OXD – Sua Diversão Online

Categoria: Contos

  • AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS


    AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS

    Robert E. Howard
    (1906 – 1936)
    Tradução de Fernando Neeser de Aragão

    Acordei subitamente e me sentei na cama, me perguntando sonolento quem batia tão violentamente à porta, ameaçando despedaçar os painéis. Uma voz guinchava, intoleravelmente aguçada, como se por terror louco.

    – Conrad, Conrad! – alguém guinchava do outro lado da porta. – Pelo amor de Deus, deixe-me entrar! Eu o vi! Eu o vi!

    – Parece ser Job Kiles – disse Conrad, erguendo sua longa estrutura do divã onde estivera dormindo, após ter cedido sua cama para mim. – Não derrube a porta! – ele gritou, procurando por seus chinelos – Estou indo!

    – Bem, apresse-se! – gritou o visitante invisível – Acabei de olhar para dentro dos olhos do Inferno!

    Conrad acendeu uma luz e abriu rapidamente a porta; e, numa figura meio caída, meio cambaleante e com olhos desvairados, reconheci o homem a quem Conrad chamara de Job Kiles – um homem rançoso e miseravelmente velho, que vivia na pequena propriedade vizinha à de Conrad. Agora, uma mudança pavorosa acontecera com o homem, normalmente tão reservado e senhor de si. Seu cabelo ralo estava totalmente eriçado; gotas de suor lhe brilhavam na barba cinza e, de tempos em tempos, ele tremia como se de uma febre violenta.

    – Em nome de Deus, o que houve, Kiles? – exclamou Conrad, encarando-o – Você parece que viu um fantasma!

    – Um fantasma! – a voz elevada de Kiles estalou e caiu num guincho de risada histérica – Eu vi um demônio do Inferno! Eu lhe digo, eu o vi esta noite! Há apenas alguns minutos! Ele me olhou pela minha janela e riu para mim! Oh, Deus, aquela risada!

    – Quem? – Conrad perguntou brusca e impacientemente.

    – Meu irmão Jonas! – gritou o velho Kiles.

    Até Conrad se sobressaltou. Jonas, irmão gêmeo de Job, havia morrido há uma semana. Tanto Conrad quanto eu tínhamos visto seu cadáver ser colocado na tumba, no alto das inclinações íngremes das Colinas de Dagoth. Eu me lembrava do ódio que existira entre os irmãos: Job, o avarento, e Jonas, o esbanjador, que passou seus últimos dias em pobreza e solidão, na velha e arruinada mansão da família, nos declives mais baixos das Colinas de Dagoth; todo o seu veneno pairando sobre sua alma azedada, que se centrava no irmão sovina que morava numa casa própria, no vale. Este sentimento havia sido recíproco. Até mesmo quando Jonas estava morrendo, Job havia, de má vontade, se permitido ser convencido a ir até seu irmão. Enquanto isso ocorria, ele havia estado sozinho quando este último morreu, e a cena de morte deve ter sido horrenda, pois Job havia corrido para fora da sala, trêmulo e com o rosto pálido, perseguido por uma horrível crepitação de risada, quebrada bruscamente pelo súbito estrépito de morte.

    Agora, o velho Job tremia diante de nós, o suor lhe escorrendo da pele acinzentada e balbuciando o nome de seu irmão morto.

    – Eu o vi! Eu me levantei e sentei esta noite mais tarde que o usual. Assim que apaguei a luz para ir à cama, seu rosto me olhou malevolamente através da janela, emoldurado pelo luar. Ele voltou do Inferno para me arrastar para baixo, como jurou fazer enquanto morria. Ele não é humano! Há anos, ele não era! Suspeitei disso quando ele retornou de sua longa perambulação no Oriente. Ele é um demônio em forma humana. Um vampiro! Ele planeja me destruir corpo e alma!

    Fiquei mudo e totalmente perplexo, e até Conrad não encontrou palavras. Confrontado pela aparente evidência de completa loucura, o que dizer ou fazer? Meu único pensamento era o de que Job Kiles estava obviamente insano. Ele agora agarrava Conrad pela gola de sua roupa de dormir, e o sacudia violentamente na agonia de seu terror.

    – Só há uma coisa a ser feita! – ele gritou, com a luz do desespero em seus olhos – Devo ir até a tumba dele! Preciso ver, com meus próprios olhos, se ele ainda jaz lá, onde o enterramos! E vocês devem vir comigo! Não ouso atravessar sozinho a escuridão! Ele pode estar esperando por mim… jazendo à espera, atrás de alguma sebe ou árvore!

    – Isto é loucura, Kiles! – advertiu Conrad – Jonas está morto… você teve um pesadelo…

    – Pesadelo! – sua voz se ergueu a um grito estalado – Tive vários, desde que fiquei ao lado de seu maligno leito de morte, e ouvi as ameaças blasfemas escorrerem como um rio negro de seus lábios espumantes; mas aquilo não foi sonho! Eu estava completamente acordado, e eu lhes digo… eu lhes digo que vi meu irmão-demônio Jonas, me olhando malévola e horrendamente através da janela!

    Ele torceu as mãos, gemendo de terror, com todo o seu orgulho, compostura e equilíbrio varridos por terror total, primitivo e animal. Conrad me olhou de relance, mas eu não tinha sugestão a oferecer. O assunto parecia tão completamente insano, que a única coisa óbvia a fazer parecia ser chamar a polícia e mandar o velho Job para o manicômio mais próximo. Mas havia, em seus modos, um terror fundamental que parecia atingir até mesmo a sensação ao longo de minha espinha.

    Como se sentindo nossa dúvida, ele voltou a gritar:

    – Eu sei! Vocês acham que estou louco! Estou tão são quanto vocês! Mas estou indo até aquela tumba, se eu tiver que ir só! E, se me deixarem ir só, meu sangue ficará em suas consciências! Vocês irão?

    – Espere! – Conrad começou a se vestir apressadamente. – Nós vamos com você. Acho que a única coisa que destruirá esta alucinação é ver seu irmão no caixão dele.

    – Sim – o velho Job riu terrivelmente. – Em sua tumba, no caixão sem tampa! Por que ele preparou aquele caixão aberto antes de morrer, e deixou ordens para que nenhum tipo de tampa fosse colocado sobre ele?

    -–Ele sempre foi excêntrico – respondeu Conrad.

    – Ele sempre foi um demônio – rosnou o velho Job. – Nós nos odiávamos desde a juventude. Quando ele desperdiçou sua herança e voltou rastejando, paupérrimo, ele se ressentiu porque eu não queria dividir com ele minhas riquezas tão duramente adquiridas. Aquele cão negro! Aquele demônio das covas do Purgatório!

    – Bom, vamos ver logo se ele está em segurança na sua tumba – disse Conrad. – Está pronto, O’Donnel?

    – Pronto – respondi, prendendo ao coldre minha pistola 45. Conrad riu.

    – Não consegue esquecer sua criação texana, hein? – ele gracejou. – Acha que pode ser chamado para balear um fantasma?

    – Bom, você não sabe dizer – respondi. – Não gosto de sair à noite sem ela.

    – Pistolas são inúteis contra um vampiro – disse Job, movendo-se com impaciência. – Só há uma única coisa que prevalecerá contra eles! Uma estaca enfiada no coração negro do demônio.

    – Grandes céus, Job! – Conrad riu abruptamente. – Não consegue falar sério sobre essa coisa?

    – Por que não? – Uma chama de loucura se ergueu em seus olhos. – Existiram vampiros em épocas passadas… ainda existem no Leste Europeu e Oriente. Eu o ouvi se gabar a respeito do próprio conhecimento de cultos secretos e magia negra. Suspeitei disso… então, enquanto jazia moribundo, ele me contou seu segredo medonho… jurou que voltaria do túmulo e me arrastaria com ele para o Inferno!

    Saímos de casa e atravessamos o gramado. Aquela parte do vale era pouco povoada, embora poucas milhas a sudoeste brilhassem as luzes da cidade. Adjacente aos jardins de Conrad a oeste, ficava a propriedade de Job, a casa escura avultando magra e silenciosa por entre as árvores. Aquela casa era o único luxo que o velho avarento permitia a si mesmo. Uma milha ao norte, fluía o rio, e ao sul se erguiam os sombrios contornos negros daquelas baixas e onduladas colinas estéreis, com longas inclinações cobertas por arbustos, às quais os homens chamam de Colinas de Dagoth – um nome curioso, não-aparentado com qualquer língua indígena conhecida, mas usado inicialmente por aqueles homens vermelhos para designarem aquela cordilheira raquítica. Eram praticamente inabitadas. Havia fazendas nas inclinações externas, em direção ao rio, mas os vales internos tinham solos muito rasos, e as próprias colinas eram rochosas demais para o cultivo. A pouco menos de 800 metros da propriedade de Conrad, se erguia a estrutura vagabunda que havia abrigado a família Kiles durante uns 300 anos – pelo menos, as pedras fundamentais datavam dessa época, embora o resto da casa fosse mais moderno. Acho que o velho Job estremeceu ao olhar para ela, ali empoleirada como um abutre no ninho, contra o negro fundo ondulado das Colinas de Dagoth.

    Era uma selvagem noite ventosa, a qual atravessamos em nossa louca busca. Nuvens passavam sem parar pela lua, e o vento uivava pelas árvores, trazendo estranhos ruídos noturnos e pregando curiosas peças com nossas vozes. Nossa meta era a tumba que se acocorava numa inclinação mais alta de uma colina que se projetava do resto da cordilheira, correndo para trás e acima do planalto alto no qual se erguia a casa do velho Kiles. Era como se o ocupante do sepulcro olhasse sobre a casa ancestral e para o vale, que sua gente outrora possuíra da aresta ao rio. Agora, todo o chão pertencente à velha propriedade era a faixa que subia as inclinações até as colinas, a casa numa extremidade e a tumba na outra.

    A colina sobre a qual o túmulo fora construído divergia das demais, como eu dissera, e, ao irmos para o sepulcro, passamos perto de sua extremidade íngreme e coberta por matagal, a qual recuava bruscamente para dentro de um penhasco vertical e coberto por moita. Estávamos nos aproximando da ponta dessa aresta, quando Conrad comentou:

    – O que possuiu Jonas, para construir seu túmulo tão longe das criptas da família?

    – Ele não o construiu – rosnou Job. – Foi construído há muito tempo por nosso ancestral, o velho Capitão Jacob Kiles, e por causa dele, esta projeção particular ainda é chamada de Colina Pirata… pois ele era um bucaneiro e contrabandista. Algum estranho capricho o fez construir seu tumulo lá em cima e, em sua vida, ele passou muito tempo sozinho ali, especialmente à noite. Mas ele nunca o ocupou, pois estava perdido no mar, numa luta com um navio de guerra. Ele costumava observar, em busca de inimigos ou soldados, desde aquele penhasco à nossa frente, e é por isso que as pessoas o chamam, até hoje, de Cabo do Contrabandista.

    “O túmulo estava em ruínas, quando Jonas começou a morar na antiga casa, e ele o restaurou para receber seus ossos. Ele bem sabia que não ousava dormir em solo santificado! Antes de morrer, ele havia feito todos os preparativos – a tumba havia sido reconstruída, e o caixão sem tampa colocado nela para recebê-lo…”.

    Estremeci, apesar de mim mesmo. A escuridão, as nuvens desvairadas passando pela lua leprosa, os ruídos estridentes do vento, as sombrias colinas escuras avultando sobre nós, as palavras desvairadas de nosso companheiro, tudo trabalhava minha imaginação para povoar a noite com formas de horror e pesadelo. Olhei nervosamente para as inclinações cobertas por arbustos, negras e repelentes na luz mutável, e me vi desejando que não estivéssemos passando tão perto dos despenhadeiros com moitas e assombrados por lendas do Cabo do Contrabandista, se sobressaindo da cordilheira sinistra como a proa de um navio.

    – Não sou uma garota tola, para ser assustado por sombras. – O velho Job tagarelava. – Vi seu rosto maligno na janela iluminada pela lua. Sempre acreditei secretamente que os mortos caminham à noite. Agora… o que é isso?

    Ele parou bruscamente, congelado numa altitude de terror completo. Instintivamente, aguçamos nossos ouvidos. Ouvimos os galhos das árvores se sacudirem na ventania. Ouvimos o farfalhar alto da grama alta.

    – É apenas o vento – murmurou Conrad. – Ele distorce qualquer som.

    – Não! Não, eu lhe digo! Era…

    Um grito fantasmagórico veio com o vento – uma voz aguçada com medo e agonia mortais:

    – Socorro! Socorro! Oh, Deus, tenha piedade! Oh, Deus! Oh, Deus!

    – A voz do meu irmão! – gritou Job. – Ele está me chamando desde o Inferno!

    – De onde ela veio? – sussurrou Conrad, com lábios subitamente secos.

    – Não sei. – Minha pele se arrepiava umidamente até meus membros. – Não sei dizer. Pode ter vindo de cima… ou de baixo. Ela soa estranhamente abafada.

    – O aperto da sepultura abafa a voz dele! – guinchou Job. – A mortalha grudada nele sufoca seus gritos! Eu lhes digo que ele uiva nas grelhas em brasa do Inferno, e quer me arrastar para compartilhar seu destino! Lá! Lá sobre o túmulo!

    – A rota final de toda a humanidade – murmurou Conrad, cuja brincadeira medonha com as palavras de Job não me adicionou conforto. Seguimos o velho Kiles, mal conseguindo lhe seguir o passo enquanto ele galopava – uma figura magra e grotesca, atravessando as inclinações e galgando em direção ao vulto acocorado, ao qual o ilusório luar revelava como uma caveira brilhando obtusamente.

    – Você reconheceu essa voz? – murmurei para Conrad.

    – Não sei. Estava abafada, como você mencionou. Pode ter sido um truque do vento. Se eu disser que achei que foi Jonas, você pensaria que estou louco.

    – Não agora – murmurei. – Achei que fosse insanidade, no início. Mas o espírito da noite entrou no meu sangue. Estou pronto para acreditar em qualquer coisa.

    Havíamos galgado os declives e ficado diante da maciça porta de ferro do túmulo. Acima e atrás dela, a colina se erguia íngreme, oculta por densos matagais. O sombrio mausoléu parecia investido de agouro sinistro, causado pelos acontecimentos fantásticos da noite. Conrad virou a luz de sua lanterna sobre aquela visão ponderosa, com sua aparência antiga.

    – Esta porta não foi aberta – disse Conrad. – A tranca não foi violada. Veja: aranhas já haviam feito suas teias por toda a soleira, e os fios estão intactos. O capim diante da porta não foi pisado, como aconteceria se alguém tivesse recentemente entrado no túmulo… ou saído dele.

    – O que são portas e janelas para um vampiro? – queixou-se Job. – Eles passam por paredes sólidas como fantasmas. Eu lhes digo, não descansarei até ter entrado nessa tumba e feito o que devo fazer. Tenho a chave… a única chave existente no mundo que se encaixará naquela tranca.

    Ele a puxou para fora: uma ferramenta antiga, a qual enfiou na fechadura. Houve um estalar e ranger de básculas enferrujadas, e o velho Job recuou, como se na expectativa de algum fantasma com presas de hiena voar em sua direção, através da porta que se abria.

    Conrad e eu espiamos a parte de dentro – e admito que eu me firmei, sacudindo por conjecturas caóticas. Mas a escuridão lá dentro era estígia. Conrad fez menção de ligar sua lanterna, mas Job o impediu. O velho parecia ter recuperado grande parte de sua compostura normal.

    – Dê-me a lanterna – ele disse, e havia determinação sombria em sua voz. – Irei só. Se ele retornou para o túmulo… se ele estiver novamente em seu caixão, sei como lidar com ele. Esperem aqui, e se eu gritar, ou se ouvirem sons de luta, corram para dentro.

    – Mas… – Conrad começou uma objeção.

    – Não questione! – guinchou o velho Kiles, começando novamente a se descompor. – Esta é minha tarefa, e eu a farei só!

    Ele praguejou quando Conrad inadvertidamente girou o raio de luz diretamente em seu rosto; logo, agarrando a lanterna e puxando algo de seu paletó, entrou furtivamente no túmulo, empurrando a porta maciça para trás de si.

    – Mais insanidade – murmurei inquieto. – Por que ele insistiu tanto para o acompanharmos, se pretendia entrar sozinho? E você percebeu o brilho nos olhos dele? Pura loucura!

    – Não estou tão certo – respondeu Conrad. – Pareceu-me mais um triunfo maligno. Quanto a estar só, você dificilmente pode chamar assim, pois estamos a apenas poucos passos de distância dele. Ele tem algum motivo para não querer que entremos na tumba com ele. O que foi aquilo que ele tirou do paletó, quando entramos?

    – Parecia uma estaca afiada e um pequeno martelo. Por que ele pegaria um martelo, já que não há o que ser desamarrado sobre o caixão?

