nebulosidade turva para o Sr. Wace.A vista, como descrita pelo Sr. Cave, era invariavelmente de uma extensa planície, e ele parecia estar sempre a olhando de uma altura considerável, como se de uma torre ou mastro. A leste e a oeste, a planície era delimitada a uma distância remota por vastos penhascos, que o lembrava de algo que ele já tinha visto em fotos; mas em quais fotos, o Sr. Wace não soube precisar. Estes penhascos passavam para norte e sul — ele podia determinar os pontos cardeais pelas estrelas visíveis à noite —, recuando em uma perspectiva quase ilimitada e desaparecendo nas brumas da distância antes de se encontrarem. Ele estava mais perto do conjunto de penhascos a leste; na sua primeira visão, o sol estava nascendo sobre eles, e escuras sob a luz do sul e pálidas sob sua sombra, apareceram diversas formas que o Sr. Cave considerava serem pássaros. Uma vasta gama de edifícios estava espalhada abaixo dele; parecia estar olhando-os de cima. Quando se aproximavam da borda borrada e refratada da imagem, ficavam indistintos. Havia também árvores de formas curiosas, de um verde musgoso e cinza delicado, ao longo de um canal largo e brilhante. Então, algo grande e de cores brilhantes voou pela imagem. Na primeira vez, o Sr. Cave viu essas imagens apenas em flashes, com suas mãos tremendo, a cabeça agitada, e a visão indo e vindo, nebulosa e indistinta. A princípio, teve a maior dificuldade em encontrar a imagem novamente, uma vez perdida a direção.Sua próxima visão clara, que ocorreu cerca de uma semana após a primeira — o intervalo não produzindo nada além de vislumbres tentadores e uma experiência minimamente útil —, mostrou-lhe a vista do vale. Ela era diferente, mas ele tinha uma impressão curiosa, que suas observações subsequentes plenamente confirmaram, de que estava olhando o estranho mundo da mesma posição, embora sob ângulos diferentes. A longa fachada do grande edifício, cujo teto ele havia visto antes, agora recuava de perspectiva. Ele reconheceu esse teto. À frente da fachada havia um terraço de largas proporções e extraordinário comprimento e, no meio dele, em certos intervalos, erguiam-se mastros enormes, mas muito graciosos, carregando pequenos objetos brilhantes que refletiam o sol poente. A importância desses pequenos objetos não ocorreu ao Sr. Cave até certo tempo depois, enquanto descrevia a cena para o Sr. Wace. O terraço pendia sobre um bosque de vegetação graciosa e, além dela, havia um amplo gramado, no qual repousavam certas criaturas largas, na forma de besouros, mas incrivelmente maiores. Além desses, havia uma calçada ricamente decorada de pedra rosada; e depois dela, alinhada a densas ervas daninhas vermelhas, e passando pelo vale exatamente paralelo aos penhascos distantes, havia uma vasta e espessa extensão de água cristalina. O céu parecia cheio de revoadas de pássaros, fazendo manobras em curvas imponentes. Do outro lado do rio havia uma multidão de edifícios esplêndidos, ricamente coloridos e reluzentes, com arabescos e facetas metálicas, entre uma floresta de árvores musgosas e liquenosas. Subitamente, algo se agitou repetidas vezes na visão, como o bater de um leque ou de uma asa, e um rosto, ou melhor, a parte superior de um rosto, com olhos muito grandes, veio como se estivesse próximo dele, ou do outro lado do cristal. O Sr. Cave ficou tão surpreso e estupefato com a realidade absoluta desses olhos que afastou sua cabeça do cristal para olhar por trás dele. Ele estava tão absorto naquela visão que ficou bastante surpreso ao se encontrar na escuridão fria de sua lojinha, com seu familiar odor de metil, mofo e decadência. Enquanto piscava, o cristal foi se apagando.Essas foram as primeiras impressões do Sr. Cave. A história é curiosamente direta e circunstancial. Desde o início, quando o vale brilhou momentaneamente em seus sentidos, sua imaginação foi estranhamente afetada, e então começou a apreciar os detalhes do cenário, sua admiração se tornando uma paixão. Ele seguiu seus negócios de maneira apática e distraída, pensando apenas no momento em que poderia voltar a assistir o cristal. Então, algumas semanas após sua primeira visão do vale, chegaram dois clientes e, com eles, o estresse e a emoção de sua oferta, e a precária fuga do cristal, como já contei.Agora, enquanto era o segredo do Sr. Cave, isso seguia como uma mera admiração, algo para se esgueirar secretamente e espiar, como uma criança espia um jardim proibido. Mas o Sr. Wace tem como se preza a um jovem investigador científico, uma mente particularmente lúcida e ordenada. Assim que o cristal e a história chegaram a ele, ao ver a fosforescência com seus próprios olhos, havia se assegurado de que havia certa evidência para as declarações do Sr. Cave, e passou a estudar a questão mais sistematicamente. O Sr. Cave estava extremamente ansioso em deleitar seus olhos neste país das maravilhas que via, e todas as noites ia lá das oito e meia às dez e meia, e, às vezes, também durante o dia, na ausência do Sr. Wace. Nas tardes de domingo, também, ele ia. Desde o início, o Sr. Wace fez abundantes anotações, e foi devido ao seu método científico que a relação entre a direção da qual o raio inicial entrou no cristal e a orientação da imagem foi comprovada. Ao cobrir o cristal com uma caixa perfurada apenas com uma pequena abertura e substituir o pano velho por persianas bejes, ele melhorou consideravelmente as condições das observações, de forma que, em pouco tempo, ambos pudessem examinar o vale na direção que desejassem.Assim, tendo aberto o caminho, podemos dar uma breve descrição desse mundo visionário dentro do cristal. Tudo foi observado pelo Sr. Cave, e o método de trabalho era, invariavelmente, ele assistindo o cristal e reportando o que via, enquanto o Sr. Wace (que havia aprendido o truque de escrever no escuro enquanto estudante), anotava o relato resumidamente. Quando o cristal desvanecia, era posto em sua caixa, no local adequado, e a luz era ligada novamente. O Sr. Wace fazia perguntas e sugeria observações que esclarecessem pontos complicados. Nada, de fato, poderia ter sido menos visionário e direto ao ponto.A atenção do Sr. Cave havia rapidamente se direcionado às criaturas parecidas com pássaros que ele havia visto tão abundantemente em suas visões anteriores. Suas primeiras impressões foram então corrigidas e ele considerou, por um tempo, que poderiam ser uma espécie diurna de morcegos. Depois pensou, por mais grotesco que fosse, que poderiam ser querubins. Suas cabeças eram redondas e curiosamente humanas, e foram os olhos de um deles que o haviam assustado em sua segunda observação. Eles tinham asas largas e prateadas, sem penas, brilhantes como as escamas de um peixe e com a mesma coloração sutil destes. Essas asas não foram desenvolvidas como as de pássaros ou morcegos, como percebeu o Sr. Wace: eram suportadas por costelas curvas que irradiavam por todo o corpo. A melhor forma de expressar sua aparência parece ser um tipo de asa de borboleta, mas com costelas curvas. O corpo era pequeno, com dois grupos de órgãos preênseis, como tentáculos, logo abaixo da boca. Por incrível que parecesse ao Sr. Wace, eventualmente se tornou elementar presumir que essas eram as criaturas que possuíam os grandes edifícios quase humanos e o magnífico jardim que tornavam o amplo vale tão esplêndido. E o Sr. Cave percebeu que os prédios, entre outras peculiaridades, não tinham portas, mas grandes janelas circulares, que se mantinham abertas, permitindo a saída e entrada das criaturas. Elas pousavam em seus tentáculos, dobrando as asas em uma espessura quase como de uma vara, e pulavam para o interior. Entre elas, contudo, havia uma multidão de criaturas aladas menores, como grandes libélulas, mariposas e besouros voadores, e, através do relvado, gigantescos besouros terrestres de cores brilhantes rastejavam preguiçosamente para lá e para cá. Ademais, nas calçadas e terraços, criaturas de cabeças grandes, como moscas, mas sem asas, eram visíveis, pulando agitadas sobre um emaranhado de tentáculos que pareciam mãos.Já foram citados os objetos brilhantes que ficavam em mastros no terraço do prédio mais próximo. Um dia o Sr. Cave notou, após observar muito fixamente um desses mastros, que o objeto brilhante de lá era um cristal exatamente como o seu. E um exame ainda mais cuidadoso o convenceu de que cada um dos mastros que eram visíveis, cerca de vinte deles, carregava um objeto similar.Ocasionalmente, uma das grandes criaturas voadoras se agitava até um desses objetos, dobrando as asas e enrolando seus vários tentáculos em torno do mastro, se mantendo fixamente no cristal por um tempo — às vezes por até quinze minutos. Uma série de observações, feitas por sugestão do Sr. Wace, convenceu os dois observadores de que, no que dizia respeito a este mundo visionário, o cristal no qual eles espiavam ficava realmente no cume do mastro mais ao final do terraço, e que, em pelo menos uma ocasião, um desses habitantes deste outro mundo olhou para o rosto do Sr. Cave enquanto ele fazia essas observações.Sobre os fatos essenciais dessa história singular, já basta! A menos que consideremos tudo isso como fabricações da imaginação do Sr. Wace, temos que acreditar em uma destas duas opções: ou o cristal do Sr. Cave estava em dois mundos de uma só vez e, enquanto era movido em um destes se mantinha fixo no outro, o que parece absurdo, ou existia alguma relação peculiar de simpatia entre dois cristais, de forma que um estaria visível para o observante do outro, e vice-versa. Até o momento, de fato, não sabemos de que maneira os cristais poderiam estar em contato, mas sabemos o suficiente para entender que a situação não é totalmente impossível. A opção dos cristais em sintonia foi a que ocorreu ao Sr. Wace, e para mim pelo menos parece extremamente plausível.Mas onde ficava esse outro mundo? Sobre isso, também, a inteligência alerta do Sr. Wace rapidamente lançou luz. Após o pôr do sol, o céu escureceu rapidamente — houve o breve intervalo de um crepúsculo —, e as estrelas brilharam. Elas eram reconhecidamente as mesmas que vemos aqui, dispostas nas mesmas constelações. O Sr. Cave reconheceu a Ursa Maior, as Plêiades, Aldebarã e Sirius. Dessa forma, o mundo deveria estar em algum lugar do nosso sistema solar e, no máximo, a apenas algumas centenas de milhões de quilômetros da Terra. Seguindo essa dica, o Sr. Wace percebeu que o céu da meia-noite era de um azul ainda mais escuro do que o nosso no inverno, e que o sol parecia um pouco menor. E havia duas pequenas luas! “Como a nossa, mas menores, e com marcas bem diferentes”. Uma delas se deslocava tão rapidamente que esse movimento era claramente visível quando se prestava atenção. Essas luas nunca estavam altas no céu, desapareciam assim que nasciam; isto é, a cada revolução elas eram eclipsadas, por estarem muito próximas ao planeta. E tudo isso corresponde perfeitamente, apesar do Sr. Cave não saber, às condições previstas em Marte.De fato, parece uma conclusão extremamente plausível que, olhando para este cristal, o Sr. Cave realmente viu o planeta Marte e seus habitantes. E se esse for o caso, então a estrela que brilhava tão intensamente à noite era, nada mais, nada menos, do que nossa própria Terra.Por um tempo, os marcianos — se eram mesmo marcianos — pareciam não saber das inspeções do Sr. Cave. Uma vez ou outra algum espiava e saía rapidamente para outro mastro, como se a visão fosse insatisfatória. Durante esse período, o Sr. Cave conseguia assistir o proceder dessas criaturas aladas sem ser perturbado por suas atenções e, embora seu relatório seja vago e fragmentado, é, de qualquer forma, muito sugestivo. Imagine qual seria a impressão da humanidade que um observador marciano teria caso, após um difícil processo de preparação e com olhos fatigados, pudesse espiar Londres por cima da igreja de St. Martin por períodos de, no máximo, quatro minutos por vez. O Sr. Cave não conseguia determinar se os marcianos alados eram os mesmos que pulavam pelas calçadas e terraços, e se estes últimos podiam colocar asas à vontade. Por várias vezes ele viu bípedes desajeitados, vagamente similares a símios, brancos e parcialmente translúcidos, se alimentando entre árvores musgosas. Uma vez, alguns desses fugiram de um dos marcianos saltitantes, que conseguiu pegar um deles com seus tentáculos, e então a imagem desapareceu repentinamente, deixando o Sr. Cave atormentado no escuro. Outra vez, uma coisa vasta, que ele primeiro pensou ser algum inseto gigante, apareceu avançando ao longo da calçada ao lado do canal com extraordinária agilidade. À medida que se aproximava, o Sr. Cave percebeu que era um mecanismo de metal brilhante, de extraordinária complexidade. E então, quando olhou novamente, havia desaparecido.Após um tempo, o Sr. Wace ambicionou atrair a atenção dos marcianos. No encontro seguinte com os estranhos olhares, o Sr. Cave gritou e saiu correndo, e eles imediatamente ligaram as luzes e começaram a gesticular, sugerindo uma sinalização. Mas quando o Sr. Cave examinou o cristal novamente, o marciano havia partido.Dessa forma, as observações seguiram até o início de novembro, quando o Sr. Cave, sentindo que as suspeitas de sua família sobre o cristal havia desaparecido, começou a trazê-lo para casa, para que, conforme a ocasião surgisse, ele pudesse se confortar com o que estava, rapidamente, se tornando a experiência mais significativa de toda sua existência.Em dezembro, os serviços do Sr. Wace se tornaram exigentes e as sessões foram suspensas por uma semana, e então por dez, onze dias — ele não tem certeza de quanto tempo se passou —, em que não teve sinal de Cave. Ele então ficou ansioso por retornar às investigações e, como o estresse de seus trabalhos sazonais diminuiu, foi atrás do Sr. Cave. Na esquina, notou um pano preto na vitrine da loja de animais, e então outro na do sapateiro. A loja do Sr. Cave estava fechada.Ele bateu e a porta foi aberta pelo enteado, vestido todo de preto. Ele imediatamente chamou a Sra. Cave, que estava, como o Sr. Wace não pôde deixar de notar, vestida com uma ampla vestimenta típica de uma viúva, em um modelo de baixa qualidade, mas imponente. Sem grandes surpresas, o Sr. Wace soube que Cave estava morto e já enterrado. Ela estava chorando, com a voz um pouco rouca. Havia acabado de voltar do cemitério. Sua mente parecia ocupada com suas próprias ideias e os honrosos detalhes fúnebres, mas o Sr. Wace conseguiu finalmente descobrir as particularidades da morte de Cave. Ele havia sido encontrado morto em sua loja no início da manhã do dia seguinte à sua última visita ao Sr. Wace, com o cristal preso em suas mãos geladas. Seu rosto era sorridente, disse a Sra. Cave, e o tecido de veludo dos minerais estava no chão aos seus pés. Ele devia estar morto há cinco ou seis horas quando foi encontrado.Isso foi um grande choque a Wace, que começou a se censurar amargamente por negligenciar os sintomas evidentes da debilitada saúde do velho. Mas seu pensamento mais urgente era o cristal. Ele buscou abordar o tópico com cautela, pois conhecia as peculiaridades da Sra. Cave. Ficou estupefato ao descobrir que havia sido vendido.O primeiro impulso dela, assim que o corpo do marido foi levado para o andar de cima, foi escrever para o clérigo louco que havia oferecido cinco libras pelo cristal, o informando de seu restabelecimento. Mas, após uma busca incessante, acompanhada pela filha, convenceram-se de que haviam perdido o endereço. Como não dispunham dos recursos necessários para enterrar Cave da forma elaborada que a dignidade de um habitante de seu bairro exigia, elas apelaram a um comerciante amigável de outro bairro. Ele gentilmente assumiu uma parte do estoque por um preço justo. O valor foi definido por ele mesmo, e o ovo de cristal estava incluído em um de seus lotes. O Sr. Wace, após prestar as condolências adequadas, talvez de forma meio descuidada, correu para a loja do outro comerciante. Mas lá descobriu que o ovo de cristal já havia sido vendido a um homem negro e alto, vestido de cinza. É nesse ponto que os fatos dessa história curiosa, e para mim pelo menos muito sugestiva, chegam a um abrupto final. O comerciante não sabia dizer quem era o homem de cinza, nem o havia observado com atenção suficiente para descrevê-lo minuciosamente. Ele nem sabia para que lado a pessoa foi depois de deixar a loja. Por um tempo o Sr. Wace permaneceu lá, testando a paciência do negociante com perguntas sem esperança, exalando sua própria frustração. E, finalmente, percebendo que tudo havia desaparecido de suas mãos, ele voltou a seus aposentos, um pouco surpreso de encontrar suas anotações ainda tangíveis e visíveis sob sua mesa desarrumada.Seu aborrecimento e decepção eram, naturalmente, enormes. Ele fez uma segunda ligação, igualmente ineficaz, ao comerciante, e recorreu a anúncios em jornais que costumam ser lidos por colecionadores de quinquilharias. Escreveu também cartas ao Daily Chronicle e à Nature, mas ambos periódicos, suspeitando de uma farsa, pediram que reconsiderasse sua ação antes de serem impressos, e ele foi aconselhado de que tão estranha história, infelizmente tão carente de evidências comprobatórias, poderia manchar sua reputação de pesquisador. Além disso, as demandas de seu trabalho de fato eram urgentes. Assim, depois de mais ou menos um mês, exceto pelo lembrete ocasional a alguns revendedores, ele relutantemente abandonou a busca pelo ovo de cristal e, até hoje, seu destino permanece desconhecido. Ele me conta, contudo, eu consigo acreditar, que por vezes tem surtos de entusiasmo nos quais abandona suas ocupações mais urgentes e retoma a busca.Se permanecerá ou não perdido para sempre, e quais são seu material e sua origem, são questões igualmente especulativas até o momento. Se o comprador atual for um colecionador, seria de se esperar que as investigações do Sr. Wace o alcançassem através dos negociantes. Ele conseguiu encontrar o clérigo e o oriental do Sr. Cave — ninguém menos que o reverendo James Parker e o jovem príncipe de Bosso-Kuni, em Java. Eu sou grato a eles por certos detalhes. A motivação do príncipe era simplesmente curiosidade — e extravagância. Estava tão ávido pelo negócio porque Cave estava tão estranhamente relutante em vendê-lo. É possível que a atual compra fosse apenas uma casualidade, não sendo por um colecionador, e que o ovo de cristal possa, para todos os fins, estar nesse momento a uma quadra de mim, decorando uma sala ou servindo como peso de papel — com sua incrível função desconhecida. De fato, é em parte por essa possibilidade que eu desenvolvi essa narrativa de forma que possa ser lida por um comum leitor de ficção.Minhas próprias opiniões sobre o fato são praticamente idênticas às do Sr. Wace. Acredito que o cristal estava em um mastro de Marte e que o ovo de cristal do Sr. Cave, de alguma forma até o momento inexplicável, era conectado a ele. E ambos acreditamos que o cristal da Terra deve ter sido — possivelmente em algum passado remoto — enviado daquele planeta, de forma a dar aos marcianos uma visão das nossas ações. Possivelmente os outros cristais nos mastros também estejam no nosso globo. Nenhuma teoria sobre alucinações explica suficientemente os fatos. -