    – Claro! – Conrad falou bruscamente. – Como fui tolo em não ter entendido. Não me admira que ele queira adentrar o túmulo sozinho! O’Donnel, ele está falando sério sobre esse disparate de vampiro! Não se lembra das insinuações que ele deixou escapar, sobre estar preparado e tudo o mais? Ele pretende enfiar aquela estaca no coração do irmão! Vamos! Não pretendo deixar que ele mutile…

    Da tumba, vibrou um grito que me assombrará quando eu estiver morrendo. Seu timbre medonho paralisou nossos passos e, antes que pudéssemos recuperar o juízo, houve um correr louco de pés, o impacto de um corpo voador contra a porta; e, para fora da tumba, como um morcego soprado para fora dos portões do Inferno, voou a figura de Job Kiles. Ele caiu de ponta-cabeça aos nossos pés, a lanterna elétrica em sua mão caindo ao chão e se apagando. Atrás dele, a porta de ferro ficou entreaberta e eu pensei ter ouvido um estranho barulho de deslizar e arrastar na escuridão. Mas toda a minha atenção foi voltada para o coitado que se torcia aos nossos pés em horríveis convulsões.

    Nós nos inclinamos sobre ele. A lua, deslizando de trás de uma nuvem escura, iluminou seu rosto lívido e nós gritamos involuntariamente diante do horror ali estampado. Toda a luz de sanidade fora apagada de seus olhos arregalados, como uma vela apagada no escuro. Seus lábios frouxos se moviam, salpicando espuma. Conrad o sacudiu:

    – Kiles, em nome de Deus, o que aconteceu com você?

    Um horrível choramingar babante foi a única resposta; logo, entre os sons salivantes e sem significado, percebemos palavras humanas, babantes e meio inarticuladas.

    – A coisa! A coisa no caixão!

    Então, quando Conrad gritou uma pergunta feroz, os olhos rolaram para cima e pararam, os lábios contraídos se congelaram num horrível sorriso triste, e toda a estrutura magra do homem parecia afundar e desmoronar sobre si mesma.

    – Morto! – murmurou Conrad, empalidecido.

    – Não vejo ferimento. – sussurrei, sacudido até minha própria alma.

    – Não há ferimentos… nenhuma gota de sangue.

    – Então… então… – Mal tive coragem de transformar o pensamento pavoroso em palavras.

    Olhamos medrosamente para a tira retangular de negrura, destacada na porta parcialmente aberta da tumba silenciosa. O vento guinchou subitamente através da grama, como uma exultante canção de triunfo demoníaco; e um súbito tremor se apossou de mim.

    Conrad se ergueu e endireitou os ombros.

    – Vamos! – ele disse. – Só Deus sabe o que se esconde naquele túmulo infernal… Mas temos que descobrir. O velho estava muito agitado, presa de seus próprios medos. Seu coração não era muito forte. Algo deve ter causado sua morte. Está comigo?

    Qual terror de uma ameaça tangível e compreendida pode se igualar ao de uma ameaça invisível e sem nome? Mas balancei minha cabeça em consentimento, e Conrad pegou a lanterna, a ligou e grunhiu de prazer por ela não estar quebrada. Então, aproximamo-nos da sepultura como homens que se aproximam da toca de uma serpente. Minha pistola estava engatilhada em minha mão, quando Conrad abriu bruscamente a porta. Sua luz dançava rapidamente sobre as paredes úmidas, chão empoeirado e teto abobadado, até descansar no caixão sem tampa que se encontrava sobre seu pedestal de pedra no centro. Deste, nós nos aproximamos com a respiração presa, sem ousar fazer conjectura sobre qual horror estranho e não-terrestre poderia ir ao encontro de nossos olhos. Inspirando rapidamente, Conrad passou a luz de sua lanterna dentro dele. Um grito escapou dos nossos lábios: o caixão estava vazio.

    – Meu Deus! – sussurrei – Job estava certo! Mas onde está o vampiro?

    – Nenhum caixão vazio tirou a vida do corpo de Job Kiles – respondeu Conrad. – Suas últimas palavras foram “a coisa no caixão”. Havia algo dentro dele… algo que, ao ser visto, extinguiu a vida de Job Kiles como uma vela apagada.

    – Mas onde está essa coisa? – perguntei com desconforto, um arrepio bem medonho me subindo e descendo pela espinha. – Ela não pode ter saído da tumba, sem a termos visto. Foi algo que pode ficar invisível à vontade? Estaria acocorada invisível na tumba conosco, aqui neste instante?

    – Esta conversa é loucura – Conrad falou bruscamente, mas olhando rápida e instintivamente sobre o ombro à direita e esquerda. Logo, ele acrescentou:

    – Você percebeu um leve odor repulsivo ao redor deste caixão?

    – Sim, mas não consigo defini-lo.

    – Nem eu. Não é exatamente um ranço de cripta. É uma espécie de cheiro terrestre de réptil. Ele me lembra vagamente os cheiros que senti debaixo da superfície da terra. Ele se adere ao caixão… como se alguma coisa profana do fundo da terra houvesse jazido ali.

    Ele correu a luz sobre as paredes novamente, e a deteve subitamente, focando-a na parede de trás, a qual estava fora da camada de rocha da colina na qual a tumba foi construída.

    – Veja!

    Na parede supostamente sólida, aparecia uma longa abertura fina. Com uma só passada, Conrad a alcançou, e juntos a examinamos. Empurramos cautelosamente a porção da parede mais próxima dela, e ela cedeu silenciosamente para dentro, abrindo-se numa escuridão tamanha como eu nunca sonhara existir deste lado da sepultura. Recuamos involuntariamente e ficamos tensos, como se na expectativa de algum horror noturno saltar sobre nós. Logo, a risada brusca de Conrad foi como um choque de água gelada sobre nervos tensos.

    – Pelo menos, o ocupante da tumba usa um meio não-sobrenatural de entrar e sair – ele disse. – Esta porta secreta foi evidentemente construída com extremo cuidado. Veja, é meramente um grande bloco vertical de pedra que gira sobre um pino. E o silêncio com o qual ele funciona mostra que o pino e os encaixes foram lubrificados recentemente.

    Ele dirigiu seu raio de luz para dentro do buraco atrás da porta, e este revelou um túnel estreito correndo paralelo à soleira da porta, claramente para dentro da rocha sólida da colina. As paredes e o chão eram lisos e polidos, e o teto curvo.

    Conrad recuou, voltando-se para mim:

    – O’Donnel, eu pareço sentir algo realmente obscuro e sinistro aqui, e tenho certeza de que isso possui uma influência humana. Sinto como se tivéssemos nos deparado com um rio negro e oculto, correndo sob nossos próprios pés. Para onde ele leva, não sei dizer, mas creio que o poder por trás de tudo isso seja Jonas Kiles. Acredito que o velho Job realmente viu seu irmão na janela esta noite.

    – Mas, a tumba vazia ou não, Jonas Kiles está morto.

    – Acho que não. Creio que ele estava num estado autoinduzido de catalepsia, tal como é praticado pelos faquires hindus. Já vi alguns casos, e juraria que eles estavam realmente mortos. Eles descobriram o segredo da animação suspensa voluntária, apesar dos cientistas e céticos. Jonas Kiles viveu vários anos na Índia e, de alguma forma, ele deve ter aprendido aquele segredo.

    “O caixão aberto, o túnel guiando do ponto da tumba à crença de que ele estava vivo quando foi colocado lá. Por alguma razão, ele queria que as pessoas acreditassem que havia morrido. Pode ser o capricho de uma mente perturbada. Pode ter um significado mais profundo e sombrio. À luz de sua aparição ao irmão e da morte de Job, acredito mais na segunda opção; mas, neste momento, minhas suspeitas são horríveis e fantásticas demais para expressar em palavras. Contudo, eu pretendo explorar este túnel. Jonas pode estar escondido em algum lugar dele. Está comigo? Lembre-se, aquele homem pode ser um maníaco homicida, ou se não, ele pode ser ainda mais perigoso que um louco”.

    – Estou com você – grunhi, apesar da minha pele se arrepiar diante da perspectiva de mergulhar naquela cova escura. – Mas, e quanto ao grito que ouvimos ao passarmos pelo Cabo? Não houve fingimento de agonia! E qual foi a coisa que Job viu no caixão?

    – Não sei. Pode ter sido Jonas, vestido com algum disfarce infernal. Devo admitir que há muito mistério unido a este assunto, mesmo que aceitemos a teoria de que Jonas está vivo e por trás de tudo isso. Mas vamos olhar dentro daquele túnel. Ajude-me a levantar Job. Não podemos deixá-lo aqui jazendo deste jeito. Nós o colocaremos no caixão.

    E assim, erguemos Job Kiles e o colocamos no caixão do irmão que ele odiava, onde ele jazeu com olhos vidrados mirando desde suas congeladas feições cinzas. Enquanto eu o olhava, o canto fúnebre do vento parecia ecoar suas palavras em meus ouvidos: “Lá! Sobre o túmulo”. E seu caminho o havia realmente levado para o túmulo.

    Conrad entrou primeiro pela porta secreta, à qual deixamos aberta. Enquanto adentrávamos aquele túnel negro, tive um momento de puro medo; e fiquei feliz que a pesada porta externa da tumba não possuísse fecho de mola, e que Conrad tivesse em seu bolso a única chave com a qual a tranca maciça pudesse ser fechada. Tive uma sensação desconfortável de que o demoníaco Jonas poderia trancar a porta, deixando-nos encerrados na tumba até o Juízo Final.

    O túnel parecia correr irregularmente cada vez mais para o leste… e se mover cautelosamente, reluzindo a luz diante de nós.

    – Este túnel nunca foi aberto por Jonas Kiles – sussurrou Conrad – Há um verdadeiro ar de antiguidade nele… Veja!

    Outra portada escura apareceu à nossa direita. Conrad dirigiu sua lanterna para dentro dela, mostrando outra passagem mais estreita. Outras portas se abriram dentro dela, em ambos os lados.

    – É uma rede regular – murmurei. – Corredores paralelos conectados por túneis menores. Quem imaginaria tal coisa sob as Colinas de Dagoth?

    – Como Jonas Kiles a descobriu? – perguntou-se Conrad – Veja; há outra portada à nossa direita… e outra… e mais outra! Você está certo… é uma verdadeira rede de túneis. Quem, em nome do céu, os cavou? Devem ser o trabalho de alguma raça pré-histórica desconhecida. Mas este corredor em particular foi usado recentemente. Vê como a poeira está agitada no chão? Todas as portas estão à direita, e nenhuma à esquerda. Este corredor segue a linha externa da colina, e deve haver uma saída em algum lugar ao longo dele. Veja!

    Estávamos passando pela abertura de um dos escuros túneis que se cruzavam, e Conrad havia lançado sua luz sobre a parede ao lado dele. Lá, nós vimos uma seta tosca, feita com giz vermelho e apontando para o túnel menor.

    – Isso não pode levar para a saída – murmurei. – Ele mergulha ainda mais fundo nas entranhas da colina.

    – Vamos segui-lo, de qualquer forma – respondeu Conrad. – Podemos achar facilmente o caminho de volta para este túnel externo.

    Então, nós o adentramos, cruzando outros corredores maiores, e, em cada um, encontrando a seta que ainda apontava o caminho por onde íamos. O fino raio de luz de Conrad parecia quase perdido naquela densa escuridão, e presságios inomináveis e medos instintivos me assombravam enquanto mergulhávamos cada vez mais fundo no coração daquela colina amaldiçoada. Súbito, o túnel terminou abruptamente numa escada estreita, que guiava para baixo e desaparecia na escuridão. Um estremecimento involuntário me sacudiu enquanto eu descia o olhar para aqueles degraus esculpidos. Quais pés profanos os haviam pisado em eras esquecidas? Logo, nós vimos algo mais – uma pequena câmara se abrindo para o túnel, bem no topo da escada. E, quando Conrad dirigiu sua luz para dentro dela, uma exclamação involuntária irrompeu de meus lábios. Não havia ocupante, mas ela estava cheia de evidências de ocupação recente. Entramos e ficamos seguindo o movimento do fino raio de luz.

    Que aquela câmara havia sido ocupada por humanos, isso não me espantava, dadas as nossas descobertas anteriores, mas ficamos horrorizados com a condição do conteúdo. Havia uma cama de acampamento ao lado dela, quebrada, os cobertores espalhados sobre o chão rochoso em tiras esfarrapadas. Livros e revistas estavam rasgados em pedaços e espalhados a esmo; latas de comida jaziam espalhadas sem cuidado, batidas e tortas, algumas delas arrebentadas e com seu conteúdo derramado. Havia uma lâmpada esmagada sobre o chão.

    – Um esconderijo para alguém – disse Conrad. – E aposto minha cabeça que é Jonas Kiles. Mas que caos! Veja estas latas, aparentemente abertas ao serem batidas contra o chão de pedra… e esses cobertores, rasgados em tiras, como um homem rasgaria um pedaço de papel. Bom Deus, O’Donnel, nenhum ser humano faria tamanha devastação!

    – Um louco faria – murmurei – O que é isso?

    Conrad havia parado e apanhado uma agenda. Ele a ergueu até a luz de sua lanterna.

    – Muito rasgada – ele grunhiu. – Mas temos sorte, de qualquer forma. É o diário de Jonas Kiles! Conheço sua caligrafia. Veja, esta última página está intacta e com a data de hoje! Uma prova positiva de que ele está vivo, na falta de outra prova.

    – Mas onde ele está? – sussurrei, olhando ao redor com medo. – E por que toda esta devastação?

    – A única coisa na qual posso pensar – disse Conrad – é que o homem era, pelo menos, parcialmente lúcido quando entrou nestas cavernas, mas, desde então, ficou insano. É melhor ficarmos alertas; se ele está louco, é totalmente possível que ele possa nos atacar no escuro.

    – Eu pensei nisso – grunhi com um estremecimento involuntário. – É um belo pensamento: um louco se escondendo nestes infernais túneis negros, para saltar sobre nossas costas. Prossiga; leia o diário, enquanto eu fico de olho na porta.

    – Vou ler este último registro – disse Conrad. – Talvez ele lance alguma luz sobre o tema.

    E, focando a luz sobre os rabiscos, ele leu:

    “Agora tudo está pronto para meu grande golpe. Esta noite, deixo para sempre este abrigo, nem ficarei triste, pois a eterna escuridão e silêncio estão começando a sacudir meus nervos de aço. Estou ficando imaginativo. Mesmo enquanto escrevo, pareço ouvir sons furtivos, como se de coisas rastejando de baixo, embora eu nunca tenha visto sequer um morcego ou uma cobra nestes túneis. Mas amanhã ocuparei a bela casa de meu amaldiçoado irmão. Enquanto ele – e é uma ótima zombaria eu me arrepender de não poder compartilhar isso com alguém – tomará meu lugar na fria escuridão – mais escura e fria que estes túneis escuros.

    “Devo escrever, se não posso falar disso, pois estou emocionado com a minha própria sagacidade. Que astúcia diabólica a minha! Com quão demoníaca velhacaria eu planejei e preparei! Não havia ninguém no caminho, antes da minha ‘morte’ – há, há, há, se os tolos soubessem! –, no qual trabalhei nas superstições de meu irmão – deixando cair alusões e místicas observações. Ele sempre me considerou uma ferramenta do Maligno. Antes da minha ‘enfermidade’ final, ele tremeu à beira de acreditar que eu havia me tornado sobrenatural ou infernal. Logo, em meu ‘leito de morte’, quando despejei toda a minha fúria sobre ele, seu espanto foi genuíno. Eu sabia que ele estava totalmente convencido de que sou um vampiro. Bem, eu realmente conheço meu irmão. Estou certo de que ele fugiu de sua casa e preparou uma estaca para enfiar em meu coração. Mas ele não tomará atitude alguma, até ter certeza de que suas suspeitas são verdadeiras.

    “Darei a ele esta certeza. Esta noite, aparecerei em sua janela. Aparecerei e sumirei. Não quero matá-lo de medo, porque assim meus planos de nada serviriam. Sei que, quando ele se recuperar de seu primeiro susto, virá até minha tumba para me matar com sua estaca. E, quando ele estiver em segurança na tumba, eu o matarei. Trocarei de roupa com ele – o colocarei em segurança na tumba, no caixão aberto – e voltarei furtivamente à sua bela casa. Nós nos parecemos bastante um com o outro, de modo que, com meu conhecimento e boa educação, posso imitá-lo perfeitamente. Além disso, quem suspeitaria? É bizarro demais – fantástico demais. Assumirei sua vida onde ele a deixou. As pessoas podem se surpreender com a mudança em Job Kiles, mas isso não irá além da surpresa. Viverei e morrerei no lugar de meu irmão e, quando a morte vier realmente a mim, que ela seja bastante adiada! Vou jazer em pompa, na cripta funerária do velho Kiles, com o nome de Job Kiles em minha lápide, enquanto o verdadeiro Job jaz, sem que ninguém imagine, na velha tumba da Colina do Pirata! Ah, é uma ótima, ótima zombaria!

    “Eu me pergunto como o velho Job Kiles descobriu estes caminhos subterrâneos. Ele não os construiu. Eles foram entalhados em cavernas obscuras e rocha sólida, pelas mãos de homens esquecidos – há quanto tempo, eu não ouso arriscar uma conjectura. Enquanto estou aqui, aguardando a hora de estar pronto para agir, eu me entretive explorando-os. Percebi que são bem mais amplos do que eu havia suspeitado. As colinas devem estar conectadas com eles, e eles afundam na terra até uma profundeza incrível, pavimento sob pavimento, como os andares de um prédio, cada pavimento conectado com o inferior por uma única escada. O velho Jacob Kiles deve ter usado estes túneis – pelo menos, os do pavimento superior – para o depósito do saque e contrabando. Ele construiu a tumba para ocultar suas verdadeiras atividades e, é claro, abriu a entrada secreta e pôs a porta no eixo. Ele deve ter descoberto as tocas através da entrada oculta do Cabo do Contrabandista. A velha porta que ele construíra aqui era uma mera massa de lascas apodrecidas e metal enferrujado, quando a encontrei. Como ninguém a descobriu depois dele, é provável que ninguém encontre a nova porta que construí com minhas próprias mãos, para substituir a antiga. Mesmo assim, tomarei as devidas precauções no tempo certo.

    “Eu tenho me perguntado bastante sobre a identidade da raça que deve um dia ter habitado estes labirintos. Não encontrei ossos nem crânios, embora eu tenha descoberto, no pavimento superior, instrumentos curiosamente endurecidos de cobre. Nos poucos andares seguintes, achei utensílios de pedra, até o décimo andar, onde eles desapareceram. E, também no andar superior, encontrei porções de paredes decoradas com pinturas grandemente desbotadas, mas evidenciando habilidade indubitável. Estas gravuras pintadas, eu encontrei em todos os pavimentos, inclusive no quinto, embora as decorações de cada andar fossem mais toscas que as do andar superior, até as últimas pinturas serem meras manchas sem significado, como as que um macaco faria com um pincel. Além disso, os instrumentos de pedra eram muito mais toscos nos níveis inferiores, assim como o feitio dos tetos, escadas, portadas, etc. Tem-se uma fantástica impressão de uma raça aprisionada, cavando cada vez mais fundo dentro da terra negra, século após século, e perdendo cada vez mais de seus atributos humanos, à medida que afundava a cada novo nível.

    “O décimo-quinto andar não tem rima nem razão; os túneis correm sem rumo e sem plano aparente – assumindo um contraste com o pavimento mais alto, o qual é um triunfo da arquitetura primitiva, de modo que é difícil acreditar que tenham sido construídas pela mesma raça. Muitos séculos devem ter se passado entre a construção das duas camadas, e os construtores devem ter se degradado muito. Mas a décima-quinta camada não é o fim destas tocas misteriosas.

    “A abertura da portada na única escada da camada mais alta foi bloqueada por pedras, que haviam caído do teto – provavelmente há centenas de anos, antes do velho Capitão Jacob descobrir aqueles túneis. Levado pela curiosidade, tirei os escombros, apesar daquilo exigir demais de minha força, e abri um buraco na pilha hoje mesmo, embora eu não tivesse tempo de explorar o que havia embaixo. Eu, de fato, duvido que pudesse fazê-lo, pois minha luz me mostrou, não a sucessão usual de degraus de pedra, mas um poço íngreme e liso, levando à negrura lá embaixo. Um macaco ou uma serpente pode subir e descer por ele, mas não um ser humano. Para quais fossos ele guia, eu não me importo em sequer tentar imaginar. Por alguma razão, a descoberta de que a décima-quinta camada não era a do poço não-pisado me deu uma estranha sensação arrepiante, e me levou a fantásticas conjecturas sobre o destino final da raça que outrora viveu nestas colinas. Supus que os escavadores, afundando cada vez mais na escala da vida, haviam se extinguido nas camadas mais baixas, embora eu não tenha achado nenhum resto para justificar minhas teorias. As camadas mais baixas não ficam em rocha quase sólida, como as que estão mais próximas da superfície. Elas estão em terra negra e numa espécie de pedra bem mole, e foram aparentemente cavadas com os utensílios mais primitivos; em alguns lugares, elas até parecem ter sido cavadas com dedos e unhas. Poderiam ser tocas de animais, exceto pela tentativa evidente de imitar os sistemas mais bem-organizados acima. Mas, sob a décima-quinta camada, como pude ver, mesmo através de minhas investigações superficiais desde acima, toda imitação para; as escavações sob a décima-quinta camada são buracos loucos e brutos; e, para quais profundezas eles descem, não tenho desejo de saber.

    “Sou perseguido por fantásticas especulações no tocante à identidade da raça, que literalmente afundou na terra e desapareceu em suas profundezas negras há tanto tempo. Uma lenda insistia, entre índios destes arredores, que, muitos séculos antes da chegada dos homens brancos, seus ancestrais expulsaram uma estranha raça estrangeira para dentro das cavernas das Colinas de Dagoth, e a trancou ali para que morresse. Que não morreram, mas sobreviveram de alguma forma por, pelo menos, muitos séculos, é evidente. Quem eram, de onde vieram e qual foi seu destino final, nunca se saberá. Antropólogos podem catar alguma evidência das pinturas na camada mais alta, mas não pretendo que ninguém venha saber sobre essas tocas. Alguns destes desenhos obscuros retratam inconfundivelmente índios em guerra com homens evidentemente da mesma raça que os artistas. Estes modelos, eu me aventuraria a dizer, lembram mais o tipo caucasiano que o indígena.

    “Mas está chegando a hora de minha visita ao meu amado irmão. Irei pela porta no Cabo do Contrabandista, e retornarei pelo mesmo caminho. Alcançarei a tumba antes do meu irmão, por mais rápido que ele venha – e eu sei que ele virá. Então, quando o ato estiver feito, sairei da tumba, e nenhum homem colocará novamente o pé nestes corredores. Pois me certificarei de que a tumba não será aberta, e uma conveniente explosão de dinamite derrubará rochas suficientes dos penhascos acima, para selar de forma eficaz a porta no Cabo do Contrabandista para sempre”.

    Conrad pôs a agenda dentro do bolso.

    – Louco ou são – ele disse sombriamente –, Jonas Kiles é um verdadeiro demônio. Não estou muito surpreso, mas estou levemente chocado. Que plano infernal! Mas ele errou em uma coisa: ele aparentemente supunha que Job viria sozinho para o túmulo. A prova de que ele não calculou o bastante.

    – Basicamente – respondi. – Mas, no que diz respeito a Job, Jonas teve sucesso em seu plano diabólico: ele conseguiu matar o irmão, de alguma forma. Evidentemente, ele estava na tumba quando Job entrou. Ele, de alguma forma, o aterrorizou até a morte, e então, evidentemente percebendo nossa presença, escapuliu pela porta secreta.

    Conrad sacudiu a cabeça. Um nervosismo crescente ficava evidente em suas maneiras, à medida que ele continuava a leitura do diário. De vez em quando, ele parava e erguia a cabeça em atitude de escuta.

    – O’Donnel, não acredito que foi Jonas a quem Job viu no caixão… mudei um tanto de opinião. Uma perversa mente humana estava inicialmente por trás de tudo isto, mas alguns aspectos deste assunto, eu não posso atribuir à humanidade.

    “Aquele grito que ouvimos no Cabo, a condição desta sala, a ausência de Jonas, tudo indica algo ainda mais obscuro e sinistro que o plano de assassinato feito por Jonas Kiles”.

    – O que você quer dizer? – perguntei inquieto.

    – Suponha que a raça que cavou estes túneis não morreu! – ele sussurrou. – Suponha que seus descendentes ainda vivam, em algum estado de existência anormal, nos fossos negros sob os andares dos corredores! Jonas menciona, em seus apontamentos, que ele pensou ter ouvido sons furtivos, como o de coisas rastejando desde abaixo!

    – Mas ele morou nestes túneis durante uma semana. – adverti.

    – Você esquece que o poço que leva aos fossos foi obstruído até hoje, quando ele removeu as rochas. O’Donnel, eu creio que os fossos mais baixos são habitados, que as criaturas acharam seu caminho até estes corredores, e que foi a visão de uma delas, dormindo no caixão, que matou Job Kiles!

    – Mas isto é completa loucura! – exclamei.

    – Mas estes túneis já foram habitados em tempos passados e, de acordo com o que lemos, os habitantes devem ter decaído a um nível incrivelmente baixo de vida. Que prova temos de que seus descendentes não continuaram vivendo nos horríveis buracos negros que Jonas viu sob o compartimento mais baixo? Ouça!

    Ele apagou a lanterna e ficamos na escuridão por alguns minutos. De algum lugar, ouvi um fraco e deslizante barulho rastejante. Deslizamos furtivamente para dentro do túnel.

    – É Jonas Kiles! – eu sussurrei, mas uma sensação gelada subiu e desceu por minha espinha.

    – Então, ele estava se escondendo lá embaixo – murmurou Conrad. – Os sons vêm da escada… como se algo rastejasse de baixo. Não ouso acender a lanterna… se ele estiver armado, pode sacar sua arma.

    Eu me perguntava por que Conrad, que tinha nervos de ferro na presença de inimigos humanos, estaria tremendo como uma folha. Eu me perguntava por que pingos gelados de horror sem nome estariam percorrendo minha espinha. E logo eu estava eletrizado. De algum lugar de trás do túnel, na direção pela qual havíamos chegado, ouvi outro som suave e repelente.

    E, naquele instante, os dedos de Conrad afundaram como aço em meu braço. Na escuridão tenebrosa sob nós, duas faíscas amarelas e oblíquas cintilaram subitamente.

    – Meu Deus! – veio o sussurro chocado de Conrad. – Não é Jonas Kiles!

    Enquanto falávamos, outro par se juntou ao primeiro – subitamente, a escuridão bem abaixo de nós estava viva com flutuantes brilhos amarelos, como estrelas malignas refletidas num golfo anoitecido. Eles fluíam escada acima em nossa direção, silenciosos exceto por aquele detestável som deslizante. Um nojento cheiro terroso fluía até nossas narinas.

    – Para trás, em nome de Deus! – ofegou Conrad, e começamos a recuar da escada, em direção ao túnel pelo qual tínhamos chegado. Então, veio subitamente a investida de algum corpo pesado através do ar, e, girando, atirei cega e a queima-roupa na escuridão. E meu grito, quando o tiro iluminou momentaneamente as sombras, foi ecoado por Conrad. No instante seguinte, corríamos pelo túnel como homens correndo do inferno, enquanto, atrás de nós, algo caía pesadamente, se debatia e espojava no chão, em suas convulsões de morte.

    – Acenda sua lanterna – ofeguei. – Não podemos nos perder nestes labirintos infernais.

    O raio de luz apunhalou a escuridão à nossa frente, e nos mostrou o corredor externo, onde havíamos visto pela primeira vez a seta. Lá, nós paramos por um instante, e Conrad dirigiu sua luz de volta ao túnel. Só vimos a escuridão vazia, mas, além daquele curto raio de luz, só Deus sabe que horrores rastejavam pela escuridão.

    – Meu Deus! Meu Deus! – Conrad ofegou. – Você viu? Você viu?

    – Não sei! – ofeguei. – Vislumbrei algo semelhante a uma sombra voadora, no clarão do tiro. Não era um homem… tinha a cabeça semelhante à de um cão…

    – Eu não estava olhando naquela direção – ele sussurrou. – Eu olhava escada abaixo, quando o clarão de sua arma cortou a escuridão.

    – O que você viu? – minha pele estava úmida de suor frio.

    – Palavras humanas não são capazes de descrever! – ele gritou. – A terra negra ganhou vida, como se houvesse vermes gigantes. A escuridão se aglomerando com vida blasfema. Em nome de Deus, vamos sair daqui… por este corredor, até o túmulo!

    Mas, quando demos um passo adiante, fomos paralisados por sons furtivos à nossa frente.

    – Os corredores estão inçados deles! – sussurrou Conrad. – Rápido! Pelo outro caminho! Este corredor segue a linha da colina e deve levar até a porta no Cabo do Contrabandista.

    Até o dia da minha morte, eu me lembrarei daquela fuga através daquele negro corredor silencioso, com o horror que se movia furtivamente aos nossos calcanhares. Por um momento, achei que algum espectro com presas de demônio pularia sobre nossas costas, ou sairia da escuridão à nossa frente. Então, Conrad, dirigindo sua luz turva para a frente, deu um soluço ofegante de alívio.

    – A porta, finalmente. Meu Deus, o que é isto?

    Quando sua lanterna brilhara sobre uma pesada porta com tranca de ferro, com uma chave pesada na fechadura maciça, ele havia tropeçado sobre algo que jazia caído ao chão. Sua luz mostrava uma contorcida forma humana, sua destruída cabeça jazendo numa poça de sangue. O rosto estava irreconhecível, mas conhecíamos a forma magra, ainda vestida em roupas de túmulo. A verdadeira Morte havia finalmente alcançado Jonas Kiles.

    – O grito quando passamos pelo Cabo esta noite! – sussurrou Conrad – Era seu guincho de morte! Ele havia retornado aos túneis, após se mostrar para seu irmão… e o horror caiu sobre ele na escuridão!

    Súbito, enquanto nos erguíamos sobre o corpo, ouvimos novamente aquele maldito e deslizante ruído rastejante na escuridão. Enlouquecidos, saltamos até a porta; giramos violentamente a chave e abrimos bruscamente a porta. Com um soluço de alívio, cambaleamos até a noite enluarada. Por um instante, a porta se abriu atrás de nós; logo, quando nos viramos para olhar, uma rajada feroz de vento a fechou.

    Mas, antes que ela se fechasse, uma figura medonha saltou em nossa direção, meio iluminada pelos esparsos raios de lua: o esparramado corpo mutilado e, sobre ele, uma cinza monstruosidade bamboleante – um horror de olhos flamejantes e cabeça de cão, tal como loucos veem em negros pesadelos. Logo, a porta que se fechara sumiu de vista, e fugimos através da inclinação sob o luar móvel. Ouvi Conrad balbuciar:

    – Crias dos fossos negros de loucura e noite eterna! Obscenidades rastejantes fervilhando no lodo das profundezas inimagináveis da terra… o horror supremo do retrocesso… o ponto mais baixo da degeneração humana… bom Deus, seus ancestrais eram homens! Os fossos sob a décima-quinta camada, para dentro de quais infernos de blasfemo horror negro eles afundam, e por quais hordas demoníacas são povoados? Deus proteja os filhos dos homens daqueles… Aqueles que moram sob as tumbas!




  • A VIRGEM DE CERA

    A VIRGEM DE CERA

    (Narrativa Irlandesa)
    Abraham Valdelomar (1888 – 1919)
    Tradução de Paulo Soriano

    Para o Dr. Castro Rojas


    I

    — O rei…

    — Sempre contos de realeza!…

    — Os reis são esplêndidos e generosos. Em suas cabeças triunfa o ouro cinzelado e em seus tronos riem as pedras da África. E tornam as nossas narrativas magníficas. Têm joias, mulheres e cavalos. Favoritas do Cairo e leitos de mármore rosa. Eles compram cantos dos trovadores sentimentais e as graves máximas dos filósofos; a honorabilidade dos gentis-homens, a discrição das damas e a fina condescendência dos cavaleiros.

    Falemos dos reis! Eles tornam esplêndidas nossas narrativas e enchem de pompa nossos pensamentos. O ouro dos reis!

    O palácio de campo da senhorita Indrash estava envolto por uma atmosfera de superstição. Não havia na aldeia quem tivesse atravessado as grades de seus jardins ou o mistério de seus aposentos. Uns diziam que viram a dama sair, à noite, rodeada por enormes vampiros que a mantinham escrava e se alimentavam de seu sangue. Outros diziam que ela roubava as crianças das aldeias para beber-lhes o sangue fresco. Outros mais diziam vê-la fugir, à noite, aos bosques das comarcas vizinhas.

    Certa feita, propagou-se na aldeia a notícia de que um peregrino, que havia chegado às grades do castelo, vira Indrah chorando atrás de umas sebes. Mais tarde chegou a dizer-se que a enigmática senhorita havia saído à noite, em procissão, pelas ruas da aldeia. O medo apavorou os singelos aldeões e, como ninguém mais voltou a sair de noite, as procissões se multiplicaram.

    Então começaram as súplicas e as orações públicas. Ofereceram sacrifícios de flores nos templos e queimaram cabelos de crianças nas chaminés. Por fim, guardaram as aves brancas nos sarcófagos e pensaram em oferecer em holocausto a mais jovem virgem. Apesar disto, um jovem camponês, ao voltar à noite da gelosia de sua amada, teve que ocultar-se apressado. A procissão estava passando…

    — Indrah ia nela?

    — Ia em meio a um grupo de encurvados, com aspecto de vampiros negros, dos quais só se viam os olhos. No centro, quase morrediça e apoiada nos braços de um deles, ia a virgem pálida de cera. Indrah tinha uma transparência opalina e nenhuma cor profanava a brancura da jovem. Os acompanhantes, com amplas capas escuras, ruminavam surdamente sonatas incompreensíveis.

    No dia seguinte, encontraram o camponês desorientado, vítima de uma crispação horrível. Morreu descrevendo entrecortadamente a procissão de Indrah. Então, na aldeia, ao medo sucedeu o espanto. Os homens começaram a preocupar-se; os velhos caminhavam taciturnos e encurvados, como se pensassem em algo sombrio; as mulheres não assomaram nos jardins secos e mortos; os rapazes já não iam ao campo; e as crianças, tristes e pálidas, dormiam nos cantos úmidos de seus casebres.

    A cada dia aparecia um cadáver crispado e aquele lugar tomou o aspecto de cidade morta. Os velhos calavam sempre, os jovens não se amavam, as crianças não riam e as mulheres eram vítimas de alucinações. Aquela raça começou a extinguir-se.