O CASO DE LADY SANNOX
Arthur Conan Doyle(1859 – 1930)Todos conheciam as relações do ilustre médico Douglas Stone e de Lady Marion Sannox, figura brilhantíssima dos círculos sociais. Por isso mesmo, não faltou quem tecesse comentários quando se divulgou a notícia de que Lady Sannox havia-se recolhido a um convento e de que o famoso cirurgião Douglas Stone, o homem dos nervos de ferro, fora encontrado pelos criados, certa manhã, sentado em frente ao leito, rindo como um demente, abraçado a um almofadão… O seu grande talento se diluíra nas trevas da loucura.Douglas Stone era notável pelo sangue frio, precisão e equilíbrio com que realizava as mais difíceis operações. Entre os grandes cirurgiões de Londres, ele era dos que conseguiam maiores rendas em virtude de sua numerosíssima e distinta clientela. Sempre inclinado a divertir-se, sem tomar nada a sério, prendeu-se subitamente aos encantos de Lady Sannox. Entretanto, ela, se bem que para ele fosse a única, não o tinha, nem podia ter, na mesma conta.Lorde Sannox era um cavalheiro silencioso, reservado que, embora contasse apenas trinta e seis anos, parecia ter cinquenta. Afeiçoado ao cultivo das flores, amava a quietude do lar. Outrora a sua paixão favorita fora o teatro e até mesmo o explorara, como se explora um negócio qualquer. Foi então que conheceu a senhorita Marion Dawson, com quem contraiu matrimônio. Depois, perdeu o entusiasmo pelo teatro e passou a se dedicar apenas às orquídeas e aos crisântemos.Conheceria ele a vida frívola de sua esposa? Sofreria com resignação ou ignorava o que se passava? Todos faziam essa pergunta. E já não cabia dúvida: ele sabia até que ponto chegava o flerte de Lady Sannox e Douglas Stone. Os rumores da maledicência se espalhavam. As sociedades científicas já pretendiam riscar o nome de Douglas da lista de seus sócios.O idílio, entretanto, prosseguia.Uma noite, borrascosa e úmida, Douglas Stone esperava, nos seus aposentos, que chegasse a hora do seu encontro com Lady Sannox, combinado desde a véspera. Eram oito e meia e já se dispunha a pedir o seu coche, quando ouviu soar a campainha e ouviu, instantes depois, passos no corredor. O criado logo apareceu e anunciou:— Um cavalheiro deseja falar com o doutor. Parece-me que vem chamá-lo para atender a um doente… Aqui tem o seu cartão.Stone leu no quadrângulo de cartolina: “Hamil Alismyrna”. Disse ao criado:— Tenho que pedir-lhe que me dispense. Tenho um compromisso… Faça-o entrar, Jim. Preciso falar-lhe.O criado deu entrada a um homem baixo, raquítico, ligeiramente corcunda e cujo semblante contraído revelava acentuada miopia. A tez era escura, a barba e o bigode inteiramente negros e trazia nas mãos um turbante de musselina, com listras negras e roxas.— Boa noite, cavalheiro — disse-lhe Douglas. — Suponho que o senhor fala inglês, não é mesmo?— Sim, ainda que com certa dificuldade. Sou da Ásia Menor…— Deseja que eu o acompanhe a alguma parte?— Sim, doutor. Desejo que venha ver minha esposa.— Mas esta hora é demasiado tarde.— Porém, o caso é de urgência — replicou o turco. — Aqui tem o doutor cem libras pelos seus serviços e prometo que não durará uma hora…Douglas Stone mirou o punhado de moedas reluzentes que o estrangeiro lhe estendia e, em seguida, o relógio. Verificou que, com a demora de uma hora apenas, o seu encontro não ficaria prejudicado. Assim, resolveu não perder tão boa ocasião.— De que se trata? — perguntou.— De um caso muito triste. Já ouviu o doutor falar nas adagas dos almóadas?— Não.— Pois bem, são umas adagas muito antigas, de uma forma particular, com uma empunhadura parecida com as que vocês chamam de estribo. Sou comerciante de antiguidades e vim a Londres a negócios, devendo regressar a Esmirna na semana vindoura. Entre as curiosidades que eu trouxe, há uma daquelas armas…— Permita-me recordar-lhe que eu tenho um compromisso e que é necessário dispensar os detalhes e limitar-se ao fato, que é apenas o que me interessa…— É de suma importância o que estou relatando. Acontece que minha esposa desmaiou no quarto em que tenho as mercadorias e, caindo, feriu-se no lábio com essa maldita adaga.— Compreendo. Quer o senhor que eu faça a sutura da ferida…— Não. O caso é mais grave. A adaga está envenenada.— Envenenada?— Sim. E não se sabe se existe algum contraveneno. As pessoas feridas dormem, em profundo sono, durante trinta horas… E depois, a morte…— Mas, se não há cura, por que razão quer pagar-me tanto dinheiro?— Com remédios nada se conseguirá. Mas meu pai costumava dizer: “Se a ferida foi no dedo, é necessário cortá-lo”. Teremos de usar o bisturi. O veneno somente depois de muitas horas se espalha no organismo. Nas primeiras, fica concentrado no lugar da ferida. Imagine, porém, o lugar em que se feriu minha esposa… No lábio. É terrível!— Mas, se é a única salvação, é melhor perder o lábio do que a vida — replicou Stone, que, tomando a sua caixa cirúrgica, se pôs a caminho com o turco, que deixara um automóvel à porta.Quando chegaram à casa do mercador, uma velha, que trazia uma lâmpada na mão, veio abrir a porta.— Como está? — perguntou com angústia o comerciante. —Já falou?— Não, senhor — respondeu a velha. — O seu sono continua tão profundo como quando a deixou…E ambos seguiram a velha, entrando em um aposento de aspecto oriental, cheio de figuras grotescas, de utensílios primitivos, de armas exóticas, iluminado por uma débil lâmpada de azeite. Deitada sobre um sofá, estava uma mulher, com o rosto coberto pelo yashmak, o véu que as mulheres turcas costumam usar. A parte inferior do rosto estava descoberta e o médico pôde ver, no lábio inferior, uma pequena — mas profunda — incisão.— Peço permissão para que ela conserve o yashmak — disse o turco —, pois os nossos costumes religiosos impõem às nossas mulheres esse dever.O médico nem sequer respondeu. Para ele, ali não havia uma mulher, mas apenas um caso médico. Auscultou-a e, como não notasse sintoma algum, declarou que achava que poderia adiar a operação. O turco, porém, novamente o advertiu de que o veneno era mortal e que só a operação imediata poderia salvá-la.— O senhor assegura, por experiência própria, que é indispensável a operação? — indagou Stone, levado pelo escrúpulo profissional.— Juro por tudo quanto há de mais sagrado!— O rosto dela, todavia, vai ficar horrivelmente desfigurado.— Estou certo de que a sua boca já não inspirará o desejo de um beijo… Mas é necessário… É imprescindível…Ao ouvir esse brutal comentário, Douglas Stone voltou-se bruscamente. Não era ocasião para entrar em discussões. Apanhou os seus instrumentos cirúrgicos e aproximou a lâmpada. Sob o véu, apenas se distinguia o brilho amortecido dos olhos da narcotizada. O médico quis fazer uso do clorofórmio. O turco, porém, se opôs, declarando que o veneno da adaga por si só já produzia uma espécie de quase letargia. Douglas tomou o bisturi e, com três rápidos cortes, seccionou o lábio inferior da enferma.A mulher, soltando um grito de terror, ergueu-se do sofá. O véu caiu. E, apesar do sangue que lhe banhava o rosto, dolorosamente mutilado, Stone verificou que conhecia intimamente aquela mulher.Olhou para o homem que o levara àquela casa sombria. Esse, rapidamente, arrancou a barba e o bigode. Em vez do turco de Esmirna, era Lorde Sannox quem diante dele aparecia. Douglas Stone quedara mudo e imóvel, pela surpresa assombrosa. A mulher, soluçando, deixou pender a cabeça maravilhosamente loura. E Lorde Sannox sorria…Foi ele quem primeiro falou:— A operação era, na realidade, indispensável a Marion. Não física, mas moralmente. O doutor não concorda comigo?Douglas Stone não respondeu. Não ouvia nada.— Há tempos eu queria dar-lhes um pequeno castigo — prosseguiu Lorde Sannox. — Saiu tudo às mil maravilhas… Só lastimo que o doutor não tivesse a perspicácia de verificar que a ferida não foi praticada com uma adaga, mas com o meu anel sinete…Douglas Stone, nesse momento, desatou a rir, a soltar enormes gargalhadas. Lorde Sannox imediatamente se pôs sério e abandonou o quarto, sem fazer ruído.— Espere aqui até que a senhora desperte — disse o falso turco à velha que lhe abriu a porta.E, chegando à rua, ordenou ao chofer:— John, leve primeiro o doutor à sua casa. Creio que você terá de arrastá-lo pela escada abaixo. E diga aos seus criados que o “caso” o excitou um pouco…— Está bem, senhor…— E depois levará Lady Sannox para casa.— E o senhor, Lorde Sannox?— Ah! O meu endereço passará a ser o Hotel di Roma, em Veneza… Mandem para lá a minha correspondência.E, ajustando o turbante à cabeça, recomendou:— E diga ao Stevens que não se esqueça de mandar orquídeas à exposição de floricultura…Fonte: Texto traduzido e condensado de “The case of Lady Sannox”, de Arthur Conan Doyle, por autor desconhecido do séc. XX. Fonte: “A Noite Ilustrada”, edição de 8 de julho de 1931. -
O VAMPIRO
O VAMPIROAnônimo do século XIXHá duzentos anos, numa aldeia da Boêmia, existia uma bela jovem pertencente a uma família de um lavrador. De nome Maria, tinha um bom coração. Amava os pais, aos quais, desde a tenra infância, tratava de ser útil, encarregando-se voluntariamente de várias atividades domésticas. Por este motivo, também era estimada da sua família e da gente do povoado. As mães a citavam como um exemplo de amor filial, e de um procedimento digno de toda a consideração.
Maria tinha 18 anos quando chegou à sua aldeia um estrangeiro jovem e de boa presença, parecendo ser de alguma cidade, em razão do seu vestuário; pois, ainda que simples, era elegante, e as suas maneiras afáveis e corteses diferiam muito das que se usavam na aldeia. Maria, sagaz como era, não deixou de notar esta diferença e, desde esse momento, uma sorte funesta pareceu adejar sobre o seu destino.
O estrangeiro estabeleceu sua morada junto à casa dos pais de Maria, e, desta maneira, muitas vezes a encontrava. Não deixava de olhar para ela de uma maneira singular e tão estranha que fez cismar a pobre moça. Maria nunca tinha sentido, da parte dos moços da aldeia, quando para ela olhavam, a influência ou atração que sobre ela exercia o jovem estrangeiro, o que lhe deu, depois, desejos de chorar e, algumas vezes, de rir, sem saber por quê, sofrendo fortes palpitações do coração.
Passado algum, tempo, Hantz (era este o nome do estrangeiro) se animou a falar com a linda jovem e, desde então, ela não podia dormir. E se, devido ao cansaço, fechava os olhos, terríveis sonhos vinham agitar-lhe o sono. Era sempre o estrangeiro quem neles figurava, mas de uma maneira bem diferente: às vezes aparecia-lhe como um anjo do céu enviado para lhe oferecer a felicidade; outras vezes, como um demônio do inferno, que subia à terra expressamente para causar-lhe a perdição e levá-la consigo para as penas eternas. Então, a infeliz Maria lutava com esta horrível visão. Acordava sobressaltada, pálida e inundada de suor glacial; depois, era atacada de febre que lentamente lhe fazia desbotar as faces e os lábios, seguindo-se profunda tristeza que a consumia, ao mesmo tempo que angústias mortais lhe devoravam o coração. Enfim, Maria, pálida, magra e triste, já não parecia a mesma. Pobre moça!
Por muito tempo, ela lutou contra o seu destino. Encomendou novenas, rezou, invocou os santos, jejuou semanas inteiras. Nada disto, porém, lhe valeu, e a infeliz julgou que o céu a tinha abandonado e caiu em desespero.
Certa tarde, ao cair do sol, ela vinha sozinha da vila próxima. Andava depressa para que a escuridão a não apanhasse no caminho, visto que uma nesga de lua já nascia por sobre os morros distantes. Porém, lançando a vista para um pinheiral próximo do caminho, pareceu-lhe que um enorme fantasma lhe seguia os passos. Vislumbrou um misterioso espectro, que olhava para ela com olhos em chamas. Cheia de pavor, pôs-se a examinar, trêmula, aquela entidade fantástica. Procurando distinguir na escuridão aqueles contornos confusos, conseguiu ver bem distintamente que tinha dois chifres na cabeça, a língua vermelha e comprida, garras nas pontas dos dedos e os pés fendidos. Assustada, continuou a andar aceleradamente, conservando na imaginação a desmedida e horrenda figura que lhe aparecera.
De repente, ouviu uma voz suave que a chamava, e voltando-se, viu Hantz junto a si.
Ele disse, então:
—Maria, não te assustes! Não sabes que eu te amo, e que só desejo te ver feliz?
Neste momento, a lua cheia flutuava sobre o cume da montanha vizinha e, com a sua luz, a infeliz Maria já não via o horrendo fantasma que lhe parecera ter língua vermelha, grandes orelhas e garras.
A sorte já pesava sobre o seu destino. Perdeu o juízo e respondeu:
— Hantz, eu não estou com medo, e eu creio….
Hesitou, e nada mais pôde dizer.
Hantz, contudo, percebeu a sua perturbação e disse-lhe:
— Maria, eu bem sei que tu me amas, e deves ficar certa que, pelo céu ou pelo inferno, seremos felizes.
A estas palavras, a jovem estremeceu, e continuou a caminhar para sua casa acompanhada pelo estrangeiro, que. três dias depois, a pediu em casamento.
Seus pais, sabendo que Maria estava disposta a casar-se com aquele moço, cujo comportamento era exemplar, consentiram, e dali a 25 dias, a pedido do noivo, foi o casamento celebrado exatamente quando era lua cheia.
Maria, depois do casamento, parecia muito satisfeita. Todavia, ainda vivia incomodada, porque começou a ter sonhos horrorosos pela preocupação que tinha, motivada pela blasfêmia de Hantz, e por ele ter retardado o seu casamento até o dia da lua cheia. Isto lhe causava preocupações.
De repente, Hantz ficou triste, uma palidez mortal lhe cobriu o rosto e perdeu inteiramente as forças. Não quis consultar um médico, e quando a pobre moça lhe perguntava, chorando, qual era a sua doença, a resposta era um sorriso. Enfim, depois de constante padecimento, antes da lua cheia, Hantz morreu.
A sua morte foi muito sentida pelos parentes de Maria que, pela sua parte, ficou inconsolável por espaço de três dias, findos os quais, com admiração de todos, ela pareceu quase aliviada das suas penas.
Tinham já passado três ou quatro meses sem que Maria desse sinal algum de padecimento. Empregava-se no serviço da casa, seguindo a sua marcha antiga, exceto, porém, em ir à missa e em rezar, o que seus pais muito estranhavam. Nunca lhe ouviram falar em Hantz, e isto provava que ela já o havia esquecido. Mas, quando mal esperavam, ela começou a emagrecer e a tornar-se pálida a ponto de a considerarem tísica, visto que não apresentava sintoma de outra moléstia.
Sua mãe observou, ou pelo menos assim lhe parecia, que ela, ao levantar-se da cama, estava mais débil e mais abatida do que de tarde, principalmente no tempo da lua cheia. Incitada pelos cuidados de mãe, fez um pequeno buraco na porta do quarto de Maria, a fim de se convencer pelos seus olhos e ouvidos se a sua filha querida rezava de noite, ou, enfim, qual era o motivo do seu padecimento. Durante as primeiras noites em que espiou pelo buraco da porta, não observou coisa alguma extraordinária, e já as suas desconfianças se haviam desvanecido quando, uma noite…
Seriam onze horas e três quartos. Maria já se tinha deitado e a lua, saindo de uma nuvem, lançava os seus argênteos raios que, passando pela janela aberta, iluminavam o quarto. Então a mãe ouviu um gemido, depois uma voz débil, que dizia, sem dúvida sonhando:
— Oh, Hantz! Oh, meu amigo! Eu sou a tua esposa querida. Eu te amo…. Oh, sim! Eu te amo…. E, não obstante, me parece que as tuas caricias me fazem gelar o coração e me matam….
Depois, ela deu um doloroso e longo suspiro, e a mãe nada mais ouviu. Então olhou pelo buraco da porta e viu….
Qual não foi o terror que invadiu a sua alma! Esfregou os olhos, beliscou os braços para se capacitar de que não sonhava, e viu…. um vampiro!
Ela logo o reconheceu: era Hantz. Não aquele Hantz pálido, magro e descarnado pela enfermidade como estava no dia em que morreu, mas um Hantz robusto, fresco e vermelho como o tinha visto no tempo da sua perfeita saúde. Aquele espectro era Hantz, morto e enterrado no cemitério da aldeia havia mais de três meses….
Ela viu o cadáver redivivo em pé, junto à cama da sua filha e debruçado sobre ela, aplicando-lhe os lábios ao pescoço. Viu uma gota de sangue sobre o pescoço de Maria, que corria dos lábios trêmulos do espectro.
A pobre mulher, vendo isto, deu um grito espantoso e caiu desmaiada. Ao estrondo da queda, o pai de Maria, e toda a gente da casa acudiram. Levantaram a infeliz mãe, arrombarão a porta do quarto e nele só acharão o inanimado corpo de Maria!
Chamou-se o médico imediatamente. Este, porém, depois de fazer o necessário exame, declarou que não havia meio algum de lhe restituir a vida, porque não tinha uma só gota de sangue no corpo. E, por duas nódoas roxas que se avistavam no pescoço, iguais às que deixam as sanguessugas, conheceu-se a verdade do médico.
A mãe da infeliz Maria recuperou a consciência, mas, como contava o que tinha visto pelo buraco da porta, todos julgavam que estava louca.
Muitos dias depois deste acontecimento, a linda Joanna, vizinha e amiga dos parentes de Maria, foi atacada da melancolia em tudo igual à de que padecia a sua camarada. Tratou-se de espiar da mesma maneira por um buraco que se fez na porta, e viu-se o fantasma de Hantz a chupar-lhe, também, o sangue das artérias do pescoço, como asseverara a mãe de Maria.
O padre foi imediatamente chamado, e Joanna lhe confessou que, havia algum tempo, o espectro a visitava todas as noites, principalmente pela lua cheia, mas que nenhum mal lhe fazia. Contudo, como no pescoço já se divisassem duas nódoas roxas, o padre lhe rezou os exorcismos. Mas de nada valerão essas orações da Igreja: Joanna morreu poucos dias depois, sem lhe ficar no corpo uma só gota de sangue.
Igual fim tiveram mais cinco moças do vilarejo. Então o povo, amotinando-se, tomou o expediente de desenterrar o corpo de Hantz, a fim de ver se poderia cessar tão horroroso mal. Todavia, como a exumação realizou-se durante a lua cheia, achou-se a sepultura vazia.
Um doutor tanto pensou, tantos tratos deu ao juízo, que descobriu que os vampiros somente tinham o poder infernal de sair das suas covas durante a lua cheia. Conseguintemente, esperaram pelo minguante, cuja chegada se esperou com impaciência. E quando a lua apresentou uma diminuta parte do seu disco, correrão então a abrir a sepultura, e nele acharão o tal facínora que sossegadamente dormia com o sorriso nos lábios e com todas as aparências da melhor saúde. Atravessaram-lhe o ventre com uma estaca com tão boa vontade que nunca mais se levantou. Foi queimado e as cinzas lançadas ao vento. Este exemplo intimidou, sem dúvida, os outros vampiros daquelas terras, porque nunca mais se ouviu falar em semelhante flagelo.
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O VAMPIRO NO CONVENTO
O VAMPIRO NO CONVENTO(Carta a uma senhora polonesa há pouco falecida)Louis-Antoine De Caraccioli(1719 – 1803)Tradução: Paulo Soriano
Ilustre Dama:Porque agora o que respeita aos mortos me interessa mais do que o concernente aos vivos, reli há pouco o que tu me escreveste, certa feita, sobre os vampiros, esses pretensos cadáveres deambulantes, que, supõe-se, existiram na Hungria e na Polônia. As tuas reflexões sobre eles são maravilhosas, realmente dignas de ti. Tu te lamentavas, com razão, dos erros decorrentes da ignorância e da superstição, e te entristecias com Dom Calmet, que dera crédito à quimera dos vampiros.
Que ilusão é esta, a de crer, em alguma ocasião, que corpos separados das almas possam deixar os seus túmulos para, vagueando, sugar o sangue, aqui e acolá, dos vivos! Ah, como deixar de observar que, como disseste muito bem, “essa viva cor e essas carnes firmes, que se encontram nos cadáveres de supostos vampiros depois da exumação, não tinham outra causa senão as características da própria terra, adequadas à realização de tais prodígios”? E se esta observação foi depois confirmada pelas experiências realizadas na Hungria, que serviram para desiludir as gentes, como se admitir que ainda hoje haja pessoas escrupulosamente fiéis a essas ridículas superstições?
Nada me convenceu tanto da fraqueza do espírito humano quanto a obstinação de um religioso polonês, que tu também conheceste, ao sustentar ter visto com os próprios olhos um vampiro, e haver sido testemunha dos atrozes feitos que aquele cometeu num convento.
“Eu era superior em nosso convento de Lublin”, contava-me, “quando morreu um de nossos padres. Mal havia sido exposto o seu cadáver na igreja, onde deveria ficar até o dia seguinte, vieram avisar-me que o seu rosto havia enrubescido surpreendentemente e que o viram passear pelo dormitório. Corri ao seu ataúde e efetivamente reconheci que ele estava vermelho como fogo; portanto, ordenei a ele que, em razão da santa obediência, não viesse a perturbar o repouso de ninguém, e o preveni de que, se ousasse um mínimo movimento, faria com que lhe cortassem a cabeça e lhe transpassassem com estaca de madeira o coração. (Este é o modo usado na verificação dos que, acreditava-se, eram vampiros; segredo infalível para por fim às suas trágicas façanhas.)
Mas, algumas horas mais tarde recomeçou, o alvoroço. Então, fui à igreja, acompanhado por toda a comunidade, e disse ao morto, que mantinha sempre a face corada:
– Assim o quiseste, padre. Portanto, não me culpes. E para castigar-te por sedição, apelando ao direito que me é conferido como teu superior, ordeno que te cortem a cabeça e que te traspassem o coração!
E tal foi imediatamente cumprido. O vampiro levantou os pés várias vezes e exalou um forte grito. Pensei, a partir de então, que estaríamos tranquilos. Mas uma gritaria espantosa alarmou todo o mosteiro durante a noite, durando até o dia seguinte, quando acorri mais uma vez ao cadáver para informar-lhe que, porquanto a amputação não servira para fazê-lo recobrar a razão, seria ele queimado à tarde, no centro do pátio. Preparou-se a fogueira e o corpo, lançado às chamas, em breve reduziu-se a cinzas, mas isto suscitou uma tão terrível tempestade que a casa parecia que iria desabar.”
Sim, foi exatamente isto que eu escutei, em viva voz, de um religioso que foi destituído pelo bispo de Cracóvia justamente por ter feito tal demonstração em público. Mas isto não o impediu de continuar acreditando, e de narrar, aos que estivessem a sua volta, uma história tão absurda: na verdade, o fanatismo não raciocina. Aquele fato esteve nos lábios de todos na Polônia, tal como um outro acontecimento, ocorrido em Lemberg, que dizia respeito a um estudante declarado vampiro e como tal castigado.
Mas, o que importam as palavras, agora que tu estás na fonte da verdade? Ai, perdoa-me, pois sou uma alma extraviada em dor, e que a tudo se aferra, sem saber por quê! Assim o faz o viajante, que se perdeu no caminho: vai e vem, e procura as vagas pegadas que mais e mais lhe deveriam…Fonte: www.contosdeterror.site -
O VAMPIRO ARNALD PAUL
O VAMPIRO ARNALD PAULAugustin Calmet(1672 – 1757)Tradução de Paulo SorianoHá cerca de cinco anos, um certo heiduque[1], que vivia em Medreiga, chamado Arnald Paul, foi esmagado, numa queda, por uma carroça de feno.
Trinta dias após sua morte, quatro pessoas morreram repentinamente, e da mesma maneira que, segundo a tradição do país, falecem os que são atacados por vampiros.
Lembraram, então, que Arnald Paul costumava contar que, nos arredores de Caslova, perto da fronteira da Sérvia Otomana, havia sido atormentado por um vampiro turco. Acreditavam as pessoas que aqueles que eram vampiros passivos durante sua vida tornavam-se vampiros ativos após a morte; ou seja: os que foram sugados em vida, passavam a sugar o sangue dos vivos, quando mortos. Arnald Paul acreditava que houvera encontrado uma maneira de curar-se comendo a terra do sepulcro do vampiro e esfregando-se com seu sangue. Mas esta precaução que não o impediu de tornar-se vampiro após sua morte, já que foi exumado quarenta dias após seu sepultamento, e todos os indícios de um arquivampiro foram encontradas em seu corpo. O seu cadáver estava corado; seus cabelos, suas unhas e sua barba estavam crescidos e as suas veias repletas de um sangue fluido, que escorria de todas as partes de seu corpo e tisnava a mortalha na qual estava envolvido.
O hadnagi, ou o magistrado do lugar, na presença de quem a exumação ocorreu, e que era especialista em vampirismo, trazia, de acordo com o costume, uma estaca muito afiada, que foi cravada no coração do falecido Arnald Paul. A estaca traspassou completamente o seu corpo, o que — dizem — o fez soltar um grito terrível, como se vivo estivesse.
Depois disto, a sua cabeça foi cortada e o cadáver queimado. Em sequência, o mesmo procedimento foi realizado nos cadáveres das outras quatro pessoas que haviam morrido de vampirismo, pois receavam que estas pudessem converter em vampiro outras pessoas.
No entanto, todas essas cautelas não puderam evitar que, no final do ano passado — ou seja, ao cabo de cinco anos —, estas calamidades desastrosa recomeçassem e que vários habitantes da mesma aldeia viessem a morrer.
No espaço de três meses, quinze pessoas de diferentes idades e sexo morrem de vampirismo, alguns sem doença alguma e outros após dois ou três dias de definhamento.
Relata-se, entre outros casos, o de uma jovem chamada Stanoska, filha do heiduque Jotuïtzo, que fora dormir em perfeito estado de saúde. Contudo, acordou no meio da noite, completamente trêmula e soltando gritos terríveis. Dizia que o filho do heiduque Millo, falecido há nove semanas, tentara estrangulá-la enquanto dormia. A partir deste momento, a moça só fez definhar e, ao fim de três dias, feneceu. O que dissera a moça acerca do filho de Millo induziu a que este fosse reconhecido como um morto-vivo. Tendo sido exumado, verificaram que, de fato, tratava-se de um vampiro.
Os governantes locais, os médicos e os cirurgiões investigaram o ocorrido, procurando descobrir como o vampirismo havia conseguido renascer, mesmo diante das precauções tomadas alguns anos antes.
Descobriram, finalmente, depois de intensas investigações, que o falecido Arnald Paul não matara apenas as quatro mencionadas pessoas, mas também vários animais. Estes, por sua vez, haviam sido comidos pelas pessoas, que se tornaram novos vampiros, dentre elas o filho de Millo. Com base nessas provas, deliberaram desenterrar todos aqueles que já estavam mortos há um determinado tempo. Encontraram-se dezessete corpos com todos os mais evidentes sinais de vampirismo. Esses cadáveres também tiveram os corações traspassados e suas cabeças cortadas; depois, foram queimados, e suas cinzas jogadas ao rio.
Todos os procedimentos e execuções, de que falamos, foram realizados legal e escorreitamente, sendo atestados por vários oficiais que estavam em serviço na região, pelos principais cirurgiões dos regimentos e pelos principais habitantes do local. As atas foram enviadas no final de janeiro passado para o Conselho de Guerra Imperial em Viena, que havia estabelecido uma comissão militar para investigar a veracidade de todos esses fatos.
Foi o que o declararam o hadnagi Barriarar e os velhos heiduques, em documento assinado por Battuer, primeiro-tenente do regimento de Alexandre de Virtemberg, Clickſtenger, major-cirurgião do regimento de Frustemburch, outros três outros cirurgiões da Companhia, Guoichitz, capitão em Stallath.
[1] Soldado da infantaria húngara.
Fonte: www.contosdeterror.site -
"Robin de Sherwood" | Conto
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Robin Hood era um fora da lei que vivia na floresta de Sherwood, na Inglaterra medieval. Ele era famoso por roubar dos ricos e dar aos pobres, e por liderar um grupo de homens leais chamados de “Merry Men”. Ele também era um excelente arqueiro e espadachim, e tinha uma paixão pela bela Lady Marian.Um dia, ele soube que o xerife de Nottingham estava planejando capturar o rei Ricardo Coração de Leão, que estava voltando das Cruzadas. O xerife era um homem cruel e corrupto, que cobrava impostos abusivos do povo e apoiava o príncipe João, o irmão traidor do rei. Robin Hood decidiu impedir o plano do xerife e salvar o rei. Ele reuniu seus homens e armou uma emboscada na estrada onde o rei deveria passar. Ele se disfarçou de monge mendigo e se aproximou da comitiva real. Ele pediu uma esmola ao rei, que reconheceu sua voz e seu rosto. O rei ficou surpreso ao ver Robin Hood ali, mas fingiu não conhecê-lo. Ele lhe deu uma moeda de ouro e perguntou quem ele era. Robin Hood respondeu: “Eu sou um pobre homem que vive na floresta de Sherwood. Eu tenho muitos amigos lá, mas nenhum inimigo. Eu amo a justiça e odeio a opressão. Eu sou leal ao meu senhor, o rei Ricardo Coração de Leão.” O rei sorriu e disse: “Você é muito corajoso em dizer isso nesta terra dominada pelo príncipe João e pelo xerife de Nottingham. Eles são os meus inimigos, e também os seus.” Robin Hood disse: “Não tema, meu senhor. Eles não sabem que você está aqui. Eles estão esperando por você em outra estrada, onde eu preparei uma surpresa para eles.” O rei ficou curioso e perguntou: “Que surpresa é essa?” Robin Hood disse: “Venha comigo e veja com seus próprios olhos.” Ele levou o rei para a floresta, onde seus homens estavam escondidos nas árvores. Eles saudaram o rei com alegria e respeito. O rei ficou impressionado com a lealdade e a bravura dos homens de Robin Hood. Robin Hood disse: “Meus amigos, este é o nosso verdadeiro soberano, o rei Ricardo Coração de Leão. Ele voltou das Cruzadas para reclamar seu trono do príncipe João e do xerife de Nottingham.” Os homens gritaram: “Viva o rei! Viva Robin Hood!” Robin Hood disse: “Agora vamos à nossa surpresa. Nós trocamos as placas das estradas para enganar os inimigos do rei. Eles estão indo para uma armadilha que nós preparamos para eles.” Ele mostrou ao rei uma grande pilha de madeira coberta com folhas secas. Dentro dela havia barris cheios de pólvora. Robin Hood disse: “Quando eles chegarem perto desta pilha, nós acenderemos um pavio que vai fazer tudo explodir.” O rei ficou admirado com a astúcia de Robin Hood. Ele disse: “Você é um gênio! Você merece ser meu cavaleiro!” Ele tirou sua espada da bainha e tocou no ombro de Robin Hood. Ele disse: “Eu te nomeio Sir Robin de Locksley!” Robin Hood se ajoelhou diante do rei. Ele disse: “Eu aceito esta honra com humildade e gratidão.” O rei abraçou Robin Hood. Ele disse: “Você é meu amigo fiel! Agora vamos ver como os nossos inimigos vão se sair!” Eles se esconderam novamente nas árvores e esperaram. Logo, o xerife e seus homens chegaram à pilha de madeira, acreditando ser a comitiva real. Quando acenderam o pavio, uma grande explosão ocorreu, lançando-os para longe.Os homens de Robin Hood avançaram e capturaram o xerife e seus homens. Com a ajuda do rei, eles foram levados à justiça e condenados por suas ações cruéis.Robin Hood e seus homens foram celebrados como heróis por todo o reino, e Sir Robin de Locksley tornou-se um lendário cavaleiro. Ele casou-se com Lady Marian, sua amada, e continuou a lutar pela justiça e pelos direitos dos pobres.O rei Ricardo Coração de Leão reconheceu sua lealdade e coragem, e Robin Hood se tornou seu braço direito. Juntos, eles restauraram a paz e a justiça na Inglaterra, tornando-se lendas que viveriam para sempre na história. -
AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS
AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBASRobert E. Howard(1906 – 1936)Tradução de Fernando Neeser de AragãoAcordei subitamente e me sentei na cama, me perguntando sonolento quem batia tão violentamente à porta, ameaçando despedaçar os painéis. Uma voz guinchava, intoleravelmente aguçada, como se por terror louco.
– Conrad, Conrad! – alguém guinchava do outro lado da porta. – Pelo amor de Deus, deixe-me entrar! Eu o vi! Eu o vi!
– Parece ser Job Kiles – disse Conrad, erguendo sua longa estrutura do divã onde estivera dormindo, após ter cedido sua cama para mim. – Não derrube a porta! – ele gritou, procurando por seus chinelos – Estou indo!