    II

    — Quem era Indrah?…

    — Ninguém sabia. Um aventureiro louco, um assassino original, um decepcionado ou um ser extraordinário vivia nos rochedos de um país do Norte, que dá para o mar, e onde não sai o sol. Era o rei Míndor.

    Para chegar à sua atalaia, era preciso cruzar os pampas, onde o vento zumbia sempre; um vento gelado que arrancava as roupas e rachava os lábios. Em doze jornadas se chegava ao castelo de Míndor. O rei tinha vassalos que traziam os viajantes perdidos, os quais, pela generosidade de Míndor, dormiam no castelo, depois de serem convidados a ceias extraordinárias, em que os viajantes ficavam loucos de prazer, por razões que alguns creem e atribuem a bebidas excitantes. Neste estado de felicidade suprema, os viajantes eram trasladados para o jardim do castelo, onde havia um poço circular com beirada de ônix. O poço tinha uma escadaria de mármore como a entrada de um palácio subterrâneo que, ao girar, lançava em suas profundezas aquele que pisava a famosa escadaria.

    Para lá eram levados os viajantes, ébrios de uma suprema felicidade, os quais, ao cair no poço, mesclavam-se aos cadáveres dos desgraçados que lhes haviam precedido nas ceias do castelo. Muitos homens ainda viviam, loucos, nesse poço, que era uma boca do inferno. Uma vez a cada vinte dias, ao pôr-se o Sol, abriam-se as portas enormes desse poço profundíssimo e sinistro. O rei, apoiado ao parapeito do poço, com sua taça de ouro, olhava, dominado por um prazer febril, quando as comportas se abriam e precipitavam-se as águas, pujantes e enormes, que tragavam num redemoinho os escombros humanos.

    Logo, o elemento selvagem enchia todo o poço e, então, fechavam-se as comportas e deixava-se sair a água novamente.

    — Mas… E quanto a Indrah?

    — Era a filha do rei. Certa tarde, os vassalos cavaleiros desenhavam suas silhuetas nos pampas frios e escuros da comarca. Pouco a pouco, as formas foram se tornando nítidas e já aos pés do castelo viram chegar um novo peregrino, um jovem louro, de cor ardente, com a tez seca e os lábios rachados. Indrah teve por ele um sentimento que jamais experimentara por qualquer dos viajantes que chegavam ao palácio para morrer no poço. Só os via durante os banquetes e as ceias que Míndor oferecia às suas vítimas. Desta vez, Indrah estava apaixonada.

    — Ela assistiu ao banquete?…

    — Sim. Com olhos de tristeza, ao ver os obséquios dispensados ao jovem, sofria horrivelmente. Ao terminar a ceia, quando Nildo — assim se chamava o mancebo — embriagara-se pelo efeito os vinhos dourados e tintos, os pajens levaram-no, numa cadeira, ao pequeno jardim do poço. Indrah, que havia visto tudo, seguiu o seu pai.

    — Ainda não, pai!

    Míndor não respondeu. Os pajens seguiram seu caminho entre as sebes e instalaram Nildo, que não se dava conta de nada, no anel do poço. O rei lhe dizia:

    — Mas te falta ver, mancebo louro, meus palácios encantados. Irás penetrar no maior e poderoso reino. Lá os jardins são eternos. Suaves e excitantes são os aromas das mulheres belas e pródigas. O Sol da manhã nunca se põe e os que foram aos meus reinos jamais regressaram. Gostarias de vê-lo?

    — Sim, magnífico!

    — Pai! — gritou Indran, num arranque gutural e selvagem. — Pai, este não!

    Nildo, sem nada perceber, sorria, pensando em deleites ainda melhores. Os lacaios fizeram-no entrar no poço por umas das escadarias de mármore que cobriam o horrível segredo. Nildo avançou tranquilamente.

    — Pai!…

    A escada girou. A pancada do homem sobre a água produziu um estalido que soou lugubremente no profundíssimo poço. O rei deitou o ouvido, enquanto Indrah, enlouquecida, se perdia através das sebes do jardim. O rei olhava, apoiado ao parapeito, com uma satisfação imensa. Via, em meio à escuridão do poço, como os homens famintos mordiam os dedos de Nildo e outros, loucos, riam da fúnebre aventura, em meio à lama daquele ninho infernal.

    — Abri as comportas! — gritou Míndor.

    E as águas enormes e selvagem se precipitaram, afogando, em seus redemoinhos, os gritos de dor, de loucura e os espasmos terríveis. O poço estava cheio.

    — Fechai!… Fechai mais depressa!…

    A água começou a chegar às bordas do anel do poço, em vez de retirar-se. O rei gritou mais forte ainda:

    — Fechai, vassalos, fechai mais depressa!…

    Na área das comportas ninguém respondia. O poço começou a transbordar louca e desordenadamente. Parecia que todo o mar se precipitava furioso por esse vórtice gigantesco. No fundo, houve um ranger de correntes e rasgaduras formidáveis; tremeu a terra em que pisava o monarca e tudo se perdeu no avassalador impulso das ondas. Uma monstruosa invasão do mar lançou-se sobre o palácio, inundou os jardins reais vertiginosamente e, em poucos instantes, aquilo era domínio do mar, que, depois de profanar as galerias do rei e salões de ouro, invadiu a região e lá permaneceu… permaneceu por muitos dias.

    — E indrah?

    Quando viu Nildo cair, louca e desesperadamente pegou as chaves das comportas, matou o velho guardião e abriu para sempre as goelas do selvagem elemento. Quando o seu pai exclamou “ Fechai, vassalos, fechai depressa as comportas!”, Indrah lançou as enormes chaves ao fundo do mar e fugiu em seguida…

    Ninguém sabe quando ela veio morar no palácio de campo daquele país, onde dizem os aldeões que sai nas noites procurando Nildo.

    — Mas, e os encurvados?….

    — Peregrinos jovens que ela havia salvado e que não mais a abandonaram. Nas noites de seu passeio, levavam-na com grande solicitude e, depois de passear pela cidade, voltavam à ao palácio antes do nascer do Sol.

    III

    Mas na aldeia morriam as pessoas, vítimas de espasmos horríveis. Certo dia, os habitantes se reuniram e combinaram surpreender o palácio de Indrah. Chamaram os campônios das regiões vizinhas e todos, à hora do crepúsculo, lançaram-se ao palácio armados de pedra, picaretas e enxadas.

    Atropelaram velhos guardas e penetraram no grande salão escuro onde acreditavam que iriam encontrar Idrah e os vampiros. Os antigos servidores de Indrah fugiram e, ao fazê-lo, deixaram cair o corpo da virgem, sobre o qual avançaram os aldeões.

    — Era o cadáver de Indrah?

    — Não. Era uma representação em cera que se fazia passar por ela. Indrah havia morrido com certeza e aqueles homens, em sua honra, fizeram-na viver naquele bloco modelado que, como se fosse a própria Indrah, levavam a passeio todas as noites na aldeia.

    — Quando fizeram o manequim?

    — Ninguém sabe ainda, mas quando se viaja aos países do Norte, frios, secos e cheios de atalaias, os velhos contam esta lenda da virgem de cera e o rei Mindor.

    Causa-nos muita melancolia viajar pelos países do Norte. Eles têm lendas muito tristes — a Europa não sabe disto — e, nos rochedos abruptos e abandonados, vivem ainda aqueles reis.

    Estás triste. Nem sempre são belos os contos de realeza.





  • AS VAMPIRAS


    AS VAMPIRAS

    Clemente Palma
    (1872 – 1946)

    Parte I

    Houve um tempo em que fiquei extremamente magro. Meus braços e pernas tornaram-se desconsoladamente finos, e meu o peito, antes musculoso e forte, degenerou de tal forma que, sob a pele lívida e pegajosa, a estrutura óssea de meu tórax se desenhava claramente. Minha pobre mãe me dizia, desconsolada:

    — Stanislas, meu filho, que mal misterioso é esse que te consome? Teu emagrecimento não é natural e requer um exame médico. Que dor te incomoda? O que sentes de anormal? Conta-me tudo. Que o receio de me causares sacrifícios não te detenha. Irás a Nice, ao Adriático, à Suíça, aonde for necessário, para recobrar a saúde e as forças perdidas. Temo, meu filho, que a tuberculose haja se apoderado de teus pulmões… No entanto, não te ouço tossir. É verdade que não tosses, luz de minh’alma?

    Minha noiva, a pequena e esbelta Natalia, beijava minhas mãos desconsoladamente.

    — Os teus lábios ardem, meu Stanislas, como se o Etna estivesse nas tuas entranhas e aquecesse a tua boca e o teu hálito. Por que essa febre que te mata, esse fogo que te consome a vida e evapora o teu sangue? Eu te daria o meu para regozijar os meus olhos com as cores que as tuas faces, cheias de frescor e encanto, ostentavam antes… É alguma preocupação que destrói o teu ser? Mas não… Tu conservas o teu espírito alegre e apaixonado. E ele, muito ingrato, se impacienta e zomba do testemunho dos nossos olhos amorosos! Estás doente, Stanislas. Estás gravemente doente e logo repousarás no sepulcro. A tua mãe morrerá de tristeza e eu de desespero…

    E a pobre donzela se ajoelhava diante de mim e molhava minhas mãos com suas lágrimas. Eu a erguia brincando e fazendo pouco caso de seus terrores. Mas as duas mulheres insistiram tanto que, por fim, fiquei alarmado.

    Na verdade, eu me via um pouco magro e nada mais. A jovialidade de meu caráter não havia desaparecido. Eu me sentia extenuando: um pouco fadigado e enfraquecido pela manhã, mas logo me recuperava, sentia-me novamente forte e ágil, tanto que imaginava que, de uma altura formidável, poderia alcançar o céu, pegar o Sol, trazê-lo comigo, e com ele fazer um diadema que colocaria na fronte da minha pequena e esbelta Natalia.

    — Mas se nada tenho, se não me acode nenhum sofrimento físico ou moral — disse às duas mulheres, quando, com voz lacrimosa, comentavam minha suposta enfermidade —, não vedes que a minha vida continua como sempre foi? Até mesmo alimento-me com melhor apetite e durmo mais profundamente. Não sinto dor alguma, e só podeis basear vossos temores na circunstância de eu estar agora mais pálido e magro… Bem, e daí? Há momentos em que homens e mulheres ficam um tanto abatidos. Tal pode ser porque, por circunstâncias desconhecidas, ocorra uma maior desassimilação orgânica. Então, deixai o meu corpo trabalhar. E, acima de tudo, ponde-me a salvo de vossos presságios e desconsolos que vão, realmente, me deixar doente…

    Mas elas tanto fizeram, repito, que um dia, para comprazê-las, fui à cidade, onde estava o Dr. Max Bing, meu sábio e ainda jovem amigo.

    — Fico infinitamente feliz em rever-te! — ele exclamou ao me ver entrar em seu consultório. E, depois, pondo os óculos e fixando seu olhar inquisidor em minha pessoa, fez um gesto incrível. — Homem! Que doença fez em ti tantos estragos? Estás com uma péssima aparência. Vejamos. Senta-te e me diz o que te traz. Vens como cliente ou como amigo?

    — Em primeiro lugar, não estive doente, doutor. E creio que, pelo contrário, gozo de excelente saúde. Mas, apesar de estar saudável, venho ao senhor para que me diga o que é que eu tenho, embora eu esteja são.

    — Bem, o teu aspecto é o de uma pessoa que esteve ou está gravemente doente. Entra em meu gabinete.

    O médico examinou-me de diferentes maneiras e com diferentes aparelhos. Apalpou-me, colocou-me em várias posturas, auscultou-me e fez o que a sua ciência lhe indicava para descobrir o que me acontecia. Eu percebia que, a cada exame, o seu alarme crescia. Finalmente, com uma voz ligeiramente alterada, disse ele:

    —Estás muito enganado, caro Stanislas, por pensares que estás saudável. És presa de uma consunção violenta que poderá ser fatal se não a atacarmos com rapidez e energia. O teu caso não é, certamente, o primeiro a chegar ao meu conhecimento, e todos os sintomas que observo fazem-me presumir que tu tens a enfermidade que matou Hansen, um belo e robusto jovem que morreu há dois meses. Sentes alguma dor insidiosa e contínua? Tens observado alguma anomalia funcional em teus órgãos? Sentes tonturas pela manhã, peso na cabeça, sono profundo ou entressonhos mortificantes?

    O Dr. Bing falava num tom que se pretendia tranquilizador, mas notei que nele havia uma inquietação mal dissimulada. Ele me amava ternamente. As nossas famílias cultivavam uma leal amizade, e ele era um estudante de medicina quando eu ainda era criança, e mais de uma vez me teve em seus joelhos. O alarme do médico me causou um frio de morte nas veias: tive medo de morrer e pensei na minha mãe e na minha pequena Natalia. Tentei acalmar-me e disse ao médico o que já tinha dito tantas vezes: que sentia um ligeiro desvanecimento ao acordar, um esmorecimento que passava assim que bebia um grande copo de leite fervido no café da manhã. Depois, sentia-me ágil, todo o mal-estar desaparecia, comia com apetite e dormia profundamente. Quanto aos entressonhos, não me lembrava precisamente se os tinha, mas ficava-me alguma sombra de reminiscência de havê-los tido.

    — São precisamente os sintomas que Hansen sentia — disse o médico, pensativo.

    Em seguida, fez-me tirar a camisa e a camiseta e, com uma lente poderosa, examinou-me o pescoço e o peito.

    — Exatamente igual a Hansen! — repetiu várias vezes, à medida que prosseguia em seu exame.

    — Doutor! — exclamei, impaciente. —Não quero saber desse Sr. Hansen e pouco me importaria se ele ressuscitasse cem vezes e morresse outras tantas. Qualquer que tenha sido a doença que matou esse Hansen — tuberculose, hidrofobia, câncer ou meningite —, ele não foi o primeiro e não será o último.

    — Ei, ei, jovem irascível! Se me lembro do pobre Hansen é porque ele tinha a mais estranha das enfermidades. A mais inverossímil das causas— mas, também, a mais terrível — foi a que o levou à sepultura. E, certamente, amiguinho, terás o mesmo fim de Hansen se eu não me empenhar em tua defesa. Há apenas dois caminhos: ou te entregas incondicionalmente a mim ou te entregas à própria sorte.

    — Tens razão, meu amigo. Eu não quero morrer e me entrego aos teus cuidados. Desculpa-me o desatino. Continua o teu exame e salva-me.

    O médico continuou atentamente as suas observações, e nelas ficou tão absorvido que falava em voz baixa, como se conversasse consigo mesmo, à medida que encontrava, sob as suas lentes, indícios que chamavam a sua atenção:

    —Sim, aqui estão os resquícios bastante esmaecidos de mordedura e sucção. Os poros se dilataram até um raio três vezes maior do que o normal. Oh, percebo, claramente, a profundidade desta ruptura vascular! A carótida está seriamente comprometida pela equimose causada por uma ventosa formidável. Que terrível e inútil desperdício de vida… Certamente, há outras perdas nervosas, migrações forçadas de fluxos de energia, aproveitados ou transformados em misteriosas regiões… Ah, malditas! Ah, insaciáveis! Felizmente, existe ainda uma grande reserva de força para a luta. Não é um caso perdido. Que grande força é a da personalidade!

    Depois, voltando-se para mim, ordenou-me que me vestisse.

    — Meu amigo, se tivesses adiado a tua visita por uma quinzena ou um mês, eu te garanto que tudo teria sido inútil, e que terias empreendido a grande viagem sem a sentir e sem dares conta disso. Estarias agonizando, verias a tua mãe em desespero, verias o pastor prestando-te os últimos auxílios, e acreditarias que tudo seria uma brincadeira de mal gosto, um pesadelo, uma loucura de teus sentidos. És um homem e posso dizer-te: és vítima de sortilégios misteriosos. Morres durante o sono e os teus inimigos atacam-no enquanto dormes. Ainda existem, neste século de luzes e de incredulidade, forças misteriosas, poderes ocultos, sobrevivência da energia, malignidades ativas de vontades secretas, radiações psíquicas desconhecidas, forças não estudadas, espíritos — como se diz vulgarmente —, espíritos de mortos ou de vivos que operam, ferem, e até matam sorrateiramente. O raio de ação destas forças estranhas — a sua lei — ainda não ingressou no domínio da ciência oficial. São por ela negadas porque não são coisas verificáveis pelas leis científicas, pois não podem ser estudadas sob a lente do microscópio. E, no entanto, são coisas que existem, fenômenos que se realizam e que trazem consequências reais. Talvez tudo seja natural e racionalmente explicável dentro das leis biológicas e psíquicas conhecidas, e dentro das hipóteses aceitas, mas o que é certo é que ainda não restaram estabelecidos o mecanismo e a lei daquilo que, devido à sua aparência extranatural e maravilhosa, melhor corresponde à mitologia popular. Tu deves ter ouvido, entre os aldeões, mil histórias e lendas sobre súcubos e vampiros, e certamente riu-se delas. Bem, esses disparates, essas lendas de comadres, essas histórias de velhotes para assustar criancinhas são as que vieram a entrelaçar-se à vida de Hansen e o mataram; são as que, também, intervieram na tua vida e que te levariam a uma morte certa se eu não estivesse determinado a libertar-te delas com todo o esforço do meu carinho e dos meus estudos… Ainda amas Natalia? Sim, posso vê-lo nos teus olhos. Casa-te com ela o mais depressa possível. Acredita que isto contribuirá notavelmente para a nossa vitória. Não te assombres e nem me olhes com este ar de incredulidade. Eu sei o que digo. As mulheres idosas dizem que não há nada melhor do que o choro de uma criança para afugentar fantasmas e aparições. Tenho para mim que para afastar vampiras e súcubos não há nada melhor que um pimpolho de seis meses com o sangue de nossas veias.

    Apesar da maneira meio brincalhona com que o médico me falava, senti que um frio de terror regelava os meus ossos e que uma palidez mortal aflorava em minha face.

    —Ei, homem, não te alarmes! Eu me comprometo a arrancar de teu corpo essa obscura e sinistra consumição de vida. Por ora, tu comes comigo e dormes aqui. Escreve para a tua mãe e o meu empregado levará a tua carta. Visita a minha biblioteca, se quiseres, ou faz um passeio, se for de teu agrado. Ainda tenho que dedicar uma hora e meia aos meus clientes. Depois de escrever, toca a campainha e manda o meu empregado ir a cavalo à casa de tua mãe.

    Enquanto o doutor atendia seus pacientes, procurei distrair-me de minhas dolorosas preocupações folheando os livros de sua biblioteca e vendo os seus estranhos e curiosos aparelhos. Mandei a carta à minha mãe e, quando já estava começando a entediar-me, o doutor entrou.

    Conversamos um pouco e fomos para a sala de jantar em que, apesar da ameaça de morte que pairava sobre minha cabeça, ataquei a comida com verdadeiro apetite. O médico riu muito disso.

    — Essa fome que sentes é a desforra da natureza: é o afã vital do organismo para recuperar as forças exauridas; é a vida buscando o equilíbrio perdido pela ação perturbadora de poderes ocultos.

    Quando terminamos de comer, supliquei a ele que me contasse o caso de Hansen, e ele o fez da seguinte maneira:

    Parte II

    — Certa noite, já bem tarde, quando eu já me entregara ao sono há várias horas, a campainha tocou precipitadamente, anunciando um caso urgente. Ordenei ao mordomo que abrisse a porta e vesti imediatamente uma bata para receber o inoportuno cliente. Um jovenzinho pálido e lamuriento entrou e implorou-me de joelhos que acudisse imediatamente o seu irmão, que estava morrendo sem o meu auxílio. Eu o fiz entrar em meu dormitório e, enquanto eu me vestia, ele disse-me que, há vários meses, o seu irmão emagrecia, penosamente, dia a dia. Vários médicos e curandeiros tinham-no examinado, e ninguém conseguia parar a devastação da misteriosa doença: todos haviam receitado poderosos tônicos e revigorantes, mas tudo fora em vão, porque a caquexia era progressiva e, o que é pior, o doente não sentia qualquer desconforto ou dor que pudesse orientar os médicos.

    “Naquela noite, ouviram um ruído no quarto de Hansen, e a mãe, temendo algum acidente, entrou no quarto e encontrou o jovem agitado, inchado, banhado de suor, e com uma pequena ferida no peito. Acordaram-no. A sua fraqueza era tal que ele não conseguia falar. A família de Hansen morava no campo, naquela bela quinta cujo bosque de tílias corta o caminho que liga a cidade à tua casa. Dispensei o jovem, assegurando-lhe que iria tão logo o meu cavalo fosse selado. Assim o fiz e, no caminho, pensei ter ouvido gritos e uivos estranhos, e presumi que partiam de lobos a devorar alguma ovelha desgarrada num bosque vizinho. Também julguei que o meu cavalo quisera empinar-se e que estremecia, como se mãos invisíveis o mortificassem e lhe impusessem obstáculos. Atribuí toda esta agitação à irascibilidade do animal, aborrecido com este trote noturno. Cheguei à quinta e fui levado por várias mulheres desconsoladas ao quarto do doente. Encontrei um jovem sumamente emaciado e pálido, que parecia estar dormindo ou desfalecido. Depois de examiná-lo, vi que tinha manchas vermelhas no pescoço e no peito e, neste, havia uma que sangrava ligeiramente. Examinando-a, imediatamente inferi que eram o resultado de uma sucção brutal. Mais de uma vez, eu tivera a ocasião de encontrar, nos hospitais, homens e mulheres que tinham sido sugados, em virtude daquele sadismo selvagem em que, em certos temperamentos grosseiros, o amor degenera. Não é raro que o amor e os instintos sanguinários e ferozes evoluam paralelamente; e, em muitas espécies animais, o amor é o antecedente da morte, ou melhor, esta é a consequência daquele.

    “Como era natural supor, aquelas manchas de Hansen tinham alguma origem, e isso, talvez, pudesse me orientar quanto às causas do estado de coma e do enfraquecimento geral do pobre rapaz. Era o que eu precisava averiguar em primeiro lugar. Roguei à senhora que fizesse sair as suas filhas e o jovem que veio me procurar. Uma vez a sós, disse-lhe:

    “— Senhora, o seu filho dá sinais de ter sido sugado por alguém que esteve com ele, aqui ou fora da quinta. Oh, senhora, compreendo a sua surpresa! Há coisas que a senhora ignora, que uma alma singela não pode conceber e que não é nobre descobrir. No entanto, devo preveni-la daquilo que observo em volta de seu filho: sinto a pérfida influência de algum ente maligno. Diga-me, então, se outras pessoas vivem aqui, além da senhora e seus filhos.

    “— Meu marido, ausente por algumas semanas, a empregada de minhas filhas e mais dois velhos criados.

    “— A senhora põe fé na moralidade da empregada?

    “— Oh, sim, senhor! Fé absoluta…

    “— É confiar demais, senhora … Perdoe-me esse questionamento sobre a privacidade do seu lar, mas acredite que eu preciso inteirar-me de certas coisas para diagnosticar a doença do seu jovem filho e determinar o tratamento. Diga-me se o jovem Hansen é dado a… amores passageiros, passatempos galantes… Vamos, diga-me se ele comete certas imprudências, como a maioria dos jovens de sua idade. Se bebe, se chega tarde e quais são os seus costumes.

    “— Hansen vive apenas para a noiva, assim como ela vive apenas para ele. Não sei se ele comete as imprudências a que o senhor alude. Mas creio que não, porque todo o tempo é muito curto para que ele visite a sua Alicia. De manhã, caminha, na companhia de Alicia, com seus irmãos; de tarde, substitui o irmão no cuidado da plantação; de noite, ele volta para a noiva. Previno o senhor de que esses encontros se dão sempre na presença de meus filhos ou dos pais e irmãos de Alicia. Às dez horas da noite, Hansen vai para a cama.

    “— Uma última pergunta, senhora: tem certeza de que, depois dessa hora, ninguém se encontra com Hansen e que o jovem não sai furtivamente de casa? Não me esconda nada, senhora, porque, apesar dos bons informes que me dá, posso assegurar-lhe que algo misterioso está acontecendo à noite. Algo que está matando o seu filho.

    “A senhora, chorando, me garantiu a moralidade do filho, que a porta se fechava assim que Hansen chegava, que a empregada dormia no quarto contíguo ao das filhas, que o cão dormia junto ao quarto de Hansen. E tanta certeza me deu que vacilei no conceito que havia formado sobre as causas do definhamento do jovem enfermo.

    “Ministrei a Hansen um tônico enérgico e ele logo acordou. Seu rosto expressava um grande assombro.

    “— O que está acontecendo, mãe?” Por que me rodeias?

    “Tomei o braço esquerdo do jovem e mostrei-lhe uma das manchas avermelhadas que cruzavam uma artéria; perguntei, olhando para ele.

    “— Quem fez isto? E esta… contusão no pescoço? E esta, no peito?

    “Hansen parecia perplexo com minhas perguntas. Depois, como quem lembra, ele respondeu:

    “— Ah sim, sim… Eu já tinha observado isso nas manhãs, ao banhar-me. Mas, como não me causavam dor ou desconforto, não voltei a me lembrar dessas manchas.

    “E, percebendo o desânimo e tristeza de sua mãe, ele se sentou na cama:

    “— Acaso é algo sério, doutor? Será varíola? E quanto a Alicia? Não deixe que Alícia venha aqui.

    “Tão sincera era a sua ignorância e tão notável era o tom de sua voz que não me restou dúvida de que Hansen não era minimamente responsável pelo seu mal.

    “Depois de conversar um pouco com Hansen e sua mãe, despedi-me. Prescrevi um regime restaurador. Mandei que fechassem bem uma janela alta, que estava entreaberta, e ordenei à senhora que vigiasse cuidadosamente o sono do jovem. Prometi voltar no dia seguinte.

    “Ao sair e montar o meu cavalo, notei que o animal estava assustadíssimo. Em muitos lugares, ao longo do caminho, percebi uivos e gritos distantes de mulheres, e em duas ou três ocasiões ouvi algo como o zumbido de pedras, atiradas por mãos invisíveis contra mim. Por muito tempo, já na cama, meditei sobre o estranho caso do jovem Hansen.

    “No dia seguinte, às primeiras horas da noite, fui ver meu paciente. Seu semblante estava melhor. A senhora disse-me que, seguindo a minha orientação, tinha velado o sono do filho e que constantemente tinha de se levantar para fechar hermeticamente a janela do quarto, porque o ar, com uma fúria invulgar, lhe tinha empurrado as folhas. Mas, naquela noite, não houvera vento!

    “Às nove, pus o jovem Hansen para dormir na minha presença. Mandei que lhe dessem leite, ovos crus e uma taça de vinho do Porto. Pouco depois, ele adormeceu. Então, pendurei paralelamente ao seu leito uma cortina preta que havia levado, apaguei a luz, abri um pouco a janela e me escondi num canto bem escuro, atrás de alguns móveis, para observar meu paciente. Mais de duas horas se passaram. Nenhum som chegava aos meus ouvidos além da tranquila respiração de Hansen, o canto dos galos da vizinhança e o mugido das vacas da quinta. Eu ouvi soar as doze horas em um relógio cuco. Esperei mais.

    “De repente, ouvi vozes de mulheres que, à distância, mesclavam-se a uivos. Levantei furtivamente a cabeça para a janela. Vi uma nuvem informe que se agitava entre as barras, uma espécie de redemoinho de linhas tênues, de formas vagas e desfeitas, de corpos aéreos indecisos. Aos poucos, tudo foi se definindo, os ruídos se converteram em sussurros e as formas vagas se condensando em corpos de mulheres. Como aves carniceiras, elas se deixaram cair sobre os armários e os móveis. Eram mulheres brancas com feições nervosas e cínicas. Seus olhos eram amarelos e fosforescentes como os de corujas; os lábios — de um vermelho sangrento — eram carnudos e, atrás deles, contraídos em sorrisos perversos, se viam pequenos dentes, afiados e brancos como os de ratazanas. Os corpos dessas mulheres tinham o brilho oleoso de superfícies envernizadas e a transparência leitosa de opala. A primeira a descer precipitou-se, ansiosa, sobre o jovem adormecido e o beijou raivosamente na boca; depois, com uma contração infame dos lábios, tomou o lábio inferior de Hansen entre os dentes e o mordeu suavemente. Pôs-se, então, a sugar-lhe o sangue, enquanto o seu corpo se agitava diabolicamente e os seus olhos emitiam um fulgor esverdeado que iluminava o rosto do homem adormecido.

    “Mais outras duas desceram: pareciam famintas de sangue e prazer. Uma se apoderou de uma orelha, outra sentou-se no chão e, com a ponta da língua, que devia ser áspera como a dos felinos, começou a acariciar a plantas dos pés de Hansen, que se contraíram, como se eletrificados. Outra, sinistramente bela, ajoelhou-se na cama e, com a espinha dorsal encurvada, com os cabelos lançados sobre a testa, aderiu sua boca ao peito de Hansen: parecia uma hiena devorando um cadáver. Todo o corpo do jovem se retorceu de um desespero louco, que poderia ser tanto a contração de um prazer agudo ou a de uma dor violenta: ele agitava-se com a inconsciência de um pedaço de carne posto em brasas. E outras e mais outras, diabólicas, belas, perversas, desceram da janela e aderiram as suas cabeças a diferentes partes do corpo de Hansen. Os corpos opalinos daquelas malditas mulheres se destacavam contra o tecido preto com toda a precisão. Vi passar gota a gota o sangue sugado por aquelas bocas infernais, via correr o sangue pálido por suas veias, subir-lhe aos rostos e colorir aquelas faces lívidas de um tênue rosa… O terror me paralisou e meus esforços para gritar foram em vão. Cinco ou dez minutos depois daquela horripilante cena de vampirismo, recuperei-me um pouco: dei um salto brusco, como molas em meu corpo tivessem sido repentinamente liberadas de um obstáculo que lhes impedia a distensão. As vampiras fugiram dando uivos tão terríveis que os meus cabelos se eriçaram.

    “Com um salto — ou voo —, elas correram para a janela e escaparam aos gritos.

    “A porta se abriu e a mãe de Hansen entrou apavorada, meio vestida. O uivo distante daquelas mulheres sinistras ainda podia ser escutado.

    “— O que foi isso? — ela perguntou, tremendo de terror e pálida como um cadáver.

    “— Senhora, eles são as vampiras, que há um bom tempo estão assassinando o seu filho. Quando se viram surpreendias em sua infame atividade, elas fugiram.

    “A mãe de Hansen desmaiou de terror. Quando voltou a si, ajoelhou-se aos meus pés e, tomando as minhas mãos, disse:

    “— Salve meu filho, doutor! Salve-o do poder dessas fúrias infernais. A minha vida, a do meu marido, dos meus filhos, será consagrada ao seu serviço; a nossa fortuna será sua, doutor…

    “Prometi à senhora esgotar os recursos da ciência para salvar Hansen. Mas já era tarde. Todo o meu esforço foi inútil. Dois dias depois, morreu o pobre rapaz, alegre, sem perceber que fenecia, acreditando-se saudável, assim como tu mesmo acreditaste, meu amigo. Um dado: Hansen havia cortejado muitas mulheres antes de amar sua noiva. E muitas das belas aldeãs estavam morrendo de amor pelo galã que, nos últimos tempos, profundamente apaixonado por Alicia, as desprezava.”

    Parte III

    No dia seguinte, minha mãe e a pequena Natália me esperavam cheias de ansiedade. Assim que cheguei em casa, notaram a melhora que eu havia experimentado, mas se alarmaram quando viram que um pensamento sombrio vagava pelos meus olhos. Eu as tranquilizei, assegurando-lhes que logo estaria saudável e forte com o tratamento que o médico me havia prescrito. A pequena e esbelta Natalia saltou aos em meus braços batendo palmas de alegria. Num momento em que estávamos a sós, ela beijou meus olhos com tanto fervor e amor que minhas carnes estremeceram… Era assim que as vampiras deveriam beijar!

    Dormi a tarde inteira com a cabeça apoiada nos joelhos da minha noiva, que havia obtido da família a permissão para passar o dia em minha casa.

    À noite, não conseguia dormir. Às três da manhã, eu tinha os olhos fechados, mas não dormia. De repente, ouvi pequenos ruídos, pequenos estalos e, em seguida, o deslizar de algo impalpável sobre o tapete. Meus cabelos se eriçaram de terror. Senti que o hálito quente e perfumado dos lábios de uma mulher acariciava minha têmpora, e uma voz silenciosa murmurava em meus ouvidos frases ardentes de amor, promessas de felicidade infinita. Senti, depois, que um corpo duro e ardente, que não pesava, se punha ao meu lado e que uns lábios se colavam ao meu pescoço. Louco de terror, levantei-me, dando um grito abafado. E, tentando agarrar e estrangular a maldita vampira, só consegui mordê-la no braço. E, como se em meus dentes e em minha língua eu tivesse os olhos e a consciência; como se alguma vez eu tivesse provado o seu sangue, tive — sem ver aquele corpo que fugiu ou desvaneceu — a sensação de que a carne que mordia era a da pequena e esguia Natália.

    Durante toda a manhã, fui presa de preocupações. À tarde, quando visitei a minha noiva, implorei que ela me mostrasse o braço, na altura cotovelo. Alicia tinha uma lesão recente! Eu não averiguei mais nada. Afastei-me, abruptamente, de minha noiva e, a cavalo, fui ver o médico, a quem contei, com ar sombrio, o que me havia acontecido e participei a minha resolução de desmascarar aquela infame bruxa, que se dedicava a satisfazer seus ignóbeis instintos vampíricos e, fingindo devotar o mais apaixonado amor, estava me matando.