– Bem, apresse-se! – gritou o visitante invisível – Acabei de olhar para dentro dos olhos do Inferno!
Conrad acendeu uma luz e abriu rapidamente a porta; e, numa figura meio caída, meio cambaleante e com olhos desvairados, reconheci o homem a quem Conrad chamara de Job Kiles – um homem rançoso e miseravelmente velho, que vivia na pequena propriedade vizinha à de Conrad. Agora, uma mudança pavorosa acontecera com o homem, normalmente tão reservado e senhor de si. Seu cabelo ralo estava totalmente eriçado; gotas de suor lhe brilhavam na barba cinza e, de tempos em tempos, ele tremia como se de uma febre violenta.
– Em nome de Deus, o que houve, Kiles? – exclamou Conrad, encarando-o – Você parece que viu um fantasma!
– Um fantasma! – a voz elevada de Kiles estalou e caiu num guincho de risada histérica – Eu vi um demônio do Inferno! Eu lhe digo, eu o vi esta noite! Há apenas alguns minutos! Ele me olhou pela minha janela e riu para mim! Oh, Deus, aquela risada!
– Quem? – Conrad perguntou brusca e impacientemente.
– Meu irmão Jonas! – gritou o velho Kiles.
Até Conrad se sobressaltou. Jonas, irmão gêmeo de Job, havia morrido há uma semana. Tanto Conrad quanto eu tínhamos visto seu cadáver ser colocado na tumba, no alto das inclinações íngremes das Colinas de Dagoth. Eu me lembrava do ódio que existira entre os irmãos: Job, o avarento, e Jonas, o esbanjador, que passou seus últimos dias em pobreza e solidão, na velha e arruinada mansão da família, nos declives mais baixos das Colinas de Dagoth; todo o seu veneno pairando sobre sua alma azedada, que se centrava no irmão sovina que morava numa casa própria, no vale. Este sentimento havia sido recíproco. Até mesmo quando Jonas estava morrendo, Job havia, de má vontade, se permitido ser convencido a ir até seu irmão. Enquanto isso ocorria, ele havia estado sozinho quando este último morreu, e a cena de morte deve ter sido horrenda, pois Job havia corrido para fora da sala, trêmulo e com o rosto pálido, perseguido por uma horrível crepitação de risada, quebrada bruscamente pelo súbito estrépito de morte.
Agora, o velho Job tremia diante de nós, o suor lhe escorrendo da pele acinzentada e balbuciando o nome de seu irmão morto.
– Eu o vi! Eu me levantei e sentei esta noite mais tarde que o usual. Assim que apaguei a luz para ir à cama, seu rosto me olhou malevolamente através da janela, emoldurado pelo luar. Ele voltou do Inferno para me arrastar para baixo, como jurou fazer enquanto morria. Ele não é humano! Há anos, ele não era! Suspeitei disso quando ele retornou de sua longa perambulação no Oriente. Ele é um demônio em forma humana. Um vampiro! Ele planeja me destruir corpo e alma!
Fiquei mudo e totalmente perplexo, e até Conrad não encontrou palavras. Confrontado pela aparente evidência de completa loucura, o que dizer ou fazer? Meu único pensamento era o de que Job Kiles estava obviamente insano. Ele agora agarrava Conrad pela gola de sua roupa de dormir, e o sacudia violentamente na agonia de seu terror.
– Só há uma coisa a ser feita! – ele gritou, com a luz do desespero em seus olhos – Devo ir até a tumba dele! Preciso ver, com meus próprios olhos, se ele ainda jaz lá, onde o enterramos! E vocês devem vir comigo! Não ouso atravessar sozinho a escuridão! Ele pode estar esperando por mim… jazendo à espera, atrás de alguma sebe ou árvore!
– Isto é loucura, Kiles! – advertiu Conrad – Jonas está morto… você teve um pesadelo…
– Pesadelo! – sua voz se ergueu a um grito estalado – Tive vários, desde que fiquei ao lado de seu maligno leito de morte, e ouvi as ameaças blasfemas escorrerem como um rio negro de seus lábios espumantes; mas aquilo não foi sonho! Eu estava completamente acordado, e eu lhes digo… eu lhes digo que vi meu irmão-demônio Jonas, me olhando malévola e horrendamente através da janela!
Ele torceu as mãos, gemendo de terror, com todo o seu orgulho, compostura e equilíbrio varridos por terror total, primitivo e animal. Conrad me olhou de relance, mas eu não tinha sugestão a oferecer. O assunto parecia tão completamente insano, que a única coisa óbvia a fazer parecia ser chamar a polícia e mandar o velho Job para o manicômio mais próximo. Mas havia, em seus modos, um terror fundamental que parecia atingir até mesmo a sensação ao longo de minha espinha.
Como se sentindo nossa dúvida, ele voltou a gritar:
– Eu sei! Vocês acham que estou louco! Estou tão são quanto vocês! Mas estou indo até aquela tumba, se eu tiver que ir só! E, se me deixarem ir só, meu sangue ficará em suas consciências! Vocês irão?
– Espere! – Conrad começou a se vestir apressadamente. – Nós vamos com você. Acho que a única coisa que destruirá esta alucinação é ver seu irmão no caixão dele.
– Sim – o velho Job riu terrivelmente. – Em sua tumba, no caixão sem tampa! Por que ele preparou aquele caixão aberto antes de morrer, e deixou ordens para que nenhum tipo de tampa fosse colocado sobre ele?
-–Ele sempre foi excêntrico – respondeu Conrad.
– Ele sempre foi um demônio – rosnou o velho Job. – Nós nos odiávamos desde a juventude. Quando ele desperdiçou sua herança e voltou rastejando, paupérrimo, ele se ressentiu porque eu não queria dividir com ele minhas riquezas tão duramente adquiridas. Aquele cão negro! Aquele demônio das covas do Purgatório!
– Bom, vamos ver logo se ele está em segurança na sua tumba – disse Conrad. – Está pronto, O’Donnel?
– Pronto – respondi, prendendo ao coldre minha pistola 45. Conrad riu.
– Não consegue esquecer sua criação texana, hein? – ele gracejou. – Acha que pode ser chamado para balear um fantasma?
– Bom, você não sabe dizer – respondi. – Não gosto de sair à noite sem ela.
– Pistolas são inúteis contra um vampiro – disse Job, movendo-se com impaciência. – Só há uma única coisa que prevalecerá contra eles! Uma estaca enfiada no coração negro do demônio.
– Grandes céus, Job! – Conrad riu abruptamente. – Não consegue falar sério sobre essa coisa?
– Por que não? – Uma chama de loucura se ergueu em seus olhos. – Existiram vampiros em épocas passadas… ainda existem no Leste Europeu e Oriente. Eu o ouvi se gabar a respeito do próprio conhecimento de cultos secretos e magia negra. Suspeitei disso… então, enquanto jazia moribundo, ele me contou seu segredo medonho… jurou que voltaria do túmulo e me arrastaria com ele para o Inferno!
Saímos de casa e atravessamos o gramado. Aquela parte do vale era pouco povoada, embora poucas milhas a sudoeste brilhassem as luzes da cidade. Adjacente aos jardins de Conrad a oeste, ficava a propriedade de Job, a casa escura avultando magra e silenciosa por entre as árvores. Aquela casa era o único luxo que o velho avarento permitia a si mesmo. Uma milha ao norte, fluía o rio, e ao sul se erguiam os sombrios contornos negros daquelas baixas e onduladas colinas estéreis, com longas inclinações cobertas por arbustos, às quais os homens chamam de Colinas de Dagoth – um nome curioso, não-aparentado com qualquer língua indígena conhecida, mas usado inicialmente por aqueles homens vermelhos para designarem aquela cordilheira raquítica. Eram praticamente inabitadas. Havia fazendas nas inclinações externas, em direção ao rio, mas os vales internos tinham solos muito rasos, e as próprias colinas eram rochosas demais para o cultivo. A pouco menos de 800 metros da propriedade de Conrad, se erguia a estrutura vagabunda que havia abrigado a família Kiles durante uns 300 anos – pelo menos, as pedras fundamentais datavam dessa época, embora o resto da casa fosse mais moderno. Acho que o velho Job estremeceu ao olhar para ela, ali empoleirada como um abutre no ninho, contra o negro fundo ondulado das Colinas de Dagoth.
Era uma selvagem noite ventosa, a qual atravessamos em nossa louca busca. Nuvens passavam sem parar pela lua, e o vento uivava pelas árvores, trazendo estranhos ruídos noturnos e pregando curiosas peças com nossas vozes. Nossa meta era a tumba que se acocorava numa inclinação mais alta de uma colina que se projetava do resto da cordilheira, correndo para trás e acima do planalto alto no qual se erguia a casa do velho Kiles. Era como se o ocupante do sepulcro olhasse sobre a casa ancestral e para o vale, que sua gente outrora possuíra da aresta ao rio. Agora, todo o chão pertencente à velha propriedade era a faixa que subia as inclinações até as colinas, a casa numa extremidade e a tumba na outra.
A colina sobre a qual o túmulo fora construído divergia das demais, como eu dissera, e, ao irmos para o sepulcro, passamos perto de sua extremidade íngreme e coberta por matagal, a qual recuava bruscamente para dentro de um penhasco vertical e coberto por moita. Estávamos nos aproximando da ponta dessa aresta, quando Conrad comentou:
– O que possuiu Jonas, para construir seu túmulo tão longe das criptas da família?
– Ele não o construiu – rosnou Job. – Foi construído há muito tempo por nosso ancestral, o velho Capitão Jacob Kiles, e por causa dele, esta projeção particular ainda é chamada de Colina Pirata… pois ele era um bucaneiro e contrabandista. Algum estranho capricho o fez construir seu tumulo lá em cima e, em sua vida, ele passou muito tempo sozinho ali, especialmente à noite. Mas ele nunca o ocupou, pois estava perdido no mar, numa luta com um navio de guerra. Ele costumava observar, em busca de inimigos ou soldados, desde aquele penhasco à nossa frente, e é por isso que as pessoas o chamam, até hoje, de Cabo do Contrabandista.
“O túmulo estava em ruínas, quando Jonas começou a morar na antiga casa, e ele o restaurou para receber seus ossos. Ele bem sabia que não ousava dormir em solo santificado! Antes de morrer, ele havia feito todos os preparativos – a tumba havia sido reconstruída, e o caixão sem tampa colocado nela para recebê-lo…”.
Estremeci, apesar de mim mesmo. A escuridão, as nuvens desvairadas passando pela lua leprosa, os ruídos estridentes do vento, as sombrias colinas escuras avultando sobre nós, as palavras desvairadas de nosso companheiro, tudo trabalhava minha imaginação para povoar a noite com formas de horror e pesadelo. Olhei nervosamente para as inclinações cobertas por arbustos, negras e repelentes na luz mutável, e me vi desejando que não estivéssemos passando tão perto dos despenhadeiros com moitas e assombrados por lendas do Cabo do Contrabandista, se sobressaindo da cordilheira sinistra como a proa de um navio.
– Não sou uma garota tola, para ser assustado por sombras. – O velho Job tagarelava. – Vi seu rosto maligno na janela iluminada pela lua. Sempre acreditei secretamente que os mortos caminham à noite. Agora… o que é isso?
Ele parou bruscamente, congelado numa altitude de terror completo. Instintivamente, aguçamos nossos ouvidos. Ouvimos os galhos das árvores se sacudirem na ventania. Ouvimos o farfalhar alto da grama alta.
– É apenas o vento – murmurou Conrad. – Ele distorce qualquer som.
– Não! Não, eu lhe digo! Era…
Um grito fantasmagórico veio com o vento – uma voz aguçada com medo e agonia mortais:
– Socorro! Socorro! Oh, Deus, tenha piedade! Oh, Deus! Oh, Deus!
– A voz do meu irmão! – gritou Job. – Ele está me chamando desde o Inferno!
– De onde ela veio? – sussurrou Conrad, com lábios subitamente secos.
– Não sei. – Minha pele se arrepiava umidamente até meus membros. – Não sei dizer. Pode ter vindo de cima… ou de baixo. Ela soa estranhamente abafada.
– O aperto da sepultura abafa a voz dele! – guinchou Job. – A mortalha grudada nele sufoca seus gritos! Eu lhes digo que ele uiva nas grelhas em brasa do Inferno, e quer me arrastar para compartilhar seu destino! Lá! Lá sobre o túmulo!
– A rota final de toda a humanidade – murmurou Conrad, cuja brincadeira medonha com as palavras de Job não me adicionou conforto. Seguimos o velho Kiles, mal conseguindo lhe seguir o passo enquanto ele galopava – uma figura magra e grotesca, atravessando as inclinações e galgando em direção ao vulto acocorado, ao qual o ilusório luar revelava como uma caveira brilhando obtusamente.
– Você reconheceu essa voz? – murmurei para Conrad.
– Não sei. Estava abafada, como você mencionou. Pode ter sido um truque do vento. Se eu disser que achei que foi Jonas, você pensaria que estou louco.
– Não agora – murmurei. – Achei que fosse insanidade, no início. Mas o espírito da noite entrou no meu sangue. Estou pronto para acreditar em qualquer coisa.
Havíamos galgado os declives e ficado diante da maciça porta de ferro do túmulo. Acima e atrás dela, a colina se erguia íngreme, oculta por densos matagais. O sombrio mausoléu parecia investido de agouro sinistro, causado pelos acontecimentos fantásticos da noite. Conrad virou a luz de sua lanterna sobre aquela visão ponderosa, com sua aparência antiga.
– Esta porta não foi aberta – disse Conrad. – A tranca não foi violada. Veja: aranhas já haviam feito suas teias por toda a soleira, e os fios estão intactos. O capim diante da porta não foi pisado, como aconteceria se alguém tivesse recentemente entrado no túmulo… ou saído dele.
– O que são portas e janelas para um vampiro? – queixou-se Job. – Eles passam por paredes sólidas como fantasmas. Eu lhes digo, não descansarei até ter entrado nessa tumba e feito o que devo fazer. Tenho a chave… a única chave existente no mundo que se encaixará naquela tranca.
Ele a puxou para fora: uma ferramenta antiga, a qual enfiou na fechadura. Houve um estalar e ranger de básculas enferrujadas, e o velho Job recuou, como se na expectativa de algum fantasma com presas de hiena voar em sua direção, através da porta que se abria.
Conrad e eu espiamos a parte de dentro – e admito que eu me firmei, sacudindo por conjecturas caóticas. Mas a escuridão lá dentro era estígia. Conrad fez menção de ligar sua lanterna, mas Job o impediu. O velho parecia ter recuperado grande parte de sua compostura normal.
– Dê-me a lanterna – ele disse, e havia determinação sombria em sua voz. – Irei só. Se ele retornou para o túmulo… se ele estiver novamente em seu caixão, sei como lidar com ele. Esperem aqui, e se eu gritar, ou se ouvirem sons de luta, corram para dentro.
– Mas… – Conrad começou uma objeção.
– Não questione! – guinchou o velho Kiles, começando novamente a se descompor. – Esta é minha tarefa, e eu a farei só!
Ele praguejou quando Conrad inadvertidamente girou o raio de luz diretamente em seu rosto; logo, agarrando a lanterna e puxando algo de seu paletó, entrou furtivamente no túmulo, empurrando a porta maciça para trás de si.
– Mais insanidade – murmurei inquieto. – Por que ele insistiu tanto para o acompanharmos, se pretendia entrar sozinho? E você percebeu o brilho nos olhos dele? Pura loucura!
– Não estou tão certo – respondeu Conrad. – Pareceu-me mais um triunfo maligno. Quanto a estar só, você dificilmente pode chamar assim, pois estamos a apenas poucos passos de distância dele. Ele tem algum motivo para não querer que entremos na tumba com ele. O que foi aquilo que ele tirou do paletó, quando entramos?
– Parecia uma estaca afiada e um pequeno martelo. Por que ele pegaria um martelo, já que não há o que ser desamarrado sobre o caixão?
– Claro! – Conrad falou bruscamente. – Como fui tolo em não ter entendido. Não me admira que ele queira adentrar o túmulo sozinho! O’Donnel, ele está falando sério sobre esse disparate de vampiro! Não se lembra das insinuações que ele deixou escapar, sobre estar preparado e tudo o mais? Ele pretende enfiar aquela estaca no coração do irmão! Vamos! Não pretendo deixar que ele mutile…
Da tumba, vibrou um grito que me assombrará quando eu estiver morrendo. Seu timbre medonho paralisou nossos passos e, antes que pudéssemos recuperar o juízo, houve um correr louco de pés, o impacto de um corpo voador contra a porta; e, para fora da tumba, como um morcego soprado para fora dos portões do Inferno, voou a figura de Job Kiles. Ele caiu de ponta-cabeça aos nossos pés, a lanterna elétrica em sua mão caindo ao chão e se apagando. Atrás dele, a porta de ferro ficou entreaberta e eu pensei ter ouvido um estranho barulho de deslizar e arrastar na escuridão. Mas toda a minha atenção foi voltada para o coitado que se torcia aos nossos pés em horríveis convulsões.
Nós nos inclinamos sobre ele. A lua, deslizando de trás de uma nuvem escura, iluminou seu rosto lívido e nós gritamos involuntariamente diante do horror ali estampado. Toda a luz de sanidade fora apagada de seus olhos arregalados, como uma vela apagada no escuro. Seus lábios frouxos se moviam, salpicando espuma. Conrad o sacudiu:
– Kiles, em nome de Deus, o que aconteceu com você?
Um horrível choramingar babante foi a única resposta; logo, entre os sons salivantes e sem significado, percebemos palavras humanas, babantes e meio inarticuladas.