    O médico me ouviu com profunda atenção, refletiu um pouco e depois riu:

    — O que me contaste prova algo que sempre me preocupou constantemente. Não deves fazer juízos deprimentes sobre a tua noiva, que merece teu amor e respeito, porque ela é pura como os anjos. O que acontece é que, por ser pura, inocente e boa, não deixa ela de ser mulher e, como tal, tem imaginação, desejos, sonhos e aspirações à felicidade. Ela tem nervos, tem ardores e veemências naturais e, acima de tudo, ela te ama com aquele amor equilibrado das naturezas saudáveis. Foram os seus desejos, suas curiosidades de noiva, seu pensamento intenso sobre ti o que vieram procurá-lo na noite passada. Os pensamentos, em certos casos, podem exteriorizar-se, personalizar-se, isto é, viver e agir, por uma certa energia latente no inconsciente que os acompanha, como seres ativos, como entidades substantivas, como pessoas. Tudo isso é obra da força psíquica que tem um raio de ação infinito e cujas leis ainda são misteriosas. Se perguntas a tua noiva o que ela fazia ontem à noite, à hora em que tiveste a visão, ela responderá que pensava em ti, que sonhava contigo. Talvez nada disso, porque o fenômeno misterioso também se verifica na mais absoluta inconsciência, e, talvez, com mais força. Acredita em mim, Stanislas: o poder da personalidade humana é muito vasto. Agora, aqui está o regime terapêutico que te prescrevo: casa-te com a tua prometida. Casa-te hoje mesmo. Se não hoje, amanhã. E se não for amanhã, o mais rápido possível. Esse é o teu remédio. E… o da tua noiva.

  • O Lobo príncipe e a velha bruxa

    O Lobo príncipe e a velha bruxa
    Conto original Oldcold Books

    Era uma vez um lobo solitário que vivia em uma floresta encantada. Ele olhava para os reinos vizinhos e sonhava em ser um príncipe poderoso e respeitado. Ele estava cansado de ser visto apenas como um animal selvagem e queria mudar sua sorte. Um dia, enquanto caminhava pela floresta, ele encontrou uma bruxa velha e sábia que vivia nas profundezas da floresta.

    “Bruxa, você pode me ajudar a me tornar um príncipe?” perguntou o lobo.

    “Eu posso ajudá-lo, mas há um preço a pagar”, respondeu a bruxa. “Você terá que completar um desafio difícil para provar que é digno de se tornar um príncipe.”

    O lobo concordou com a proposta da bruxa e ela lhe deu seu desafio. “Você deve encontrar e trazer para mim três penas de fênix, a criatura mais rara e mágica da floresta encantada.”

    O lobo sabia que seria uma missão difícil, mas ele estava determinado a se tornar um príncipe. Ele partiu em sua jornada, procurando a floresta inteira em busca da fênix. Ele percorreu muitos quilômetros, enfrentou muitos perigos e obstáculos, mas não encontrou nenhuma fênix.

    O lobo estava prestes a desistir, quando uma raposa sábia o encontrou e perguntou o que estava errado. O lobo contou sua história para a raposa, que lhe disse: “A fênix é difícil de encontrar porque ela é muito rara e vive nas montanhas mais altas da floresta. Eu conheço um caminho que pode levá-lo lá, mas é muito perigoso.”

    O lobo agradeceu a raposa e seguiu o caminho. Depois de muita escalada e esforço, ele finalmente chegou ao topo da montanha e encontrou a fênix. Ele pediu gentilmente por três penas e a fênix, impressionada com sua coragem, deu-lhe as penas.

    O lobo trouxe as penas de volta para a bruxa, que estava impressionada com sua coragem e determinação. Ela concedeu ao lobo sua magia e ele se transformou em um belo príncipe, poderoso e respeitado por todos.

    O lobo, agora príncipe, estava feliz por ter conquistado seu sonho, mas nunca esqueceu a lição que aprendeu. Ele percebeu que a verdadeira beleza e coragem estão dentro de si mesmo, e que, às vezes, a única coisa que precisamos é uma jornada difícil para encontrá-las.

  • O Sinaleiro

    Ilustração de “The Signal-man”, feita por Edward Dalziel, em 1866.


    O sinaleiro

    Charles Dickens
    (1866)


    — Olá! Você, aí embaixo!

    Quando ele ouviu uma voz chamando-o, estava à porta de sua cabine, com uma bandeira na mão, enrolada na sua vareta curta. Considerando-se a natureza da área, imaginar-se-ia que ele não pudesse duvidar de onde vinha a voz; mas em vez de olhar para cima, onde eu me postara no alto do patamar praticamente por sobre a sua cabeça, ele virou-se e olhou para a Linha abaixo. Havia algo de estranho na sua maneira de fazê-lo, mas eu não — absolutamente não —, poderia dizer o quê. Mas sei que era estranho o bastante para atrair minha atenção, embora sua silhueta estivesse parcialmente oculta e ensombrecida na passagem do nível abaixo, e a minha, bem acima dele, tão imersa no brilho incandescente de um crepúsculo rubro; sendo necessário proteger meus olhos com a mão antes de o ver.

    — Olá! Aí embaixo!

    Depois de olhar para a Linha abaixo, ele voltou novamente e, levantando os olhos, viu minha silhueta no alto.

    — Existe um caminho pelo qual eu possa descer e falar com você? — perguntei.

    Olhou para mim sem responder e olhei para ele, sem pressioná-lo imediatamente com uma repetição de minha pergunta ociosa. Foi então que houve uma vaga vibração no chão e na atmosfera, rapidamente transformando-se em uma violenta pulsação e progressiva agitação que me fez recuar, como se ela tivesse força para arrastar-me para baixo. Quando uma nuvem de vapor do trem veloz havia passado por mim, olhei novamente o nível inferior e o vi enrolando novamente a bandeira que ele desfraldara à passagem do trem.

    Repeti minha pergunta. Após uma pausa, durante a qual ele pareceu me olhar com uma atenção concentrada, acenou com sua bandeira enrolada em direção a um ponto em meu patamar, distante. Umas duas ou três centenas de jardas.

    — Está bem! — Respondi-lhe e desci àquele ponto.

    Lá, à força de olhar atentamente ao meu redor, encontrei um caminho escavado e irregular descendo em ziguezague, que segui.

    O entalhe era extremamente profundo e anormalmente abrupto. Era feito em pedra úmida, que se tornava mais gotejante e molhada à medida que eu descia. Por isso, o percurso foi lento o bastante para me dar tempo de recordar um ar singular de relutância ou obrigação com o qual ele me apontara o caminho.

    Após descer o zigue-zague o suficiente para vê-lo novamente, vi que ele se postara entre os trilhos pelos quais o trem passara recentemente, como se estivesse esperando que eu aparecesse. Tinha a mão esquerda no queixo e o cotovelo esquerdo pousava na mão direita, cruzada sobre o peito. Sua postura era de tal expectativa e cautela que me detive por um instante, surpreso.

    Retomei minha descida e, caminhando cautelosamente até o nível dos trilhos e aproximando-me dele, vi ser um homem moreno com aparência doentia, uma barba escura e sobrancelhas um tanto cerradas. Seu posto ficava no lugar mais solitário e lúgubre que eu jamais vira. De ambos os lados, um gotejante muro de pedras irregularmente recortadas, que a tudo ocultava, exceto uma faixa de céu; o panorama numa direção apresentava apenas um prolongamento torto desse grande calabouço; na outra direção, mais proximamente, avistava-se uma luz vermelha sombria e a entrada ainda mais sombria de um túnel negro, em cuja arquitetura maciça havia apenas um ar terrivelmente opressivo e irrespirável. Esse lugar recebia tão pouca luz do sol que exalava um cheiro de terra insuportável; e atravessava-o um vento tão frio que fiquei gelado, como se tivesse me distanciado do mundo real.

    Antes que ele se movesse, eu fiquei tão próximo que poderia tocá-lo. Sem tirar os olhos de mim nem mesmo então ele recuou um passo e levantou a mão.

    — Esse posto era solitário — disse eu. — E havia chamado minha atenção quando de lá de cima olhara para baixo.

    Raramente aparecia um visitante, eu supunha; mas essa seria uma raridade indesejável? Talvez em mim ele pudesse ver um homem que igualmente fora encerrado em limites estreitos durante toda a vida, mas que, finalmente livre, fora recentemente desperto para essas grandes obras. Assim dirigi-me a ele; mas não estou certo de que foram essas as palavras usadas, pois, além de eu não ser bom em entabular uma conversa, havia algo no homem que me intimidava.

    Ele lançou um olhar muito estranho para a luz vermelha perto da boca do túnel e perscrutou-a, como se algo estivesse faltando ali e depois olhou para mim.

    — Aquela luz fazia parte de sua ocupação? Não é?

    — Você sabe que sim — respondeu ele, numa voz baixa.

    Um pensamento terrível me veio à mente enquanto examinava atentamente os olhos fixos e o rosto saturnino, que se tratava não de um homem, mas de um espectro. Desde então tenho me perguntado se seu espírito não estava contaminado.

    Quanto a mim, recuei. Mas, ao fazê-lo, detectei em seus olhos algum medo latente de mim. Isso pôs a correr o pensamento terrível.

    — Você olha para mim como se me receasse — falei, forçando um sorriso.

    — Eu não tinha certeza — respondeu ele. —… Se o vira antes.

    — Onde?

    Ele apontou para a luz vermelha para onde olhara.

    — Lá? — disse eu.

    Com um olhar atento e cauteloso, ele respondeu (mas com voz inaudível) que sim.

    — Meu bom amigo, o que eu estaria fazendo lá? Mas, de qualquer forma, eu nunca estive lá, pode estar certo disso.

    — Acho que posso — repetiu ele. — Sim, acho que posso.

    Seu rosto se desanuviou, assim como o meu. Respondeu às minhas indagações com solicitude e palavras precisas. Ele tinha muito que fazer ali? Sim, diria que sim, tinha muitas coisas sob sua responsabilidade, mas o que se exigia dele eram pontualidade e atenção, não um trabalho real — manual. Para mudar aquele sinal, ajustar aquelas luzes e girar essa maçaneta de ferro de quando e quando era tudo que tinha a fazer. Com relação àquelas muitas horas longas e solitárias que me chamavam tanto a atenção, ele podia apenas dizer que a rotina de sua vida assim se acomodara e que a ela se habituara. Ele aprendera lá uma linguagem — se conhecê-la apenas pela visão e ter formado suas próprias ideias toscas de sua pronúncia pudesse ser chamado de aprendizado. Ele também trabalhava com frações e decimais e tentara um pouco de álgebra; mas tinha dificuldade, desde criança, com números. Era-lhe necessário, quando em serviço, permanecer sempre naquela corrente de ar úmido e não podia nunca subir para a luz do sol, por entre aqueles altos muros de pedra? Ora, isso dependia da hora e das circunstâncias. Sob certas circunstâncias, havia menos trabalho no Ramal do que nos outros, independente de horas diurnas ou noturnas. Quando o tempo estava bom, ele às vezes saía um pouco daquelas sombras inferiores; mas, como estava sempre sujeito a chamadas de sua campainha elétrica, e nessas ocasiões precisava ficar atento a ela com ansiedade redobrada, o alívio era menor do que eu poderia supor.

    Ele me levou ao seu cubículo, onde havia uma lareira, uma escrivaninha para um livro oficial no qual ele devia registrar certas entradas, um aparelho telegráfico com seu dispositivo de discagem, mostrador e agulhas e o pequeno sino de que falara. Quando expressei minha certeza de que ele perdoaria minha observação quanto ao fato de que era um homem instruído e (sem ofensa, esperava eu) talvez acima daquele cargo, ele observou que era extremamente raro encontrarem-se exemplos de ligeira discordância desse tipo entre uma grande quantidade de pessoas; que ouvira casos assim nas oficinas, na polícia, até mesmo naquele último recurso desesperado, o exército; e que ele sabia ser assim, mais ou menos, em qualquer equipe de uma grande companhia de estradas-de-ferro. Fora, quando jovem (se me fosse possível crer, sentado naquela cabine; até mesmo a ele era difícil crer), um estudante de filosofia natural e frequentara cursos; mas havia se comportado mal, perdido suas oportunidades, decaído, e nunca mais se recuperara. Não se queixava disso. Fizera sua cama e deitara-se nela. Era tarde demais para fazer outra.

    Tudo isso — que eu resumi aqui — ele o disse de jeito calmo, com seus olhares sérios divididos entre mim e o fogo. Ele intercalava a palavra “Senhor” de tempos em tempos e especialmente quando se referia a sua juventude: como se me pedisse para compreender que ele não pretendia ser senão o que eu nele via. Diversas vezes ele foi interrompido pelo sininho e precisou ler mensagens e enviar respostas. Uma das vezes, teve de postar-se além da porta e agitar uma bandeira enquanto um trem passava e trocar algumas palavras com o foguista. Observei que, no desempenho de seus deveres, ele era notavelmente pontual e atento, interrompendo seu discurso numa sílaba e permanecendo em silêncio até terminar o que tinha a fazer.

    Em suma, eu daria as melhores recomendações a respeito desse homem para esse emprego, salvo pela circunstância de que, enquanto falava comigo, interrompeu-se duas vezes, empalideceu, virou seu rosto para o sininho que não estava tocando, abriu a porta da cabine (que ficava fechada para impedir a umidade insalubre) e olhou para a luz vermelha próxima à boca do túnel. Em ambas as ocasiões voltou para o fogo com o ar inexplicável que eu observara, mas não fora capaz de definir, quando ainda estávamos muito distantes um do outro.

    Então, eu disse, quando me levantei para despedir-me:

    — Você quase me fez pensar que encontrei um homem feliz. (Mas devo confessar que o disse para animá-lo).

    — Creio que era — replicou ele, na voz baixa com que falara pela primeira vez. — Mas estou perturbado, senhor, estou perturbado.

    Ele teria retirado as palavras, se pudesse. Mas dissera-as, contudo, e eu rapidamente a agarrei.

    — Com o quê? O que o perturba?

    — É muito difícil explicá-lo, senhor. É algo sobre o que é muito difícil falar. Se algum dia o senhor me fizer outra visita, tentarei contar-lhe.

    — Mas eu tenho realmente a intenção de fazer-lhe outra visita. Diga-me, quando poderei fazê-lo?

    — Saio de manhã cedo e volto novamente amanhã às dez da noite, senhor.

    — Virei às onze.

    Mostrou-se agradecido e foi até a porta comigo.

    — Acenderei minha luz branca, senhor — disse ele, naquele seu tom de voz baixa que lhe era peculiar. — Até o senhor encontrar seu caminho para cima. Quando chegar lá, não grite! E quando estiver no topo, não grite!

    Sua atitude parecia fazer o lugar me parecer mais frio, mas eu nada mais disse senão “Está bem”.

    — E quando descer amanhã à noite, não grite! Permita-me fazer-lhe uma última pergunta. O que o fez gritar “Alô! Alô, aí embaixo” esta noite?

    — Sabe-se lá — disse eu. — Gritei algo assim…

    — Não assim, senhor. As palavras foram exatamente essas. Conheço-as bem.

    — Admito que foram essas as palavras. Eu as disse, sem dúvida, porque eu o vi embaixo.

    — Por nenhum outro motivo?

    — Por que outro? Que outro motivo poderia haver?

    — Não teve nenhuma sensação de que lhe eram comunicadas de algum modo sobrenatural?

    — Não.

    Ele me desejou boa noite e levantou sua lanterna. Andei pelo lado da linha de trilhos abaixo (com uma sensação muito desagradável de um trem vindo atrás de mim), até encontrar o lugar de subida. Era mais fácil subir do que descer, e eu voltei para meu hotel sem quaisquer incidentes.



    ***



    Pontualmente, coloquei meu pé no primeiro entalhe do zigue-zague na noite seguinte quando os relógios ao longe estavam batendo às onze horas. Ele estava a minha espera, no fundo, com sua luz branca acesa.

    — Não gritei — disse eu, quando nos aproximamos. — Posso falar agora?

    — Claro que sim, senhor.

    — Boa noite, então, aqui está minha mão.

    — Boa noite, senhor; aqui está a minha.

    Com isso, caminhamos lado a lado até sua cabine. Entramos, fechamos a porta e sentamo-nos ao lado do fogo.

    — Decidi, senhor — começou ele, inclinando-se para frente assim que nos sentamos e falando num tom pouco acima de um sussurro. — Que não precisará perguntar duas vezes sobre o que me perturba. Tomei o senhor por outra pessoa ontem à noite; o que me perturba.

    — Esse engano?

    — Não. A outra pessoa.

    — Quem é ela?

    — Não sei.

    — Parecida comigo?

    — Não sei. Nunca vi o rosto. O braço esquerdo está na frente do rosto, e o braço direito está acenando. Acenando com violência. Assim.

    Segui seu gesto com meus olhos e era o de um braço a agitar-se com extrema comoção e veemência; “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”.

    — Numa noite enluarada — disse o homem. — Eu estava sentado aqui quando ouvi uma voz gritar “Alô! Aí embaixo!”. Fiz um movimento, olhei daquela porta e vi essa pessoa de pé, ao lado da luz vermelha perto do túnel, acenando exatamente como lhe mostrei agora. A voz parecia rouca de tanto gritar e gritava: “Cuidado! Cuidado!” E, depois novamente “Alô! Aí embaixo! Cuidado!”. Peguei minha lanterna, acendi a luz vermelha e corri em direção à figura, dizendo “O que há de errado? O que aconteceu? Onde?” Eu estava perto da escuridão do túnel. Avancei para bem perto dele, pois estranhei o fato de manter a manga diante de seus olhos. Corri para ele e, quando estendi minha mão para puxar a manga, ele desapareceu.

    — Dentro do túnel? — indaguei.