– A coisa! A coisa no caixão!
Então, quando Conrad gritou uma pergunta feroz, os olhos rolaram para cima e pararam, os lábios contraídos se congelaram num horrível sorriso triste, e toda a estrutura magra do homem parecia afundar e desmoronar sobre si mesma.
– Morto! – murmurou Conrad, empalidecido.
– Não vejo ferimento. – sussurrei, sacudido até minha própria alma.
– Não há ferimentos… nenhuma gota de sangue.
– Então… então… – Mal tive coragem de transformar o pensamento pavoroso em palavras.
Olhamos medrosamente para a tira retangular de negrura, destacada na porta parcialmente aberta da tumba silenciosa. O vento guinchou subitamente através da grama, como uma exultante canção de triunfo demoníaco; e um súbito tremor se apossou de mim.
Conrad se ergueu e endireitou os ombros.
– Vamos! – ele disse. – Só Deus sabe o que se esconde naquele túmulo infernal… Mas temos que descobrir. O velho estava muito agitado, presa de seus próprios medos. Seu coração não era muito forte. Algo deve ter causado sua morte. Está comigo?
Qual terror de uma ameaça tangível e compreendida pode se igualar ao de uma ameaça invisível e sem nome? Mas balancei minha cabeça em consentimento, e Conrad pegou a lanterna, a ligou e grunhiu de prazer por ela não estar quebrada. Então, aproximamo-nos da sepultura como homens que se aproximam da toca de uma serpente. Minha pistola estava engatilhada em minha mão, quando Conrad abriu bruscamente a porta. Sua luz dançava rapidamente sobre as paredes úmidas, chão empoeirado e teto abobadado, até descansar no caixão sem tampa que se encontrava sobre seu pedestal de pedra no centro. Deste, nós nos aproximamos com a respiração presa, sem ousar fazer conjectura sobre qual horror estranho e não-terrestre poderia ir ao encontro de nossos olhos. Inspirando rapidamente, Conrad passou a luz de sua lanterna dentro dele. Um grito escapou dos nossos lábios: o caixão estava vazio.
– Meu Deus! – sussurrei – Job estava certo! Mas onde está o vampiro?
– Nenhum caixão vazio tirou a vida do corpo de Job Kiles – respondeu Conrad. – Suas últimas palavras foram “a coisa no caixão”. Havia algo dentro dele… algo que, ao ser visto, extinguiu a vida de Job Kiles como uma vela apagada.
– Mas onde está essa coisa? – perguntei com desconforto, um arrepio bem medonho me subindo e descendo pela espinha. – Ela não pode ter saído da tumba, sem a termos visto. Foi algo que pode ficar invisível à vontade? Estaria acocorada invisível na tumba conosco, aqui neste instante?
– Esta conversa é loucura – Conrad falou bruscamente, mas olhando rápida e instintivamente sobre o ombro à direita e esquerda. Logo, ele acrescentou:
– Você percebeu um leve odor repulsivo ao redor deste caixão?
– Sim, mas não consigo defini-lo.
– Nem eu. Não é exatamente um ranço de cripta. É uma espécie de cheiro terrestre de réptil. Ele me lembra vagamente os cheiros que senti debaixo da superfície da terra. Ele se adere ao caixão… como se alguma coisa profana do fundo da terra houvesse jazido ali.
Ele correu a luz sobre as paredes novamente, e a deteve subitamente, focando-a na parede de trás, a qual estava fora da camada de rocha da colina na qual a tumba foi construída.
– Veja!
Na parede supostamente sólida, aparecia uma longa abertura fina. Com uma só passada, Conrad a alcançou, e juntos a examinamos. Empurramos cautelosamente a porção da parede mais próxima dela, e ela cedeu silenciosamente para dentro, abrindo-se numa escuridão tamanha como eu nunca sonhara existir deste lado da sepultura. Recuamos involuntariamente e ficamos tensos, como se na expectativa de algum horror noturno saltar sobre nós. Logo, a risada brusca de Conrad foi como um choque de água gelada sobre nervos tensos.
– Pelo menos, o ocupante da tumba usa um meio não-sobrenatural de entrar e sair – ele disse. – Esta porta secreta foi evidentemente construída com extremo cuidado. Veja, é meramente um grande bloco vertical de pedra que gira sobre um pino. E o silêncio com o qual ele funciona mostra que o pino e os encaixes foram lubrificados recentemente.
Ele dirigiu seu raio de luz para dentro do buraco atrás da porta, e este revelou um túnel estreito correndo paralelo à soleira da porta, claramente para dentro da rocha sólida da colina. As paredes e o chão eram lisos e polidos, e o teto curvo.
Conrad recuou, voltando-se para mim:
– O’Donnel, eu pareço sentir algo realmente obscuro e sinistro aqui, e tenho certeza de que isso possui uma influência humana. Sinto como se tivéssemos nos deparado com um rio negro e oculto, correndo sob nossos próprios pés. Para onde ele leva, não sei dizer, mas creio que o poder por trás de tudo isso seja Jonas Kiles. Acredito que o velho Job realmente viu seu irmão na janela esta noite.
– Mas, a tumba vazia ou não, Jonas Kiles está morto.
– Acho que não. Creio que ele estava num estado autoinduzido de catalepsia, tal como é praticado pelos faquires hindus. Já vi alguns casos, e juraria que eles estavam realmente mortos. Eles descobriram o segredo da animação suspensa voluntária, apesar dos cientistas e céticos. Jonas Kiles viveu vários anos na Índia e, de alguma forma, ele deve ter aprendido aquele segredo.
“O caixão aberto, o túnel guiando do ponto da tumba à crença de que ele estava vivo quando foi colocado lá. Por alguma razão, ele queria que as pessoas acreditassem que havia morrido. Pode ser o capricho de uma mente perturbada. Pode ter um significado mais profundo e sombrio. À luz de sua aparição ao irmão e da morte de Job, acredito mais na segunda opção; mas, neste momento, minhas suspeitas são horríveis e fantásticas demais para expressar em palavras. Contudo, eu pretendo explorar este túnel. Jonas pode estar escondido em algum lugar dele. Está comigo? Lembre-se, aquele homem pode ser um maníaco homicida, ou se não, ele pode ser ainda mais perigoso que um louco”.
– Estou com você – grunhi, apesar da minha pele se arrepiar diante da perspectiva de mergulhar naquela cova escura. – Mas, e quanto ao grito que ouvimos ao passarmos pelo Cabo? Não houve fingimento de agonia! E qual foi a coisa que Job viu no caixão?
– Não sei. Pode ter sido Jonas, vestido com algum disfarce infernal. Devo admitir que há muito mistério unido a este assunto, mesmo que aceitemos a teoria de que Jonas está vivo e por trás de tudo isso. Mas vamos olhar dentro daquele túnel. Ajude-me a levantar Job. Não podemos deixá-lo aqui jazendo deste jeito. Nós o colocaremos no caixão.
E assim, erguemos Job Kiles e o colocamos no caixão do irmão que ele odiava, onde ele jazeu com olhos vidrados mirando desde suas congeladas feições cinzas. Enquanto eu o olhava, o canto fúnebre do vento parecia ecoar suas palavras em meus ouvidos: “Lá! Sobre o túmulo”. E seu caminho o havia realmente levado para o túmulo.
Conrad entrou primeiro pela porta secreta, à qual deixamos aberta. Enquanto adentrávamos aquele túnel negro, tive um momento de puro medo; e fiquei feliz que a pesada porta externa da tumba não possuísse fecho de mola, e que Conrad tivesse em seu bolso a única chave com a qual a tranca maciça pudesse ser fechada. Tive uma sensação desconfortável de que o demoníaco Jonas poderia trancar a porta, deixando-nos encerrados na tumba até o Juízo Final.
O túnel parecia correr irregularmente cada vez mais para o leste… e se mover cautelosamente, reluzindo a luz diante de nós.
– Este túnel nunca foi aberto por Jonas Kiles – sussurrou Conrad – Há um verdadeiro ar de antiguidade nele… Veja!
Outra portada escura apareceu à nossa direita. Conrad dirigiu sua lanterna para dentro dela, mostrando outra passagem mais estreita. Outras portas se abriram dentro dela, em ambos os lados.
– É uma rede regular – murmurei. – Corredores paralelos conectados por túneis menores. Quem imaginaria tal coisa sob as Colinas de Dagoth?
– Como Jonas Kiles a descobriu? – perguntou-se Conrad – Veja; há outra portada à nossa direita… e outra… e mais outra! Você está certo… é uma verdadeira rede de túneis. Quem, em nome do céu, os cavou? Devem ser o trabalho de alguma raça pré-histórica desconhecida. Mas este corredor em particular foi usado recentemente. Vê como a poeira está agitada no chão? Todas as portas estão à direita, e nenhuma à esquerda. Este corredor segue a linha externa da colina, e deve haver uma saída em algum lugar ao longo dele. Veja!
Estávamos passando pela abertura de um dos escuros túneis que se cruzavam, e Conrad havia lançado sua luz sobre a parede ao lado dele. Lá, nós vimos uma seta tosca, feita com giz vermelho e apontando para o túnel menor.
– Isso não pode levar para a saída – murmurei. – Ele mergulha ainda mais fundo nas entranhas da colina.
– Vamos segui-lo, de qualquer forma – respondeu Conrad. – Podemos achar facilmente o caminho de volta para este túnel externo.
Então, nós o adentramos, cruzando outros corredores maiores, e, em cada um, encontrando a seta que ainda apontava o caminho por onde íamos. O fino raio de luz de Conrad parecia quase perdido naquela densa escuridão, e presságios inomináveis e medos instintivos me assombravam enquanto mergulhávamos cada vez mais fundo no coração daquela colina amaldiçoada. Súbito, o túnel terminou abruptamente numa escada estreita, que guiava para baixo e desaparecia na escuridão. Um estremecimento involuntário me sacudiu enquanto eu descia o olhar para aqueles degraus esculpidos. Quais pés profanos os haviam pisado em eras esquecidas? Logo, nós vimos algo mais – uma pequena câmara se abrindo para o túnel, bem no topo da escada. E, quando Conrad dirigiu sua luz para dentro dela, uma exclamação involuntária irrompeu de meus lábios. Não havia ocupante, mas ela estava cheia de evidências de ocupação recente. Entramos e ficamos seguindo o movimento do fino raio de luz.
Que aquela câmara havia sido ocupada por humanos, isso não me espantava, dadas as nossas descobertas anteriores, mas ficamos horrorizados com a condição do conteúdo. Havia uma cama de acampamento ao lado dela, quebrada, os cobertores espalhados sobre o chão rochoso em tiras esfarrapadas. Livros e revistas estavam rasgados em pedaços e espalhados a esmo; latas de comida jaziam espalhadas sem cuidado, batidas e tortas, algumas delas arrebentadas e com seu conteúdo derramado. Havia uma lâmpada esmagada sobre o chão.
– Um esconderijo para alguém – disse Conrad. – E aposto minha cabeça que é Jonas Kiles. Mas que caos! Veja estas latas, aparentemente abertas ao serem batidas contra o chão de pedra… e esses cobertores, rasgados em tiras, como um homem rasgaria um pedaço de papel. Bom Deus, O’Donnel, nenhum ser humano faria tamanha devastação!
– Um louco faria – murmurei – O que é isso?
Conrad havia parado e apanhado uma agenda. Ele a ergueu até a luz de sua lanterna.
– Muito rasgada – ele grunhiu. – Mas temos sorte, de qualquer forma. É o diário de Jonas Kiles! Conheço sua caligrafia. Veja, esta última página está intacta e com a data de hoje! Uma prova positiva de que ele está vivo, na falta de outra prova.
– Mas onde ele está? – sussurrei, olhando ao redor com medo. – E por que toda esta devastação?
– A única coisa na qual posso pensar – disse Conrad – é que o homem era, pelo menos, parcialmente lúcido quando entrou nestas cavernas, mas, desde então, ficou insano. É melhor ficarmos alertas; se ele está louco, é totalmente possível que ele possa nos atacar no escuro.
– Eu pensei nisso – grunhi com um estremecimento involuntário. – É um belo pensamento: um louco se escondendo nestes infernais túneis negros, para saltar sobre nossas costas. Prossiga; leia o diário, enquanto eu fico de olho na porta.
– Vou ler este último registro – disse Conrad. – Talvez ele lance alguma luz sobre o tema.
E, focando a luz sobre os rabiscos, ele leu:
“Agora tudo está pronto para meu grande golpe. Esta noite, deixo para sempre este abrigo, nem ficarei triste, pois a eterna escuridão e silêncio estão começando a sacudir meus nervos de aço. Estou ficando imaginativo. Mesmo enquanto escrevo, pareço ouvir sons furtivos, como se de coisas rastejando de baixo, embora eu nunca tenha visto sequer um morcego ou uma cobra nestes túneis. Mas amanhã ocuparei a bela casa de meu amaldiçoado irmão. Enquanto ele – e é uma ótima zombaria eu me arrepender de não poder compartilhar isso com alguém – tomará meu lugar na fria escuridão – mais escura e fria que estes túneis escuros.
“Devo escrever, se não posso falar disso, pois estou emocionado com a minha própria sagacidade. Que astúcia diabólica a minha! Com quão demoníaca velhacaria eu planejei e preparei! Não havia ninguém no caminho, antes da minha ‘morte’ – há, há, há, se os tolos soubessem! –, no qual trabalhei nas superstições de meu irmão – deixando cair alusões e místicas observações. Ele sempre me considerou uma ferramenta do Maligno. Antes da minha ‘enfermidade’ final, ele tremeu à beira de acreditar que eu havia me tornado sobrenatural ou infernal. Logo, em meu ‘leito de morte’, quando despejei toda a minha fúria sobre ele, seu espanto foi genuíno. Eu sabia que ele estava totalmente convencido de que sou um vampiro. Bem, eu realmente conheço meu irmão. Estou certo de que ele fugiu de sua casa e preparou uma estaca para enfiar em meu coração. Mas ele não tomará atitude alguma, até ter certeza de que suas suspeitas são verdadeiras.
“Darei a ele esta certeza. Esta noite, aparecerei em sua janela. Aparecerei e sumirei. Não quero matá-lo de medo, porque assim meus planos de nada serviriam. Sei que, quando ele se recuperar de seu primeiro susto, virá até minha tumba para me matar com sua estaca. E, quando ele estiver em segurança na tumba, eu o matarei. Trocarei de roupa com ele – o colocarei em segurança na tumba, no caixão aberto – e voltarei furtivamente à sua bela casa. Nós nos parecemos bastante um com o outro, de modo que, com meu conhecimento e boa educação, posso imitá-lo perfeitamente. Além disso, quem suspeitaria? É bizarro demais – fantástico demais. Assumirei sua vida onde ele a deixou. As pessoas podem se surpreender com a mudança em Job Kiles, mas isso não irá além da surpresa. Viverei e morrerei no lugar de meu irmão e, quando a morte vier realmente a mim, que ela seja bastante adiada! Vou jazer em pompa, na cripta funerária do velho Kiles, com o nome de Job Kiles em minha lápide, enquanto o verdadeiro Job jaz, sem que ninguém imagine, na velha tumba da Colina do Pirata! Ah, é uma ótima, ótima zombaria!
“Eu me pergunto como o velho Job Kiles descobriu estes caminhos subterrâneos. Ele não os construiu. Eles foram entalhados em cavernas obscuras e rocha sólida, pelas mãos de homens esquecidos – há quanto tempo, eu não ouso arriscar uma conjectura. Enquanto estou aqui, aguardando a hora de estar pronto para agir, eu me entretive explorando-os. Percebi que são bem mais amplos do que eu havia suspeitado. As colinas devem estar conectadas com eles, e eles afundam na terra até uma profundeza incrível, pavimento sob pavimento, como os andares de um prédio, cada pavimento conectado com o inferior por uma única escada. O velho Jacob Kiles deve ter usado estes túneis – pelo menos, os do pavimento superior – para o depósito do saque e contrabando. Ele construiu a tumba para ocultar suas verdadeiras atividades e, é claro, abriu a entrada secreta e pôs a porta no eixo. Ele deve ter descoberto as tocas através da entrada oculta do Cabo do Contrabandista. A velha porta que ele construíra aqui era uma mera massa de lascas apodrecidas e metal enferrujado, quando a encontrei. Como ninguém a descobriu depois dele, é provável que ninguém encontre a nova porta que construí com minhas próprias mãos, para substituir a antiga. Mesmo assim, tomarei as devidas precauções no tempo certo.
“Eu tenho me perguntado bastante sobre a identidade da raça que deve um dia ter habitado estes labirintos. Não encontrei ossos nem crânios, embora eu tenha descoberto, no pavimento superior, instrumentos curiosamente endurecidos de cobre. Nos poucos andares seguintes, achei utensílios de pedra, até o décimo andar, onde eles desapareceram. E, também no andar superior, encontrei porções de paredes decoradas com pinturas grandemente desbotadas, mas evidenciando habilidade indubitável. Estas gravuras pintadas, eu encontrei em todos os pavimentos, inclusive no quinto, embora as decorações de cada andar fossem mais toscas que as do andar superior, até as últimas pinturas serem meras manchas sem significado, como as que um macaco faria com um pincel. Além disso, os instrumentos de pedra eram muito mais toscos nos níveis inferiores, assim como o feitio dos tetos, escadas, portadas, etc. Tem-se uma fantástica impressão de uma raça aprisionada, cavando cada vez mais fundo dentro da terra negra, século após século, e perdendo cada vez mais de seus atributos humanos, à medida que afundava a cada novo nível.