    — Não. Corri para dentro do túnel, quinhentas jardas. Parei e levantei minha lanterna acima da cabeça e vi as figuras de uma certa distância e as gotas de umidade descendo pelas paredes e escorrendo pelo arco. Corri para fora novamente, mais rápido do que correra para dentro dele (pois tenho um pavor mortal do lugar) e olhei tudo em volta da luz vermelha com a minha própria luz vermelha e subi a escada de ferro até a galeria acima e desci novamente, correndo de volta para cá. Telegrafei para ambos os lados. “Houve um alerta. Alguma coisa errada?”. A resposta de ambos foi “Está tudo certo?”.

    Afastando o lento toque de um dedo gelado a subir pela minha espinha, expliquei-lhe que aquela imagem devia ser uma ilusão de óptica e que se sabia que essas imagens, originadas por doença dos nervos delicados que comandam as funções dos olhos, muitas vezes perturbavam os pacientes, alguns dos quais haviam reconhecido a natureza de sua ansiedade e até mesmo comprovado-a por experiências consigo mesmos.

    — Quanto ao grito imaginário — expliquei. — Ouça apenas por um momento o vento nesse vale artificial enquanto falamos com vozes tão baixas e como ele faz dos fios do telégrafo uma harpa extremamente sonora!

    — Tudo isso estava muito certo — respondeu ele, depois que já estávamos sentados por bons minutos, e já deveria ter pensado no vento e nos fios, ele que tantas vezes passara longas noites de inverno ali, sozinho e em vigília. Mas rogou-me atentar para o fato de que ainda não terminara.

    Pedi desculpas, e ele lentamente acrescentou estas palavras, tocando em meu braço:

    — Seis horas após a Aparição, aconteceu o famoso acidente desta Linha e durante dez horas os mortos e feridos foram trazidos de dentro do túnel, sobre o ponto em que estivera a imagem.

    Um calafrio desagradável subiu-me pelo corpo, mas fiz o possível para ignorá-lo. Era inegável, repliquei, que se tratava de uma coincidência notável e na medida certa para impressioná-lo. Mas era inquestionável que coincidências notáveis ocorriam sempre e que elas devem ser levadas em conta ao lidar com assuntos desse tipo. Embora eu certamente devesse admitir, acrescentei (pois julgava prever que ele iria contra-argumentar) que homens de bom senso geralmente não incluem coincidências nas previsões dos acontecimentos cotidianos.

    Ele novamente rogou-me que atentasse para o fato de que não terminara.

    Novamente pedi desculpas por tê-lo interrompido.

    — Isso — disse ele, pondo a mão em meu braço de novo e olhando por sobre o ombro com olhos vazios. — Aconteceu exatamente um ano atrás. Seis ou sete meses se passaram, e eu me recobrara da surpresa e do choque quando uma manhã, ao amanhecer, de pé naquela porta, olhei para a luz vermelha e vi o espectro novamente.

    Ele parou, com um olhar fixo para mim.

    — Ele gritou?

    — Não. Ficou em silêncio.

    — Ele acenou?

    — Não. Encostou-se ao poste da lanterna, com às duas mãos diante do rosto. Assim.

    Mais uma vez, segui seu gesto com os olhos. Era um gesto de luto. Já vi essa postura em figuras de pedra sobre túmulos.

    — Você foi até ele?

    — Entrei e sentei-me, em parte para recobrar o domínio de meus pensamentos, em parte porque me sentia a ponto de desmaiar. Quando fui novamente até a porta, a luz do dia brilhava e o fantasma desaparecera.

    — Mas nada mais aconteceu? Foi tudo?

    Ele me tocou o braço com seu dedo indicador duas ou três vezes, acompanhando cada um desses gestos com uma inclinação da cabeça, aterrorizado.

    — Naquele mesmo dia, quando um trem saiu do túnel, notei, numa janela do vagão para o meu lado, o que parecia uma confusão de mãos e de cabeças, e algo acenava. Eu o vi, a tempo de fazer um sinal para o foguista parar. Ele desligou e freou, mas o trem arrastou-se outras cento e cinquenta jardas ou mais. Corri para ele e, enquanto o acompanhava, ouvi gritos agudos e choros terríveis. Uma bela e jovem senhora morrera instantaneamente em um dos compartimentos e foi trazida para cá; deitaram-na neste chão, aqui, entre nós dois.

    Involuntariamente, recuei minha cadeira, enquanto meu olhar ia das tábuas para as quais ele apontava para ele próprio.

    — Verdade, senhor. Verdade. Foi exatamente assim que aconteceu, estou lhe dizendo.

    Eu não conseguia pensar em nada para dizer, nada que conviesse, e minha boca estava muito seca. O vento e os fios receberam a história com um longo gemido de lamento. Ele recomeçou:

    — Agora, senhor, ouça bem e avalie a perturbação de meu espírito. O espectro voltou, uma semana atrás. Desde então, ele está lá, de quando em quando, intermitentemente.

    — Ao lado da lanterna?

    — Ao lado da lanterna de alerta.

    — O que ele parece estar fazendo?

    Ele repetiu, se possível com uma emoção e veemência maior, a gesticulação anterior de “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”. Depois continuou:

    — Não tenho paz ou tranquilidade por causa disso. Ele me chama, durante minutos seguidos, de uma forma angustiada, “Aí embaixo! Cuidado! Cuidado!” Ele fica acenando para mim. Ele toca meu sininho…

    Nesse momento, eu o interrompi:

    — Ele tocou seu sino ontem à noite, quando eu estava aqui e você foi até a porta?

    Duas vezes.

    — Ora, veja — disse eu — Como sua imaginação o engana. Meus olhos estavam no sino, e meus ouvidos atentos, e se estou vivo, ele NÃO tocou então. Não, nenhuma vez, exceto do modo natural das coisas físicas, quando a estação comunicou-se com você.

    Ele balançou a cabeça e disse:

    — Eu nunca me enganei, senhor. Nunca confundi a badalada do espectro com a humana. O badalar do fantasma é uma vibração estranha no sino, que não provém de nada mais, e não afirmei que não se vê o sino balançar. Não surpreende que o senhor não o tenha ouvido. Mas eu ouvi.

    — E o espectro pareceu estar lá, quando você olhou para fora?

    — Ele estava lá.

    — Ambas às vezes?

    Repetiu com firmeza:

    — Ambas às vezes.

    — Você poderia ir até à porta comigo e procurá-lo agora?

    Ele mordeu o lábio inferior como se relutasse um pouco, mas levantou-se. Abri a porta e fiquei no degrau, enquanto ele se deteve na soleira. Ali estavam as altas paredes de pedras molhadas do entalho. Ali estavam as estrelas bem acima delas.

    — Você o vê? — perguntei-lhe, observando atentamente seu rosto.

    Seus olhos estavam arregalados e fatigados; mas não muito mais do que haviam estado os meus quando os dirigira atentamente para o mesmo ponto.

    — Não — respondeu ele. — Ele não está lá.

    — Exatamente — disse eu.

    Entramos novamente, fechamos a porta e sentamo-nos. Eu estava pensando em como aproveitar essa vantagem, se é que podemos chamá-la assim, quando ele retomou a conversa de um modo tão direto, admitindo que não poderíamos discordar seriamente diante do fato, que senti estar em uma posição muito desfavorável.

    — A esta altura o senhor compreenderá perfeitamente — disse ele. — Que o que me perturba de modo tão terrível é a pergunta: o que quer dizer o espectro?

    — Eu não tinha certeza — disse-lhe eu. — De tê-lo compreendido perfeitamente.

    — Ele está me avisando do quê? — disse ele, ruminando, os olhos no fogo e apenas de vez em quando os voltando para mim.

    — Qual é o perigo? Onde está o perigo? Há um perigo à espreita, em algum lugar na linha. Alguma terrível desgraça está para acontecer. Quanto a isso não há dúvida, nesta terceira vez, depois do que aconteceu antes. Mas com certeza isso me atormenta. O que posso fazer?!

    Ele tirou seu lenço e enxugou as gotas de suor de sua testa febril.

    — Se eu telegrafar “Perigo”, para um dos lados ou para ambos, não posso alegar nenhum motivo para tanto — continuou ele, enxugando as palmas das mãos. — Eu iria me arrumar problemas e não adiantaria nada. Eles pensariam que estou louco. O que sucederia seria isto: mensagem “Perigo! Cuidado!” Resposta: “Que Perigo? Onde?” Mensagem: “Não sei. Mas, pelo amor de Deus, cuidado!” Eles me demitiriam. O que mais poderia fazer?

    Seu sofrimento causava grande pena. Era a tortura mental de um homem consciencioso, oprimido intoleravelmente por uma responsabilidade ininteligível que envolvia vidas.

    — Quando ele ficou pela primeira vez sob a luz de perigo — continuou, afastando da testa seus cabelos escuros e esfregando as mãos pelas têmporas, num gesto de desespero febril — Por que não me dizer onde esse acidente devia acontecer; se ele devia acontecer? Por que não me dizer como ele poderia ter sido evitado; se ele pudesse ser evitado? Quando de sua segunda aparição, ele escondeu o rosto; por que, em vez disso, não me disse, “Ela vai morrer. Diga-lhes para mantê-la em casa?” Se ele viesse, nessas duas ocasiões, apenas para me mostrar que seus avisos eram verdadeiros e, portanto para preparar-me para o terceiro, por que simplesmente não me avisar agora? E eu, Deus me ajude, um simples e pobre sinaleiro neste lugar solitário! Por que não ir até alguém com credibilidade e poder para agir?!

    Quando o vi nesse estado, compreendi que, em favor do pobre homem, assim como para a segurança do público, o que me cabia fazer no momento era acalmá-lo. Consequentemente, deixando de lado toda discussão entre nós sobre o que era real e o que não era, argumentei com ele que quem quer que exercesse tão conscienciosamente sua função fazia-o bem, e que ao menos para seu consolo ele compreendia seu dever, embora não compreendesse essas aparições malditas. Nesse esforço eu me saí muito melhor do que na tentativa de convencê-lo de que estava errado. Ele ficou calmo; as ocupações inerentes a seu posto, à medida que a noite avançava, começaram a requisitar cada vez mais sua atenção, e eu o deixei às duas da manhã. Eu me ofereci para ficar a noite toda, mas ele absolutamente não quis.

    Que eu mais de uma vez olhei para trás, para a luz vermelha, enquanto subia pelo caminho, que eu não gostava da luz vermelha e que teria dormido muito mal se minha cama estivesse sob ela são fatos que não vejo motivo para esconder. Nem gostei das duas sequências do acidente e da moça morta. Não vejo motivo para esconder isso também.

    Mas o que mais me ocupava o pensamento era a reflexão sobre como deveria agir, agora que me fora feita uma tal revelação. Eu verificara que o homem era inteligente, atento, escrupuloso e pontual; mas por quanto tempo ele continuaria assim, nesse estado de espírito? Apesar de sua posição subordinada, ele tinha uma responsabilidade da maior importância. Gostaria eu (por exemplo) de apostar minha própria vida nas possibilidades de ele continuar a executá-la com perfeição?

    Incapaz de superar uma sensação de cometer de certa forma uma traição se comunicasse aos seus superiores na Companhia o que ele me dissera, sem primeiro ter uma conversa franca e propor uma solução intermediária para ele, resolvi por fim oferecer-me para acompanhá-lo (e também guardar segredo por uns tempos) ao melhor médico especialista que pudéssemos consultar na região e pedir sua opinião. Uma mudança no seu turno de serviço ocorreria na noite seguinte, segundo ele me informara; ele estaria livre uma hora ou duas após o amanhecer e voltaria logo depois do anoitecer. Tínhamos marcado nosso encontro conforme esse esquema.

    A noite seguinte estava agradável, e eu saí cedo de casa, a fim de desfrutá-la. O sol ainda não se pusera quando atravessei a calçada próxima do topo do entalhe profundo. Eu estenderia minha caminhada por uma hora, disse comigo, meia hora para ir e meia hora para voltar, e então já seria hora de ir à cabine do meu sinaleiro.

    Antes de prosseguir meu passeio, pisei na borda e mecanicamente olhei para baixo, no lugar de onde o vira pela primeira vez. Não consigo descrever o calafrio que me percorreu quando, junto à boca do túnel, vi o vulto de um homem, com sua manga esquerda sobre os olhos, acenando veementemente com o braço direito.

    O indizível horror que me sufocava passou num minuto, pois logo vi que esse vulto era de fato um homem e que havia um pequeno grupo de outros homens em pé a uma pouca distância dali, para quem ele parecia estar encenando o gesto que fizera. A luz de perigo ainda não estava acesa. Junto ao poste, estava uma pequena tenda baixa, que nunca vira antes, com suportes de madeira e lona. Não parecia maior do que uma cama.

    Com uma sensação inelutável de que havia algo errado — com um súbito medo do sentimento de culpa pelo erro fatal de ter deixado o homem ali e não ter feito com que enviasse alguém para supervisioná-lo ou corrigir o que ele fazia — desci o caminho chanfrado o mais depressa que pude.

    — O que aconteceu? — perguntei aos homens.

    — O sinaleiro foi morto esta manhã, senhor.

    — Não é o homem daquela cabine, é?

    — É sim, senhor.

    — O homem que conheço?

    — O senhor o reconhecerá, se o conhecia — disse o homem que era um porta-voz, descobrindo solenemente sua própria cabeça e levantando uma ponta da lona. — Pois seu rosto não se alterou.

    — Meu Deus! Como isso aconteceu, como isso aconteceu? — perguntei, virando para um e para outro, enquanto a cabine era novamente fechada.

    — Ele foi morto por uma locomotiva, senhor. Ninguém na Inglaterra conhecia melhor seu trabalho do que ele. Mas, não se sabe por quê, ele não saiu do trilho externo. Foi em pleno dia. Ele havia acendido a luz e tinha na mão a lanterna. Quando a locomotiva saiu do túnel, ele estava de costas para ela e foi atingido. Aquele homem ali estava no comando e mostrando como aconteceu. Mostre a este cavalheiro, Tom.

    O homem, que usava uma capa tosca e escura, recuou para o lugar onde estivera antes, junto à boca do túnel.

    — Depois da curva do túnel, senhor — disse ele. — Eu o vi no fim, como que numa luneta. Não deu tempo de diminuir a velocidade, e eu sabia que ele era muito cuidadoso. Como ele pareceu não ouvir o apito, eu desliguei a máquina quando estávamos próximos dele e chamei-o o mais alto que pude.

    — O que você disse?

    — Eu disse “Alô, aí embaixo! Cuidado! Cuidado! Pelo amor de Deus, saia do caminho!”

    Levei um choque.

    — Ah!Foi horrível, senhor. Eu não parei de gritar para ele. Pus meu braço na frente dos olhos, para não ver, e acenei este outro até o último momento; mas de nada adiantou.

    Para não prolongar a narrativa com detalhes acerca de algumas das estranhas circunstâncias mais do que de outras, posso, ao encerrá-la, sublinhar a coincidência de que o alerta do maquinista da locomotiva incluía não apenas as palavras que o infeliz sinaleiro repetira para mim e que dizia persegui-lo, mas também as palavras que não ele, mas eu próprio associara — e apenas mentalmente — ao gesto que ele imitara.