“O décimo-quinto andar não tem rima nem razão; os túneis correm sem rumo e sem plano aparente – assumindo um contraste com o pavimento mais alto, o qual é um triunfo da arquitetura primitiva, de modo que é difícil acreditar que tenham sido construídas pela mesma raça. Muitos séculos devem ter se passado entre a construção das duas camadas, e os construtores devem ter se degradado muito. Mas a décima-quinta camada não é o fim destas tocas misteriosas.
“A abertura da portada na única escada da camada mais alta foi bloqueada por pedras, que haviam caído do teto – provavelmente há centenas de anos, antes do velho Capitão Jacob descobrir aqueles túneis. Levado pela curiosidade, tirei os escombros, apesar daquilo exigir demais de minha força, e abri um buraco na pilha hoje mesmo, embora eu não tivesse tempo de explorar o que havia embaixo. Eu, de fato, duvido que pudesse fazê-lo, pois minha luz me mostrou, não a sucessão usual de degraus de pedra, mas um poço íngreme e liso, levando à negrura lá embaixo. Um macaco ou uma serpente pode subir e descer por ele, mas não um ser humano. Para quais fossos ele guia, eu não me importo em sequer tentar imaginar. Por alguma razão, a descoberta de que a décima-quinta camada não era a do poço não-pisado me deu uma estranha sensação arrepiante, e me levou a fantásticas conjecturas sobre o destino final da raça que outrora viveu nestas colinas. Supus que os escavadores, afundando cada vez mais na escala da vida, haviam se extinguido nas camadas mais baixas, embora eu não tenha achado nenhum resto para justificar minhas teorias. As camadas mais baixas não ficam em rocha quase sólida, como as que estão mais próximas da superfície. Elas estão em terra negra e numa espécie de pedra bem mole, e foram aparentemente cavadas com os utensílios mais primitivos; em alguns lugares, elas até parecem ter sido cavadas com dedos e unhas. Poderiam ser tocas de animais, exceto pela tentativa evidente de imitar os sistemas mais bem-organizados acima. Mas, sob a décima-quinta camada, como pude ver, mesmo através de minhas investigações superficiais desde acima, toda imitação para; as escavações sob a décima-quinta camada são buracos loucos e brutos; e, para quais profundezas eles descem, não tenho desejo de saber.
“Sou perseguido por fantásticas especulações no tocante à identidade da raça, que literalmente afundou na terra e desapareceu em suas profundezas negras há tanto tempo. Uma lenda insistia, entre índios destes arredores, que, muitos séculos antes da chegada dos homens brancos, seus ancestrais expulsaram uma estranha raça estrangeira para dentro das cavernas das Colinas de Dagoth, e a trancou ali para que morresse. Que não morreram, mas sobreviveram de alguma forma por, pelo menos, muitos séculos, é evidente. Quem eram, de onde vieram e qual foi seu destino final, nunca se saberá. Antropólogos podem catar alguma evidência das pinturas na camada mais alta, mas não pretendo que ninguém venha saber sobre essas tocas. Alguns destes desenhos obscuros retratam inconfundivelmente índios em guerra com homens evidentemente da mesma raça que os artistas. Estes modelos, eu me aventuraria a dizer, lembram mais o tipo caucasiano que o indígena.
“Mas está chegando a hora de minha visita ao meu amado irmão. Irei pela porta no Cabo do Contrabandista, e retornarei pelo mesmo caminho. Alcançarei a tumba antes do meu irmão, por mais rápido que ele venha – e eu sei que ele virá. Então, quando o ato estiver feito, sairei da tumba, e nenhum homem colocará novamente o pé nestes corredores. Pois me certificarei de que a tumba não será aberta, e uma conveniente explosão de dinamite derrubará rochas suficientes dos penhascos acima, para selar de forma eficaz a porta no Cabo do Contrabandista para sempre”.
Conrad pôs a agenda dentro do bolso.
– Louco ou são – ele disse sombriamente –, Jonas Kiles é um verdadeiro demônio. Não estou muito surpreso, mas estou levemente chocado. Que plano infernal! Mas ele errou em uma coisa: ele aparentemente supunha que Job viria sozinho para o túmulo. A prova de que ele não calculou o bastante.
– Basicamente – respondi. – Mas, no que diz respeito a Job, Jonas teve sucesso em seu plano diabólico: ele conseguiu matar o irmão, de alguma forma. Evidentemente, ele estava na tumba quando Job entrou. Ele, de alguma forma, o aterrorizou até a morte, e então, evidentemente percebendo nossa presença, escapuliu pela porta secreta.
Conrad sacudiu a cabeça. Um nervosismo crescente ficava evidente em suas maneiras, à medida que ele continuava a leitura do diário. De vez em quando, ele parava e erguia a cabeça em atitude de escuta.
– O’Donnel, não acredito que foi Jonas a quem Job viu no caixão… mudei um tanto de opinião. Uma perversa mente humana estava inicialmente por trás de tudo isto, mas alguns aspectos deste assunto, eu não posso atribuir à humanidade.
“Aquele grito que ouvimos no Cabo, a condição desta sala, a ausência de Jonas, tudo indica algo ainda mais obscuro e sinistro que o plano de assassinato feito por Jonas Kiles”.
– O que você quer dizer? – perguntei inquieto.
– Suponha que a raça que cavou estes túneis não morreu! – ele sussurrou. – Suponha que seus descendentes ainda vivam, em algum estado de existência anormal, nos fossos negros sob os andares dos corredores! Jonas menciona, em seus apontamentos, que ele pensou ter ouvido sons furtivos, como o de coisas rastejando desde abaixo!
– Mas ele morou nestes túneis durante uma semana. – adverti.
– Você esquece que o poço que leva aos fossos foi obstruído até hoje, quando ele removeu as rochas. O’Donnel, eu creio que os fossos mais baixos são habitados, que as criaturas acharam seu caminho até estes corredores, e que foi a visão de uma delas, dormindo no caixão, que matou Job Kiles!
– Mas isto é completa loucura! – exclamei.
– Mas estes túneis já foram habitados em tempos passados e, de acordo com o que lemos, os habitantes devem ter decaído a um nível incrivelmente baixo de vida. Que prova temos de que seus descendentes não continuaram vivendo nos horríveis buracos negros que Jonas viu sob o compartimento mais baixo? Ouça!
Ele apagou a lanterna e ficamos na escuridão por alguns minutos. De algum lugar, ouvi um fraco e deslizante barulho rastejante. Deslizamos furtivamente para dentro do túnel.
– É Jonas Kiles! – eu sussurrei, mas uma sensação gelada subiu e desceu por minha espinha.
– Então, ele estava se escondendo lá embaixo – murmurou Conrad. – Os sons vêm da escada… como se algo rastejasse de baixo. Não ouso acender a lanterna… se ele estiver armado, pode sacar sua arma.
Eu me perguntava por que Conrad, que tinha nervos de ferro na presença de inimigos humanos, estaria tremendo como uma folha. Eu me perguntava por que pingos gelados de horror sem nome estariam percorrendo minha espinha. E logo eu estava eletrizado. De algum lugar de trás do túnel, na direção pela qual havíamos chegado, ouvi outro som suave e repelente.
E, naquele instante, os dedos de Conrad afundaram como aço em meu braço. Na escuridão tenebrosa sob nós, duas faíscas amarelas e oblíquas cintilaram subitamente.
– Meu Deus! – veio o sussurro chocado de Conrad. – Não é Jonas Kiles!
Enquanto falávamos, outro par se juntou ao primeiro – subitamente, a escuridão bem abaixo de nós estava viva com flutuantes brilhos amarelos, como estrelas malignas refletidas num golfo anoitecido. Eles fluíam escada acima em nossa direção, silenciosos exceto por aquele detestável som deslizante. Um nojento cheiro terroso fluía até nossas narinas.
– Para trás, em nome de Deus! – ofegou Conrad, e começamos a recuar da escada, em direção ao túnel pelo qual tínhamos chegado. Então, veio subitamente a investida de algum corpo pesado através do ar, e, girando, atirei cega e a queima-roupa na escuridão. E meu grito, quando o tiro iluminou momentaneamente as sombras, foi ecoado por Conrad. No instante seguinte, corríamos pelo túnel como homens correndo do inferno, enquanto, atrás de nós, algo caía pesadamente, se debatia e espojava no chão, em suas convulsões de morte.
– Acenda sua lanterna – ofeguei. – Não podemos nos perder nestes labirintos infernais.
O raio de luz apunhalou a escuridão à nossa frente, e nos mostrou o corredor externo, onde havíamos visto pela primeira vez a seta. Lá, nós paramos por um instante, e Conrad dirigiu sua luz de volta ao túnel. Só vimos a escuridão vazia, mas, além daquele curto raio de luz, só Deus sabe que horrores rastejavam pela escuridão.
– Meu Deus! Meu Deus! – Conrad ofegou. – Você viu? Você viu?
– Não sei! – ofeguei. – Vislumbrei algo semelhante a uma sombra voadora, no clarão do tiro. Não era um homem… tinha a cabeça semelhante à de um cão…
– Eu não estava olhando naquela direção – ele sussurrou. – Eu olhava escada abaixo, quando o clarão de sua arma cortou a escuridão.
– O que você viu? – minha pele estava úmida de suor frio.
– Palavras humanas não são capazes de descrever! – ele gritou. – A terra negra ganhou vida, como se houvesse vermes gigantes. A escuridão se aglomerando com vida blasfema. Em nome de Deus, vamos sair daqui… por este corredor, até o túmulo!
Mas, quando demos um passo adiante, fomos paralisados por sons furtivos à nossa frente.
– Os corredores estão inçados deles! – sussurrou Conrad. – Rápido! Pelo outro caminho! Este corredor segue a linha da colina e deve levar até a porta no Cabo do Contrabandista.
Até o dia da minha morte, eu me lembrarei daquela fuga através daquele negro corredor silencioso, com o horror que se movia furtivamente aos nossos calcanhares. Por um momento, achei que algum espectro com presas de demônio pularia sobre nossas costas, ou sairia da escuridão à nossa frente. Então, Conrad, dirigindo sua luz turva para a frente, deu um soluço ofegante de alívio.
– A porta, finalmente. Meu Deus, o que é isto?
Quando sua lanterna brilhara sobre uma pesada porta com tranca de ferro, com uma chave pesada na fechadura maciça, ele havia tropeçado sobre algo que jazia caído ao chão. Sua luz mostrava uma contorcida forma humana, sua destruída cabeça jazendo numa poça de sangue. O rosto estava irreconhecível, mas conhecíamos a forma magra, ainda vestida em roupas de túmulo. A verdadeira Morte havia finalmente alcançado Jonas Kiles.
– O grito quando passamos pelo Cabo esta noite! – sussurrou Conrad – Era seu guincho de morte! Ele havia retornado aos túneis, após se mostrar para seu irmão… e o horror caiu sobre ele na escuridão!
Súbito, enquanto nos erguíamos sobre o corpo, ouvimos novamente aquele maldito e deslizante ruído rastejante na escuridão. Enlouquecidos, saltamos até a porta; giramos violentamente a chave e abrimos bruscamente a porta. Com um soluço de alívio, cambaleamos até a noite enluarada. Por um instante, a porta se abriu atrás de nós; logo, quando nos viramos para olhar, uma rajada feroz de vento a fechou.
Mas, antes que ela se fechasse, uma figura medonha saltou em nossa direção, meio iluminada pelos esparsos raios de lua: o esparramado corpo mutilado e, sobre ele, uma cinza monstruosidade bamboleante – um horror de olhos flamejantes e cabeça de cão, tal como loucos veem em negros pesadelos. Logo, a porta que se fechara sumiu de vista, e fugimos através da inclinação sob o luar móvel. Ouvi Conrad balbuciar:
– Crias dos fossos negros de loucura e noite eterna! Obscenidades rastejantes fervilhando no lodo das profundezas inimagináveis da terra… o horror supremo do retrocesso… o ponto mais baixo da degeneração humana… bom Deus, seus ancestrais eram homens! Os fossos sob a décima-quinta camada, para dentro de quais infernos de blasfemo horror negro eles afundam, e por quais hordas demoníacas são povoados? Deus proteja os filhos dos homens daqueles… Aqueles que moram sob as tumbas!
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A VIRGEM DE CERA
A VIRGEM DE CERA(Narrativa Irlandesa)Abraham Valdelomar (1888 – 1919)Tradução de Paulo SorianoPara o Dr. Castro Rojas
I— O rei…
— Sempre contos de realeza!…
— Os reis são esplêndidos e generosos. Em suas cabeças triunfa o ouro cinzelado e em seus tronos riem as pedras da África. E tornam as nossas narrativas magníficas. Têm joias, mulheres e cavalos. Favoritas do Cairo e leitos de mármore rosa. Eles compram cantos dos trovadores sentimentais e as graves máximas dos filósofos; a honorabilidade dos gentis-homens, a discrição das damas e a fina condescendência dos cavaleiros.
Falemos dos reis! Eles tornam esplêndidas nossas narrativas e enchem de pompa nossos pensamentos. O ouro dos reis!
O palácio de campo da senhorita Indrash estava envolto por uma atmosfera de superstição. Não havia na aldeia quem tivesse atravessado as grades de seus jardins ou o mistério de seus aposentos. Uns diziam que viram a dama sair, à noite, rodeada por enormes vampiros que a mantinham escrava e se alimentavam de seu sangue. Outros diziam que ela roubava as crianças das aldeias para beber-lhes o sangue fresco. Outros mais diziam vê-la fugir, à noite, aos bosques das comarcas vizinhas.
Certa feita, propagou-se na aldeia a notícia de que um peregrino, que havia chegado às grades do castelo, vira Indrah chorando atrás de umas sebes. Mais tarde chegou a dizer-se que a enigmática senhorita havia saído à noite, em procissão, pelas ruas da aldeia. O medo apavorou os singelos aldeões e, como ninguém mais voltou a sair de noite, as procissões se multiplicaram.
Então começaram as súplicas e as orações públicas. Ofereceram sacrifícios de flores nos templos e queimaram cabelos de crianças nas chaminés. Por fim, guardaram as aves brancas nos sarcófagos e pensaram em oferecer em holocausto a mais jovem virgem. Apesar disto, um jovem camponês, ao voltar à noite da gelosia de sua amada, teve que ocultar-se apressado. A procissão estava passando…
— Indrah ia nela?
— Ia em meio a um grupo de encurvados, com aspecto de vampiros negros, dos quais só se viam os olhos. No centro, quase morrediça e apoiada nos braços de um deles, ia a virgem pálida de cera. Indrah tinha uma transparência opalina e nenhuma cor profanava a brancura da jovem. Os acompanhantes, com amplas capas escuras, ruminavam surdamente sonatas incompreensíveis.
No dia seguinte, encontraram o camponês desorientado, vítima de uma crispação horrível. Morreu descrevendo entrecortadamente a procissão de Indrah. Então, na aldeia, ao medo sucedeu o espanto. Os homens começaram a preocupar-se; os velhos caminhavam taciturnos e encurvados, como se pensassem em algo sombrio; as mulheres não assomaram nos jardins secos e mortos; os rapazes já não iam ao campo; e as crianças, tristes e pálidas, dormiam nos cantos úmidos de seus casebres.
A cada dia aparecia um cadáver crispado e aquele lugar tomou o aspecto de cidade morta. Os velhos calavam sempre, os jovens não se amavam, as crianças não riam e as mulheres eram vítimas de alucinações. Aquela raça começou a extinguir-se.
II
— Quem era Indrah?…
— Ninguém sabia. Um aventureiro louco, um assassino original, um decepcionado ou um ser extraordinário vivia nos rochedos de um país do Norte, que dá para o mar, e onde não sai o sol. Era o rei Míndor.
Para chegar à sua atalaia, era preciso cruzar os pampas, onde o vento zumbia sempre; um vento gelado que arrancava as roupas e rachava os lábios. Em doze jornadas se chegava ao castelo de Míndor. O rei tinha vassalos que traziam os viajantes perdidos, os quais, pela generosidade de Míndor, dormiam no castelo, depois de serem convidados a ceias extraordinárias, em que os viajantes ficavam loucos de prazer, por razões que alguns creem e atribuem a bebidas excitantes. Neste estado de felicidade suprema, os viajantes eram trasladados para o jardim do castelo, onde havia um poço circular com beirada de ônix. O poço tinha uma escadaria de mármore como a entrada de um palácio subterrâneo que, ao girar, lançava em suas profundezas aquele que pisava a famosa escadaria.
Para lá eram levados os viajantes, ébrios de uma suprema felicidade, os quais, ao cair no poço, mesclavam-se aos cadáveres dos desgraçados que lhes haviam precedido nas ceias do castelo. Muitos homens ainda viviam, loucos, nesse poço, que era uma boca do inferno. Uma vez a cada vinte dias, ao pôr-se o Sol, abriam-se as portas enormes desse poço profundíssimo e sinistro. O rei, apoiado ao parapeito do poço, com sua taça de ouro, olhava, dominado por um prazer febril, quando as comportas se abriam e precipitavam-se as águas, pujantes e enormes, que tragavam num redemoinho os escombros humanos.
Logo, o elemento selvagem enchia todo o poço e, então, fechavam-se as comportas e deixava-se sair a água novamente.
— Mas… E quanto a Indrah?
— Era a filha do rei. Certa tarde, os vassalos cavaleiros desenhavam suas silhuetas nos pampas frios e escuros da comarca. Pouco a pouco, as formas foram se tornando nítidas e já aos pés do castelo viram chegar um novo peregrino, um jovem louro, de cor ardente, com a tez seca e os lábios rachados. Indrah teve por ele um sentimento que jamais experimentara por qualquer dos viajantes que chegavam ao palácio para morrer no poço. Só os via durante os banquetes e as ceias que Míndor oferecia às suas vítimas. Desta vez, Indrah estava apaixonada.
— Ela assistiu ao banquete?…
— Sim. Com olhos de tristeza, ao ver os obséquios dispensados ao jovem, sofria horrivelmente. Ao terminar a ceia, quando Nildo — assim se chamava o mancebo — embriagara-se pelo efeito os vinhos dourados e tintos, os pajens levaram-no, numa cadeira, ao pequeno jardim do poço. Indrah, que havia visto tudo, seguiu o seu pai.
— Ainda não, pai!
Míndor não respondeu. Os pajens seguiram seu caminho entre as sebes e instalaram Nildo, que não se dava conta de nada, no anel do poço. O rei lhe dizia:
— Mas te falta ver, mancebo louro, meus palácios encantados. Irás penetrar no maior e poderoso reino. Lá os jardins são eternos. Suaves e excitantes são os aromas das mulheres belas e pródigas. O Sol da manhã nunca se põe e os que foram aos meus reinos jamais regressaram. Gostarias de vê-lo?
— Sim, magnífico!
— Pai! — gritou Indran, num arranque gutural e selvagem. — Pai, este não!
Nildo, sem nada perceber, sorria, pensando em deleites ainda melhores. Os lacaios fizeram-no entrar no poço por umas das escadarias de mármore que cobriam o horrível segredo. Nildo avançou tranquilamente.
— Pai!…
A escada girou. A pancada do homem sobre a água produziu um estalido que soou lugubremente no profundíssimo poço. O rei deitou o ouvido, enquanto Indrah, enlouquecida, se perdia através das sebes do jardim. O rei olhava, apoiado ao parapeito, com uma satisfação imensa. Via, em meio à escuridão do poço, como os homens famintos mordiam os dedos de Nildo e outros, loucos, riam da fúnebre aventura, em meio à lama daquele ninho infernal.
— Abri as comportas! — gritou Míndor.
E as águas enormes e selvagem se precipitaram, afogando, em seus redemoinhos, os gritos de dor, de loucura e os espasmos terríveis. O poço estava cheio.
— Fechai!… Fechai mais depressa!…
A água começou a chegar às bordas do anel do poço, em vez de retirar-se. O rei gritou mais forte ainda:
— Fechai, vassalos, fechai mais depressa!…
Na área das comportas ninguém respondia. O poço começou a transbordar louca e desordenadamente. Parecia que todo o mar se precipitava furioso por esse vórtice gigantesco. No fundo, houve um ranger de correntes e rasgaduras formidáveis; tremeu a terra em que pisava o monarca e tudo se perdeu no avassalador impulso das ondas. Uma monstruosa invasão do mar lançou-se sobre o palácio, inundou os jardins reais vertiginosamente e, em poucos instantes, aquilo era domínio do mar, que, depois de profanar as galerias do rei e salões de ouro, invadiu a região e lá permaneceu… permaneceu por muitos dias.
— E indrah?
Quando viu Nildo cair, louca e desesperadamente pegou as chaves das comportas, matou o velho guardião e abriu para sempre as goelas do selvagem elemento. Quando o seu pai exclamou “ Fechai, vassalos, fechai depressa as comportas!”, Indrah lançou as enormes chaves ao fundo do mar e fugiu em seguida…
Ninguém sabe quando ela veio morar no palácio de campo daquele país, onde dizem os aldeões que sai nas noites procurando Nildo.
— Mas, e os encurvados?….
— Peregrinos jovens que ela havia salvado e que não mais a abandonaram. Nas noites de seu passeio, levavam-na com grande solicitude e, depois de passear pela cidade, voltavam à ao palácio antes do nascer do Sol.
III
Mas na aldeia morriam as pessoas, vítimas de espasmos horríveis. Certo dia, os habitantes se reuniram e combinaram surpreender o palácio de Indrah. Chamaram os campônios das regiões vizinhas e todos, à hora do crepúsculo, lançaram-se ao palácio armados de pedra, picaretas e enxadas.
Atropelaram velhos guardas e penetraram no grande salão escuro onde acreditavam que iriam encontrar Idrah e os vampiros. Os antigos servidores de Indrah fugiram e, ao fazê-lo, deixaram cair o corpo da virgem, sobre o qual avançaram os aldeões.
— Era o cadáver de Indrah?
— Não. Era uma representação em cera que se fazia passar por ela. Indrah havia morrido com certeza e aqueles homens, em sua honra, fizeram-na viver naquele bloco modelado que, como se fosse a própria Indrah, levavam a passeio todas as noites na aldeia.
— Quando fizeram o manequim?
— Ninguém sabe ainda, mas quando se viaja aos países do Norte, frios, secos e cheios de atalaias, os velhos contam esta lenda da virgem de cera e o rei Mindor.
Causa-nos muita melancolia viajar pelos países do Norte. Eles têm lendas muito tristes — a Europa não sabe disto — e, nos rochedos abruptos e abandonados, vivem ainda aqueles reis.
Estás triste. Nem sempre são belos os contos de realeza.
Fonte: www.contosdeterror.site -
AS VAMPIRAS
AS VAMPIRASClemente Palma(1872 – 1946)Parte I
Houve um tempo em que fiquei extremamente magro. Meus braços e pernas tornaram-se desconsoladamente finos, e meu o peito, antes musculoso e forte, degenerou de tal forma que, sob a pele lívida e pegajosa, a estrutura óssea de meu tórax se desenhava claramente. Minha pobre mãe me dizia, desconsolada:
— Stanislas, meu filho, que mal misterioso é esse que te consome? Teu emagrecimento não é natural e requer um exame médico. Que dor te incomoda? O que sentes de anormal? Conta-me tudo. Que o receio de me causares sacrifícios não te detenha. Irás a Nice, ao Adriático, à Suíça, aonde for necessário, para recobrar a saúde e as forças perdidas. Temo, meu filho, que a tuberculose haja se apoderado de teus pulmões… No entanto, não te ouço tossir. É verdade que não tosses, luz de minh’alma?
Minha noiva, a pequena e esbelta Natalia, beijava minhas mãos desconsoladamente.
— Os teus lábios ardem, meu Stanislas, como se o Etna estivesse nas tuas entranhas e aquecesse a tua boca e o teu hálito. Por que essa febre que te mata, esse fogo que te consome a vida e evapora o teu sangue? Eu te daria o meu para regozijar os meus olhos com as cores que as tuas faces, cheias de frescor e encanto, ostentavam antes… É alguma preocupação que destrói o teu ser? Mas não… Tu conservas o teu espírito alegre e apaixonado. E ele, muito ingrato, se impacienta e zomba do testemunho dos nossos olhos amorosos! Estás doente, Stanislas. Estás gravemente doente e logo repousarás no sepulcro. A tua mãe morrerá de tristeza e eu de desespero…
E a pobre donzela se ajoelhava diante de mim e molhava minhas mãos com suas lágrimas. Eu a erguia brincando e fazendo pouco caso de seus terrores. Mas as duas mulheres insistiram tanto que, por fim, fiquei alarmado.
Na verdade, eu me via um pouco magro e nada mais. A jovialidade de meu caráter não havia desaparecido. Eu me sentia extenuando: um pouco fadigado e enfraquecido pela manhã, mas logo me recuperava, sentia-me novamente forte e ágil, tanto que imaginava que, de uma altura formidável, poderia alcançar o céu, pegar o Sol, trazê-lo comigo, e com ele fazer um diadema que colocaria na fronte da minha pequena e esbelta Natalia.
— Mas se nada tenho, se não me acode nenhum sofrimento físico ou moral — disse às duas mulheres, quando, com voz lacrimosa, comentavam minha suposta enfermidade —, não vedes que a minha vida continua como sempre foi? Até mesmo alimento-me com melhor apetite e durmo mais profundamente. Não sinto dor alguma, e só podeis basear vossos temores na circunstância de eu estar agora mais pálido e magro… Bem, e daí? Há momentos em que homens e mulheres ficam um tanto abatidos. Tal pode ser porque, por circunstâncias desconhecidas, ocorra uma maior desassimilação orgânica. Então, deixai o meu corpo trabalhar. E, acima de tudo, ponde-me a salvo de vossos presságios e desconsolos que vão, realmente, me deixar doente…
Mas elas tanto fizeram, repito, que um dia, para comprazê-las, fui à cidade, onde estava o Dr. Max Bing, meu sábio e ainda jovem amigo.
— Fico infinitamente feliz em rever-te! — ele exclamou ao me ver entrar em seu consultório. E, depois, pondo os óculos e fixando seu olhar inquisidor em minha pessoa, fez um gesto incrível. — Homem! Que doença fez em ti tantos estragos? Estás com uma péssima aparência. Vejamos. Senta-te e me diz o que te traz. Vens como cliente ou como amigo?
— Em primeiro lugar, não estive doente, doutor. E creio que, pelo contrário, gozo de excelente saúde. Mas, apesar de estar saudável, venho ao senhor para que me diga o que é que eu tenho, embora eu esteja são.
— Bem, o teu aspecto é o de uma pessoa que esteve ou está gravemente doente. Entra em meu gabinete.
O médico examinou-me de diferentes maneiras e com diferentes aparelhos. Apalpou-me, colocou-me em várias posturas, auscultou-me e fez o que a sua ciência lhe indicava para descobrir o que me acontecia. Eu percebia que, a cada exame, o seu alarme crescia. Finalmente, com uma voz ligeiramente alterada, disse ele:
—Estás muito enganado, caro Stanislas, por pensares que estás saudável. És presa de uma consunção violenta que poderá ser fatal se não a atacarmos com rapidez e energia. O teu caso não é, certamente, o primeiro a chegar ao meu conhecimento, e todos os sintomas que observo fazem-me presumir que tu tens a enfermidade que matou Hansen, um belo e robusto jovem que morreu há dois meses. Sentes alguma dor insidiosa e contínua? Tens observado alguma anomalia funcional em teus órgãos? Sentes tonturas pela manhã, peso na cabeça, sono profundo ou entressonhos mortificantes?
O Dr. Bing falava num tom que se pretendia tranquilizador, mas notei que nele havia uma inquietação mal dissimulada. Ele me amava ternamente. As nossas famílias cultivavam uma leal amizade, e ele era um estudante de medicina quando eu ainda era criança, e mais de uma vez me teve em seus joelhos. O alarme do médico me causou um frio de morte nas veias: tive medo de morrer e pensei na minha mãe e na minha pequena Natalia. Tentei acalmar-me e disse ao médico o que já tinha dito tantas vezes: que sentia um ligeiro desvanecimento ao acordar, um esmorecimento que passava assim que bebia um grande copo de leite fervido no café da manhã. Depois, sentia-me ágil, todo o mal-estar desaparecia, comia com apetite e dormia profundamente. Quanto aos entressonhos, não me lembrava precisamente se os tinha, mas ficava-me alguma sombra de reminiscência de havê-los tido.
— São precisamente os sintomas que Hansen sentia — disse o médico, pensativo.
Em seguida, fez-me tirar a camisa e a camiseta e, com uma lente poderosa, examinou-me o pescoço e o peito.
— Exatamente igual a Hansen! — repetiu várias vezes, à medida que prosseguia em seu exame.
— Doutor! — exclamei, impaciente. —Não quero saber desse Sr. Hansen e pouco me importaria se ele ressuscitasse cem vezes e morresse outras tantas. Qualquer que tenha sido a doença que matou esse Hansen — tuberculose, hidrofobia, câncer ou meningite —, ele não foi o primeiro e não será o último.
— Ei, ei, jovem irascível! Se me lembro do pobre Hansen é porque ele tinha a mais estranha das enfermidades. A mais inverossímil das causas— mas, também, a mais terrível — foi a que o levou à sepultura. E, certamente, amiguinho, terás o mesmo fim de Hansen se eu não me empenhar em tua defesa. Há apenas dois caminhos: ou te entregas incondicionalmente a mim ou te entregas à própria sorte.
— Tens razão, meu amigo. Eu não quero morrer e me entrego aos teus cuidados. Desculpa-me o desatino. Continua o teu exame e salva-me.
O médico continuou atentamente as suas observações, e nelas ficou tão absorvido que falava em voz baixa, como se conversasse consigo mesmo, à medida que encontrava, sob as suas lentes, indícios que chamavam a sua atenção:
—Sim, aqui estão os resquícios bastante esmaecidos de mordedura e sucção. Os poros se dilataram até um raio três vezes maior do que o normal. Oh, percebo, claramente, a profundidade desta ruptura vascular! A carótida está seriamente comprometida pela equimose causada por uma ventosa formidável. Que terrível e inútil desperdício de vida… Certamente, há outras perdas nervosas, migrações forçadas de fluxos de energia, aproveitados ou transformados em misteriosas regiões… Ah, malditas! Ah, insaciáveis! Felizmente, existe ainda uma grande reserva de força para a luta. Não é um caso perdido. Que grande força é a da personalidade!
Depois, voltando-se para mim, ordenou-me que me vestisse.
— Meu amigo, se tivesses adiado a tua visita por uma quinzena ou um mês, eu te garanto que tudo teria sido inútil, e que terias empreendido a grande viagem sem a sentir e sem dares conta disso. Estarias agonizando, verias a tua mãe em desespero, verias o pastor prestando-te os últimos auxílios, e acreditarias que tudo seria uma brincadeira de mal gosto, um pesadelo, uma loucura de teus sentidos. És um homem e posso dizer-te: és vítima de sortilégios misteriosos. Morres durante o sono e os teus inimigos atacam-no enquanto dormes. Ainda existem, neste século de luzes e de incredulidade, forças misteriosas, poderes ocultos, sobrevivência da energia, malignidades ativas de vontades secretas, radiações psíquicas desconhecidas, forças não estudadas, espíritos — como se diz vulgarmente —, espíritos de mortos ou de vivos que operam, ferem, e até matam sorrateiramente. O raio de ação destas forças estranhas — a sua lei — ainda não ingressou no domínio da ciência oficial. São por ela negadas porque não são coisas verificáveis pelas leis científicas, pois não podem ser estudadas sob a lente do microscópio. E, no entanto, são coisas que existem, fenômenos que se realizam e que trazem consequências reais. Talvez tudo seja natural e racionalmente explicável dentro das leis biológicas e psíquicas conhecidas, e dentro das hipóteses aceitas, mas o que é certo é que ainda não restaram estabelecidos o mecanismo e a lei daquilo que, devido à sua aparência extranatural e maravilhosa, melhor corresponde à mitologia popular. Tu deves ter ouvido, entre os aldeões, mil histórias e lendas sobre súcubos e vampiros, e certamente riu-se delas. Bem, esses disparates, essas lendas de comadres, essas histórias de velhotes para assustar criancinhas são as que vieram a entrelaçar-se à vida de Hansen e o mataram; são as que, também, intervieram na tua vida e que te levariam a uma morte certa se eu não estivesse determinado a libertar-te delas com todo o esforço do meu carinho e dos meus estudos… Ainda amas Natalia? Sim, posso vê-lo nos teus olhos. Casa-te com ela o mais depressa possível. Acredita que isto contribuirá notavelmente para a nossa vitória. Não te assombres e nem me olhes com este ar de incredulidade. Eu sei o que digo. As mulheres idosas dizem que não há nada melhor do que o choro de uma criança para afugentar fantasmas e aparições. Tenho para mim que para afastar vampiras e súcubos não há nada melhor que um pimpolho de seis meses com o sangue de nossas veias.
Apesar da maneira meio brincalhona com que o médico me falava, senti que um frio de terror regelava os meus ossos e que uma palidez mortal aflorava em minha face.
—Ei, homem, não te alarmes! Eu me comprometo a arrancar de teu corpo essa obscura e sinistra consumição de vida. Por ora, tu comes comigo e dormes aqui. Escreve para a tua mãe e o meu empregado levará a tua carta. Visita a minha biblioteca, se quiseres, ou faz um passeio, se for de teu agrado. Ainda tenho que dedicar uma hora e meia aos meus clientes. Depois de escrever, toca a campainha e manda o meu empregado ir a cavalo à casa de tua mãe.
Enquanto o doutor atendia seus pacientes, procurei distrair-me de minhas dolorosas preocupações folheando os livros de sua biblioteca e vendo os seus estranhos e curiosos aparelhos. Mandei a carta à minha mãe e, quando já estava começando a entediar-me, o doutor entrou.
Conversamos um pouco e fomos para a sala de jantar em que, apesar da ameaça de morte que pairava sobre minha cabeça, ataquei a comida com verdadeiro apetite. O médico riu muito disso.
— Essa fome que sentes é a desforra da natureza: é o afã vital do organismo para recuperar as forças exauridas; é a vida buscando o equilíbrio perdido pela ação perturbadora de poderes ocultos.
Quando terminamos de comer, supliquei a ele que me contasse o caso de Hansen, e ele o fez da seguinte maneira:
Parte II
— Certa noite, já bem tarde, quando eu já me entregara ao sono há várias horas, a campainha tocou precipitadamente, anunciando um caso urgente. Ordenei ao mordomo que abrisse a porta e vesti imediatamente uma bata para receber o inoportuno cliente. Um jovenzinho pálido e lamuriento entrou e implorou-me de joelhos que acudisse imediatamente o seu irmão, que estava morrendo sem o meu auxílio. Eu o fiz entrar em meu dormitório e, enquanto eu me vestia, ele disse-me que, há vários meses, o seu irmão emagrecia, penosamente, dia a dia. Vários médicos e curandeiros tinham-no examinado, e ninguém conseguia parar a devastação da misteriosa doença: todos haviam receitado poderosos tônicos e revigorantes, mas tudo fora em vão, porque a caquexia era progressiva e, o que é pior, o doente não sentia qualquer desconforto ou dor que pudesse orientar os médicos.
“Naquela noite, ouviram um ruído no quarto de Hansen, e a mãe, temendo algum acidente, entrou no quarto e encontrou o jovem agitado, inchado, banhado de suor, e com uma pequena ferida no peito. Acordaram-no. A sua fraqueza era tal que ele não conseguia falar. A família de Hansen morava no campo, naquela bela quinta cujo bosque de tílias corta o caminho que liga a cidade à tua casa. Dispensei o jovem, assegurando-lhe que iria tão logo o meu cavalo fosse selado. Assim o fiz e, no caminho, pensei ter ouvido gritos e uivos estranhos, e presumi que partiam de lobos a devorar alguma ovelha desgarrada num bosque vizinho. Também julguei que o meu cavalo quisera empinar-se e que estremecia, como se mãos invisíveis o mortificassem e lhe impusessem obstáculos. Atribuí toda esta agitação à irascibilidade do animal, aborrecido com este trote noturno. Cheguei à quinta e fui levado por várias mulheres desconsoladas ao quarto do doente. Encontrei um jovem sumamente emaciado e pálido, que parecia estar dormindo ou desfalecido. Depois de examiná-lo, vi que tinha manchas vermelhas no pescoço e no peito e, neste, havia uma que sangrava ligeiramente. Examinando-a, imediatamente inferi que eram o resultado de uma sucção brutal. Mais de uma vez, eu tivera a ocasião de encontrar, nos hospitais, homens e mulheres que tinham sido sugados, em virtude daquele sadismo selvagem em que, em certos temperamentos grosseiros, o amor degenera. Não é raro que o amor e os instintos sanguinários e ferozes evoluam paralelamente; e, em muitas espécies animais, o amor é o antecedente da morte, ou melhor, esta é a consequência daquele.
“Como era natural supor, aquelas manchas de Hansen tinham alguma origem, e isso, talvez, pudesse me orientar quanto às causas do estado de coma e do enfraquecimento geral do pobre rapaz. Era o que eu precisava averiguar em primeiro lugar. Roguei à senhora que fizesse sair as suas filhas e o jovem que veio me procurar. Uma vez a sós, disse-lhe:
“— Senhora, o seu filho dá sinais de ter sido sugado por alguém que esteve com ele, aqui ou fora da quinta. Oh, senhora, compreendo a sua surpresa! Há coisas que a senhora ignora, que uma alma singela não pode conceber e que não é nobre descobrir. No entanto, devo preveni-la daquilo que observo em volta de seu filho: sinto a pérfida influência de algum ente maligno. Diga-me, então, se outras pessoas vivem aqui, além da senhora e seus filhos.
“— Meu marido, ausente por algumas semanas, a empregada de minhas filhas e mais dois velhos criados.
“— A senhora põe fé na moralidade da empregada?
“— Oh, sim, senhor! Fé absoluta…
“— É confiar demais, senhora … Perdoe-me esse questionamento sobre a privacidade do seu lar, mas acredite que eu preciso inteirar-me de certas coisas para diagnosticar a doença do seu jovem filho e determinar o tratamento. Diga-me se o jovem Hansen é dado a… amores passageiros, passatempos galantes… Vamos, diga-me se ele comete certas imprudências, como a maioria dos jovens de sua idade. Se bebe, se chega tarde e quais são os seus costumes.
“— Hansen vive apenas para a noiva, assim como ela vive apenas para ele. Não sei se ele comete as imprudências a que o senhor alude. Mas creio que não, porque todo o tempo é muito curto para que ele visite a sua Alicia. De manhã, caminha, na companhia de Alicia, com seus irmãos; de tarde, substitui o irmão no cuidado da plantação; de noite, ele volta para a noiva. Previno o senhor de que esses encontros se dão sempre na presença de meus filhos ou dos pais e irmãos de Alicia. Às dez horas da noite, Hansen vai para a cama.
“— Uma última pergunta, senhora: tem certeza de que, depois dessa hora, ninguém se encontra com Hansen e que o jovem não sai furtivamente de casa? Não me esconda nada, senhora, porque, apesar dos bons informes que me dá, posso assegurar-lhe que algo misterioso está acontecendo à noite. Algo que está matando o seu filho.
“A senhora, chorando, me garantiu a moralidade do filho, que a porta se fechava assim que Hansen chegava, que a empregada dormia no quarto contíguo ao das filhas, que o cão dormia junto ao quarto de Hansen. E tanta certeza me deu que vacilei no conceito que havia formado sobre as causas do definhamento do jovem enfermo.
“Ministrei a Hansen um tônico enérgico e ele logo acordou. Seu rosto expressava um grande assombro.
“— O que está acontecendo, mãe?” Por que me rodeias?
“Tomei o braço esquerdo do jovem e mostrei-lhe uma das manchas avermelhadas que cruzavam uma artéria; perguntei, olhando para ele.
“— Quem fez isto? E esta… contusão no pescoço? E esta, no peito?
“Hansen parecia perplexo com minhas perguntas. Depois, como quem lembra, ele respondeu:
“— Ah sim, sim… Eu já tinha observado isso nas manhãs, ao banhar-me. Mas, como não me causavam dor ou desconforto, não voltei a me lembrar dessas manchas.
“E, percebendo o desânimo e tristeza de sua mãe, ele se sentou na cama:
“— Acaso é algo sério, doutor? Será varíola? E quanto a Alicia? Não deixe que Alícia venha aqui.
“Tão sincera era a sua ignorância e tão notável era o tom de sua voz que não me restou dúvida de que Hansen não era minimamente responsável pelo seu mal.
“Depois de conversar um pouco com Hansen e sua mãe, despedi-me. Prescrevi um regime restaurador. Mandei que fechassem bem uma janela alta, que estava entreaberta, e ordenei à senhora que vigiasse cuidadosamente o sono do jovem. Prometi voltar no dia seguinte.
“Ao sair e montar o meu cavalo, notei que o animal estava assustadíssimo. Em muitos lugares, ao longo do caminho, percebi uivos e gritos distantes de mulheres, e em duas ou três ocasiões ouvi algo como o zumbido de pedras, atiradas por mãos invisíveis contra mim. Por muito tempo, já na cama, meditei sobre o estranho caso do jovem Hansen.
“No dia seguinte, às primeiras horas da noite, fui ver meu paciente. Seu semblante estava melhor. A senhora disse-me que, seguindo a minha orientação, tinha velado o sono do filho e que constantemente tinha de se levantar para fechar hermeticamente a janela do quarto, porque o ar, com uma fúria invulgar, lhe tinha empurrado as folhas. Mas, naquela noite, não houvera vento!
“Às nove, pus o jovem Hansen para dormir na minha presença. Mandei que lhe dessem leite, ovos crus e uma taça de vinho do Porto. Pouco depois, ele adormeceu. Então, pendurei paralelamente ao seu leito uma cortina preta que havia levado, apaguei a luz, abri um pouco a janela e me escondi num canto bem escuro, atrás de alguns móveis, para observar meu paciente. Mais de duas horas se passaram. Nenhum som chegava aos meus ouvidos além da tranquila respiração de Hansen, o canto dos galos da vizinhança e o mugido das vacas da quinta. Eu ouvi soar as doze horas em um relógio cuco. Esperei mais.
“De repente, ouvi vozes de mulheres que, à distância, mesclavam-se a uivos. Levantei furtivamente a cabeça para a janela. Vi uma nuvem informe que se agitava entre as barras, uma espécie de redemoinho de linhas tênues, de formas vagas e desfeitas, de corpos aéreos indecisos. Aos poucos, tudo foi se definindo, os ruídos se converteram em sussurros e as formas vagas se condensando em corpos de mulheres. Como aves carniceiras, elas se deixaram cair sobre os armários e os móveis. Eram mulheres brancas com feições nervosas e cínicas. Seus olhos eram amarelos e fosforescentes como os de corujas; os lábios — de um vermelho sangrento — eram carnudos e, atrás deles, contraídos em sorrisos perversos, se viam pequenos dentes, afiados e brancos como os de ratazanas. Os corpos dessas mulheres tinham o brilho oleoso de superfícies envernizadas e a transparência leitosa de opala. A primeira a descer precipitou-se, ansiosa, sobre o jovem adormecido e o beijou raivosamente na boca; depois, com uma contração infame dos lábios, tomou o lábio inferior de Hansen entre os dentes e o mordeu suavemente. Pôs-se, então, a sugar-lhe o sangue, enquanto o seu corpo se agitava diabolicamente e os seus olhos emitiam um fulgor esverdeado que iluminava o rosto do homem adormecido.
“Mais outras duas desceram: pareciam famintas de sangue e prazer. Uma se apoderou de uma orelha, outra sentou-se no chão e, com a ponta da língua, que devia ser áspera como a dos felinos, começou a acariciar a plantas dos pés de Hansen, que se contraíram, como se eletrificados. Outra, sinistramente bela, ajoelhou-se na cama e, com a espinha dorsal encurvada, com os cabelos lançados sobre a testa, aderiu sua boca ao peito de Hansen: parecia uma hiena devorando um cadáver. Todo o corpo do jovem se retorceu de um desespero louco, que poderia ser tanto a contração de um prazer agudo ou a de uma dor violenta: ele agitava-se com a inconsciência de um pedaço de carne posto em brasas. E outras e mais outras, diabólicas, belas, perversas, desceram da janela e aderiram as suas cabeças a diferentes partes do corpo de Hansen. Os corpos opalinos daquelas malditas mulheres se destacavam contra o tecido preto com toda a precisão. Vi passar gota a gota o sangue sugado por aquelas bocas infernais, via correr o sangue pálido por suas veias, subir-lhe aos rostos e colorir aquelas faces lívidas de um tênue rosa… O terror me paralisou e meus esforços para gritar foram em vão. Cinco ou dez minutos depois daquela horripilante cena de vampirismo, recuperei-me um pouco: dei um salto brusco, como molas em meu corpo tivessem sido repentinamente liberadas de um obstáculo que lhes impedia a distensão. As vampiras fugiram dando uivos tão terríveis que os meus cabelos se eriçaram.
“Com um salto — ou voo —, elas correram para a janela e escaparam aos gritos.
“A porta se abriu e a mãe de Hansen entrou apavorada, meio vestida. O uivo distante daquelas mulheres sinistras ainda podia ser escutado.
“— O que foi isso? — ela perguntou, tremendo de terror e pálida como um cadáver.
“— Senhora, eles são as vampiras, que há um bom tempo estão assassinando o seu filho. Quando se viram surpreendias em sua infame atividade, elas fugiram.
“A mãe de Hansen desmaiou de terror. Quando voltou a si, ajoelhou-se aos meus pés e, tomando as minhas mãos, disse:
“— Salve meu filho, doutor! Salve-o do poder dessas fúrias infernais. A minha vida, a do meu marido, dos meus filhos, será consagrada ao seu serviço; a nossa fortuna será sua, doutor…
“Prometi à senhora esgotar os recursos da ciência para salvar Hansen. Mas já era tarde. Todo o meu esforço foi inútil. Dois dias depois, morreu o pobre rapaz, alegre, sem perceber que fenecia, acreditando-se saudável, assim como tu mesmo acreditaste, meu amigo. Um dado: Hansen havia cortejado muitas mulheres antes de amar sua noiva. E muitas das belas aldeãs estavam morrendo de amor pelo galã que, nos últimos tempos, profundamente apaixonado por Alicia, as desprezava.”
Parte III
No dia seguinte, minha mãe e a pequena Natália me esperavam cheias de ansiedade. Assim que cheguei em casa, notaram a melhora que eu havia experimentado, mas se alarmaram quando viram que um pensamento sombrio vagava pelos meus olhos. Eu as tranquilizei, assegurando-lhes que logo estaria saudável e forte com o tratamento que o médico me havia prescrito. A pequena e esbelta Natalia saltou aos em meus braços batendo palmas de alegria. Num momento em que estávamos a sós, ela beijou meus olhos com tanto fervor e amor que minhas carnes estremeceram… Era assim que as vampiras deveriam beijar!
Dormi a tarde inteira com a cabeça apoiada nos joelhos da minha noiva, que havia obtido da família a permissão para passar o dia em minha casa.
À noite, não conseguia dormir. Às três da manhã, eu tinha os olhos fechados, mas não dormia. De repente, ouvi pequenos ruídos, pequenos estalos e, em seguida, o deslizar de algo impalpável sobre o tapete. Meus cabelos se eriçaram de terror. Senti que o hálito quente e perfumado dos lábios de uma mulher acariciava minha têmpora, e uma voz silenciosa murmurava em meus ouvidos frases ardentes de amor, promessas de felicidade infinita. Senti, depois, que um corpo duro e ardente, que não pesava, se punha ao meu lado e que uns lábios se colavam ao meu pescoço. Louco de terror, levantei-me, dando um grito abafado. E, tentando agarrar e estrangular a maldita vampira, só consegui mordê-la no braço. E, como se em meus dentes e em minha língua eu tivesse os olhos e a consciência; como se alguma vez eu tivesse provado o seu sangue, tive — sem ver aquele corpo que fugiu ou desvaneceu — a sensação de que a carne que mordia era a da pequena e esguia Natália.
Durante toda a manhã, fui presa de preocupações. À tarde, quando visitei a minha noiva, implorei que ela me mostrasse o braço, na altura cotovelo. Alicia tinha uma lesão recente! Eu não averiguei mais nada. Afastei-me, abruptamente, de minha noiva e, a cavalo, fui ver o médico, a quem contei, com ar sombrio, o que me havia acontecido e participei a minha resolução de desmascarar aquela infame bruxa, que se dedicava a satisfazer seus ignóbeis instintos vampíricos e, fingindo devotar o mais apaixonado amor, estava me matando.
O médico me ouviu com profunda atenção, refletiu um pouco e depois riu:
— O que me contaste prova algo que sempre me preocupou constantemente. Não deves fazer juízos deprimentes sobre a tua noiva, que merece teu amor e respeito, porque ela é pura como os anjos. O que acontece é que, por ser pura, inocente e boa, não deixa ela de ser mulher e, como tal, tem imaginação, desejos, sonhos e aspirações à felicidade. Ela tem nervos, tem ardores e veemências naturais e, acima de tudo, ela te ama com aquele amor equilibrado das naturezas saudáveis. Foram os seus desejos, suas curiosidades de noiva, seu pensamento intenso sobre ti o que vieram procurá-lo na noite passada. Os pensamentos, em certos casos, podem exteriorizar-se, personalizar-se, isto é, viver e agir, por uma certa energia latente no inconsciente que os acompanha, como seres ativos, como entidades substantivas, como pessoas. Tudo isso é obra da força psíquica que tem um raio de ação infinito e cujas leis ainda são misteriosas. Se perguntas a tua noiva o que ela fazia ontem à noite, à hora em que tiveste a visão, ela responderá que pensava em ti, que sonhava contigo. Talvez nada disso, porque o fenômeno misterioso também se verifica na mais absoluta inconsciência, e, talvez, com mais força. Acredita em mim, Stanislas: o poder da personalidade humana é muito vasto. Agora, aqui está o regime terapêutico que te prescrevo: casa-te com a tua prometida. Casa-te hoje mesmo. Se não hoje, amanhã. E se não for amanhã, o mais rápido possível. Esse é o teu remédio. E… o da tua noiva.
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O Lobo príncipe e a velha bruxa
O Lobo príncipe e a velha bruxaConto original Oldcold BooksEra uma vez um lobo solitário que vivia em uma floresta encantada. Ele olhava para os reinos vizinhos e sonhava em ser um príncipe poderoso e respeitado. Ele estava cansado de ser visto apenas como um animal selvagem e queria mudar sua sorte. Um dia, enquanto caminhava pela floresta, ele encontrou uma bruxa velha e sábia que vivia nas profundezas da floresta.
“Bruxa, você pode me ajudar a me tornar um príncipe?” perguntou o lobo.
“Eu posso ajudá-lo, mas há um preço a pagar”, respondeu a bruxa. “Você terá que completar um desafio difícil para provar que é digno de se tornar um príncipe.”
O lobo concordou com a proposta da bruxa e ela lhe deu seu desafio. “Você deve encontrar e trazer para mim três penas de fênix, a criatura mais rara e mágica da floresta encantada.”
O lobo sabia que seria uma missão difícil, mas ele estava determinado a se tornar um príncipe. Ele partiu em sua jornada, procurando a floresta inteira em busca da fênix. Ele percorreu muitos quilômetros, enfrentou muitos perigos e obstáculos, mas não encontrou nenhuma fênix.
O lobo estava prestes a desistir, quando uma raposa sábia o encontrou e perguntou o que estava errado. O lobo contou sua história para a raposa, que lhe disse: “A fênix é difícil de encontrar porque ela é muito rara e vive nas montanhas mais altas da floresta. Eu conheço um caminho que pode levá-lo lá, mas é muito perigoso.”
O lobo agradeceu a raposa e seguiu o caminho. Depois de muita escalada e esforço, ele finalmente chegou ao topo da montanha e encontrou a fênix. Ele pediu gentilmente por três penas e a fênix, impressionada com sua coragem, deu-lhe as penas.
O lobo trouxe as penas de volta para a bruxa, que estava impressionada com sua coragem e determinação. Ela concedeu ao lobo sua magia e ele se transformou em um belo príncipe, poderoso e respeitado por todos.
O lobo, agora príncipe, estava feliz por ter conquistado seu sonho, mas nunca esqueceu a lição que aprendeu. Ele percebeu que a verdadeira beleza e coragem estão dentro de si mesmo, e que, às vezes, a única coisa que precisamos é uma jornada difícil para encontrá-las.