  • O VIOLINO DO ENFORCADO


    O VIOLINO DO ENFORCADO

    Émile Erckmann (1822–1899) e Alexandre Chatrian (1826–1890)

    Tradução de Paulo Soriano
    Karl Hâfitz passou seis anos mergulhado no método do contraponto. Estudou Haydn, Gluck, Mozart, Beethoven, Rossini. Gozou de uma saúde florescente e de uma fortuna honesta, que lhe permitiu seguir a sua vocação artística. Em síntese, dispunha de tudo o que é preciso para compor uma grandiosa e bela música, salvo o essencial: a inspiração.
    Todos os dias, cheio de nobre ardor, ele levava para seu digno mestre Albertus Kilian longas partituras muito ricas em harmonia, mas cada frase pertencia a Pierre, a Jacques, a Christophe.
    Mestre Albertus, sentado em sua grande poltrona, com os pés repousados sobre os trasfogueiros, o cotovelo metido na quina da mesa, enquanto fumava seu cachimbo, começou a sublinhar, uma após a outra, as singulares descobertas de seu pupilo. Karl chorou de ódio, enfureceu-se, contestou… Mas o velho mestre abriu silenciosamente um de seus inúmeros cadernos e, com um dedo sobre a passagem, disse-lhe:
    — Olhe, meu rapaz!
    Então Karl abaixou a cabeça e se desesperou com o futuro.
    Mas, numa bela manhã, quando apresentou, em seu próprio nome, ao Mestre Albertus, uma fantasia de Baccherini variada por Viotti, o homem, que, até então, se conservara impassível, se irritou:
    — Karl — gritou o professor —, você acha mesmo que eu sou um néscio? Você acha que não percebi o seu indigno furto? Isso é demais! Deveras!
    E, vendo-o consternado com sua apóstrofe, disse:
    — Ouça. Estou disposto a admitir que a memória o enganou, que toma as próprias reminiscências como algo original. Mas você, definitivamente, está engordando demais! Bebe vinho em demasia! São cálices em excesso! Isto é o que obsta os caminhos de sua inteligência. Você precisa perder peso!
    — Perder peso?
    — Sim!… Ou desista da música. Conhecimentos teóricos não lhe faltam, mas lhe faltam as ideias. E isto é bem simples. Se você passasse a vida revestindo as cordas do seu violino com uma camada de graxa, como elas poderiam vibrar?
    Estas palavras do Mestre Albertus foram um raio de luz para Hâfitz.
    — Por um imperativo ético — exclamou Hâfitz —, não hei de me esquivar de qualquer sacrifício. Como é a matéria que oprime minha alma, emagrecerei!
    Seu semblante, neste momento, expressava tanto heroísmo que Mestre Albertus ficou realmente tocado. Abraçou seu querido aluno e desejou-lhe boa sorte.
    No dia seguinte, Karl Hâfitz, com bagagem e bengala à mão, deixou o Hôtel des Trois Pigeons e a cervejaria do Roi Gambrinus para embarcar numa longa jornada.
    Seguiu para a Suíça.
    Infelizmente, depois de seis semanas, malgrado a sua gordura tivesse diminuído sensivelmente, a inspiração não o revisitou.
    — É possível ser mais infeliz do que eu? — disse Karl a si mesmo. — Nem o jejum, nem a boa comida, nem a água, nem o vinho, nem a cerveja podem conectar a minha mente ao sublime. O que eu fiz para merecer um destino tão triste? Enquanto uma multidão de ignorantes produz obras notáveis, eu, com toda a minha ciência, todo o meu trabalho, toda a minha coragem, nada consigo criar. Ah, o Céu não é justo! Não, não é justo!
    Enquanto assim pensava, seguia ele pela estrada de Bruck a Freiburg. A noite chegava, ele arrastava as solas dos sapatos e sentia-se quase a cair, de tão cansado que estava.
    Nesse momento, Karl percebeu, sob a luz do luar, um velho casebre escondido por detrás do caminho. Tinha o telhado inclinado, a porta torta, as janelinhas quebradas, a chaminé em ruínas. Altas silvas e urtigas cresciam ao seu redor e a janela no outão, a duras penas, dominava as urzes do planalto, onde o vento soprava violentamente.
    Através da névoa, Karl viu o galho de um pinheiro flutuando sobre a porta.
    — Vamos — disse a si mesmo —, o recanto não é bonito. É, até, um pouco assustador. Mas não julgue as coisas pela aparência.
    E, sem hesitar, bateu à porta com a bengala.
    — Quem está aí?… O que quer? — uma áspera voz veio de dentro.
    — Abrigo e pão.
    —Ah! Certo, certo!
    A porta abriu-se abruptamente e Karl viu-se diante de um homem robusto, de cara quadrada, olhos cinzentos e ombros cobertos por um manto furado no cotovelo, com uma machadinha na mão.
    Atrás dessa personagem brilhava a chama da lareira, iluminando a entrada de um sótão, os degraus de uma escada de madeira, as paredes decrépitas e, sob a luz da chama, havia uma jovem pálida e débil, coberta por um pobre vestido de algodão castanho com bolinhas brancas. A moça olhou para a porta com uma espécie de pavor. Seus negros olhos tinham uma expressão de indefinível tristeza e perplexidade.
    Karl viu tudo de relance e, instintivamente, agarrou a bengala.
    —Bem, entre! — disse o homem. — Não faz um bom tempo bom para negar-lhe abrigo.
    Karl, julgando que seria estranho exibir qualquer receio, caminhou até o centro da sala e se sentou num banquinho em frente à lareira.
    —Dê-me sua bengala e sua bolsa — disse o homem.
    Pela primeira vez, o pupilo do Mestre Albertus estremeceu até a medula. Mas a bolsa foi acomodada, o bastão colocado num canto, e o anfitrião sentou-se, calmamente, perto da lareira, antes que Karl se recuperasse da surpresa.
    Essa circunstância restaurou-lhe um pouco de calma.
    — Herr wirth (Senhor anfitrião) — disse ele sorrindo —, eu gostaria de jantar.


    — O que o cavalheiro quer para o jantar? — disse o outro, gravemente.
    — Uma omelete de bacon, uma jarra de vinho, um pouco de queijo.
    — Ora, ora, ora! O cavalheiro tem um excelente apetite. Mas nossas provisões acabaram.
    — Tudo?
    — Sim.
    — Tudo mesmo?
    — Mesmo.
    — O senhor não teria queijo?
    —Não.
    — Nem manteiga?
    — Não tenho.
    — Nem pão… Nem leite?
    — Nada.
    — Mas, grande Deus! Qual é o problema?
    — Tenho batatas assadas nas cinzas da lareira.
    No mesmo instante, Karl viu, na escuridão, sobre os degraus da escada, todo um regimento de galinhas: brancas, pretas, avermelhadas. Estavam adormecidas, algumas com a cabeça sob as asas, outras com o pescoço sobre os ombros. Havia, contudo, uma galinha comprida, seca, magra, fatigada, que se bicava e se depenava despreocupadamente.
    —Mas — disse Hâfitz, com a mão estendida — deve haver ovos…
    — Nós os levamos ao mercado de Bruck esta manhã.
    — Oh! Então, custe o que custar, coloque uma galinha no espeto!
    Mal proferira tais palavras, a jovem pálida, de cabelos desgrenhados, correu à frente da escada, gritando:
    — Não toque nas minhas galinhas! Não toque nas minhas galinhas! Oh! Deixe viver essas criaturas do bom Deus!
    Havia algo de terrível no aspecto dessa jovem infeliz. Então, Hâfitz se apressou em responder:
    — Não, não, não vamos matar as galinhas. Vejamos as batatas. Gosto de batatas… Eu não vou deixá-los mais! Neste momento, minha vocação está claramente emergindo. É aqui que eu fico, três meses… seis meses… Finalmente, terei o tempo necessário para ficar magro como um faquir!
    Ele disse tudo aquilo com ânimo singular, e o anfitrião gritou para a jovem pálida:
    — Génovéva!… Génovéva… Veja! O Espírito o possui… É como o outro!
    Lá fora, a intensidade o vento Norte redobrou. O fogo rodopiava na lareira e contorcia massas de fumaça acinzentada sobre o teto. As galinhas, no reflexo da chama, pareciam dançar nas tábuas da escada, enquanto a louca cantava, com voz estridente, uma estranha e antiga melodia. O tronco de madeira verde, uivando no meio da chama, acompanhava-a com seus melancólicos suspiros.
    Hâfitz entendeu que havia caído no covil do feiticeiro Hecker. Comeu duas batatas, ergueu a grande jarra vermelha cheia de água e, em prolongados goles, bebeu. Então a calma retomou-lhe a alma. Percebeu que a moça se havia recolhido e que o homem, sozinho, permanecia à frente da lareira.
    — Herr wirth — disse ele —, eu gostaria de dormir.
    O anfitrião, acendendo uma lamparina, subiu lentamente a escada carcomida. Sobre a sua cabeça grisalha, ergueu um alçapão pesado e conduziu Karl ao sótão, debaixo do colmo.
    — Eis aqui a sua cama — disse ele, pousando a lamparina no chão. — Durma bem e, acima de tudo, cuidado com o fogo!
    Depois, desceu as escadas, e Hâfitz ficou sozinho, com as costas dobradas, diante de um amplo colchão, sobre o qual havia um grande travesseiro de penas.
    Ele dormitava há alguns segundos, e se perguntava se seria prudente realmente dormir, já que a cara do velho homem lhe parecera assaz sinistra, sobremodo quando rememorava aqueles olhos cinza-claros, aquela boca azulada — rodeada da de grandes rugas —, aquela testa larga e ossuda, aquela pele amarelada… De repente, Karl se lembrou de que, em Golgenberg, houvera três homens enforcados, e de que um deles parecia singularmente com seu anfitrião… Que o enforcado, também, tinha olhos fundos, jaqueta com cotovelos perfurados e o dedão do pé esquerdo saindo de um sapato rachado pela chuva.
    Lembrou-se, ademais, de que aquele miserável, chamado Melchior, fora músico no passado e de que havia sido enforcado por ter derruído, com um jarro, o estalajadeiro da Mouton d’Or, que dele exigira, conforme o costume, uma moeda adicional…
    Certa feita, a música de tão pobre diabo o comovera imensamente. Ela era maravilhosa. A pupila do mestre Albertus indicava um quê de inveja ao pobre o boêmio. Mas, neste momento, vendo a face da forca, os trapos do infeliz, agitados pelo vento noturno, e os corvos voando ao redor, em gritos estridentes, Karl sentiu-se estremecer. E o seu medo cumulou de intensidade quando, nos confins do sótão, encostado à parede, vislumbrou um violino, coberto por duas palmas murchas.
    Quando cogitou em fugir, chegou-lhe aos ouvidos a voz áspera do anfitrião:
    — Apague a luz! Deite-se! Eu lhe disse que tomasse cuidado com o fogo!
    Essas palavras encheram Karl de um terror glacial. Então, deitou-se e apagou a luz.
    Depois, tudo ficou em silêncio.
    Apesar de resoluto a não fechar os olhos, enquanto ouvisse o gemido do vento, os pássaros da noite, chamando uns aos outros, na penumbra, os ratos trotando nas tábuas carcomidas do assoalho, Hâfitz, por volta de uma hora da manhã, dormia profundamente. Foi quando um soluço amargo, comovente e doloroso, fê-lo despertar, num sobressalto. Um suor frio inundou-lhe a face.
    Olhou para cima. Viu, no canto do telhado, um homem agachado: era Melchior, o Enforcado! Seu cabelo escuro escorria sobre os ombros. Exibia, nus, o peito e o pescoço. E era tão ressequido que se assemelhava ao esqueleto de um imenso gafanhoto. Um belo feixe de luar, esgueirando-se pela pequena claraboia, iluminava-o, suavemente, com um azulado esplendor, e, ao redor do enforcado, pendiam longas teias de aranha.
    Mudo, Hâfitz, com olhos arregalados e a boca escancarada, observava aquele ser bizarro. Fazia-o como quem contempla a morte erguida, por detrás das cortinas de cama, quando a hora fatídica se aproxima.
    De repente, o esqueleto estendeu sua longa e ressequida mão e agarrou o violino da parede. Encostou o instrumento ao ombro e, depois de um instante de silêncio, começou a tocar.
    Havia, naquela música, notas fúnebres, como o ruído da terra caindo sobre o caixão de um ente querido. Algo havia, no som, de solene, como os ribombar das cachoeiras, arrastado pelos ecos montanheses. E havia sonoridades majestosas, como as rajadas imensas do vento do outono, de entremeio às de florestas repletas de melodias. E, era, às vezes, triste… Triste como um desespero incurável, como um bando de alegres pintassilgos esvoaçando sobre os arbustos floridos… Estes graciosos trinados rodopiavam com um inefável estremecimento de descuido e felicidade, mas apenas para, de repente, lançarem-se em adejos terríveis, assustados pela melodia… E o faziam cheio de loucura, de emoção, de desespero. Amor, alegria, desespero… Tudo cantava… Tudo clamava… Tudo fluía desordenadamente sob aquele arco vibrante…
    E Karl, apesar de seu inexprimível terror, estendeu os braços e gritou:
    — Ó grande… grande… grande artista! Ó gênio sublime! Oh, como me apiedo do seu triste destino! Padecer enforcado por haver matado um rude estalajadeiro, que não sabia, sequer, uma nota musical! Vagando na floresta ao luar, sem corpo algum, mas dotado de um talento tão impressionante… Oh, Deus!
    Mas, quando assim exclamava, a voz áspera do anfitrião o interrompeu:
    — Ei! Aí em cima! Vai, finalmente, calar a boca? Você está doente ou a casa está em chamas?
    E passos pesados rangeram a escada de madeira. Uma luz profunda iluminou as frestas da porta, que se abriu com um empurrão de ombro, revelando o dono da casa.
    — Oh, herr wirth! — gritou Hâfitz. — Herr wirth, o que acontece? Primeiro, a música celestial me desperta e me encanta nas esferas invisíveis… Depois, tudo se desvanece como num sonho.
    O rosto do anfitrião, imediatamente, conformou-se numa expressão meditativa.
    — Sim, sim! — sussurrou, como se sonhasse. — Eu deveria ter sabido! Melchior voltou a perturbar o nosso sono… Ele sempre volta! Agora, perdemos nós o sono. Não mais pense em dormir… Vamos, camarada, levante-se… Venha fumar um cachimbo comigo.
    Aquele convite era desnecessário. Karl ansiava por sair dali. Quando desceu, e vendo que a noite ainda era profunda, ficou, com a cabeça nas mãos e os cotovelos sobre os joelhos, por muito, muito tempo, imerso num abismo de dolorosas meditações.
    O anfitrião acabara de reacender o fogo e de retomar o seu lugar na cadeira, posta no canto da lareira. Fumava em silêncio.
    Finalmente, o dia cinzento apareceu. Karl olhou pelas janelinhas monótonas. O galo cantou e as galinhas pularam de degrau em degrau.
    — Quanto eu te devo? — perguntou, levando a mochila aos ombros e tomando na mão a bengala.
    — Você nos deve uma oração na capela da Abadia de Saint-Blaise — disse o homem, com uma estranha entonação. — Uma oração pela alma de meu filho Melchior, o Enforcado. E outra por sua noiva Génovéva, a Louca!
    — Isso é tudo?
    — Isso é tudo.
    — Então adeus. Não me esquecerei de seu pedido.
    De fato, a primeira coisa que Karl fez, ao chegar a Friburg, foi rezar a Deus pelo pobre boêmio e por aquela a quem ele amara. Depois, foi à casa de Mestre Kiliam, o anfitrião do Grappe, espalhou o papel de pauta musical sobre a mesa, e, tendo trazido uma garrafa de rikevi, escreveu no topo da primeira página: “O Violino do Enforcado”. Compôs, de chofre, a sua primeira partitura verdadeiramente original.

  • A Igreja do Diabo


    A Igreja do Diabo

    Machado de Assis
    (1884)

    Capítulo I — De uma idéia mirífica


    Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio mais eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

    — Vá, pois, uma igreja — concluiu ele. — Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combaterem e se dividirem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

    Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

    Capítulo II — Entre Deus e o Diabo


    Deus recolhia um ancião quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

    — Que me queres tu? — Perguntou este.

    — Não venho pelo vosso servo Fausto — respondeu o Diabo rindo. — Mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

    — Explica-te.

    — Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas citaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros…

    — Sabes o que ele fez? — Perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

    — Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, devido ao preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação… Boa idéia, não vos parece?

    — Vieste dizê-la, não legitimá-la — advertiu o Senhor.

    — Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência… Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

    — Vai.

    — Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

    — Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.

    O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

    — Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…

    — Velho retórico! — Murmurou o Senhor.

    — Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, a indiferença, ao menos, com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha; sejam roupas ou botas, moedas ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida… Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas. Não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda. Vou a negócios mais altos.

    Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.

    — Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

    — Já́ vos disse que não.

    — Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

    — Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

    — Negas esta morte?

    — Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los…

    — Retórico e sutil! — Exclamou o Senhor. — Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens. Mas, vai! Vai!

    Debalde o Diabo tentou proferir algo mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

    Capítulo III — A boa nova aos homens


    Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava ser o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

    — Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfurais, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…

    Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, despertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

    Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça, foram reabilitadas; e assim também a avareza, que declarou não ser mais que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu…” O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

    As turbas corriam atrás deles, entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

    Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar ser um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois, não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue, e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo, a venalidade e a hipocrisia; isto é, merecer duplicadamente.

    E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

    Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolúveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos acreditassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

    Capítulo IV — Franjas e franjas


    A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A Igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alcançou brados de triunfo.

    Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

    A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estavam. Pois, esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro.

    Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

    — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana

  • UMA BATALHA COM LOBOS


    UMA BATALHA COM LOBOS

    George Alfred Henty (1832 – 1920)

    Tradução de Paulo Soriano

    [Malchus — um jovem oficial da guarda do grande general cartaginês Aníbal — saíra com dois companheiros numa expedição de caça nas montanhas espanholas. Depois de um longo dia atividade, os caçadores não lograram encontrar o acampamento e decidiram pernoitar na floresta.]

    Parte I

    Depois de comerem e conversarem por algum tempo, Halcon e seu companheiro deitaram-se para descansar. Malchus se ofereceu para manter o primeiro turno da vigilância. Por algum tempo, ele permaneceu sentado, em silêncio. Às vezes, lançava a lenha, tirada do estoque que eles haviam formado, ao fogo. Subitamente, mudou de atitude. Assuntou e se ergueu. Ouviu, repetidas vezes, os uivos dos lobos ecoando na floresta. Então, escutou um longo uivo, profundo e contínuo. Ouviu por um minuto ou dois e, então, acordou seus companheiros.
    — Há uma grande matilha de lobos se aproximando — disse ele. — Pela direção do som, julgo que eles estão caçando nos rastros de nossos passos, seguindo a nossa rota, e me parece que estão subindo a encosta oposta.
    — Sim. E pelo barulho que fazem, a alcateia deve ser bem grande — Halcon concordou. — Alimentem o fogo e se preparem para apanhar mais lenha o mais rápido possível. Essas feras, em grandes alcateias, são inimigos poderosos.
    Os três homens começaram a trabalhar, cortando e repartindo, vigorosamente, com suas espadas, pequenos galhos de árvores.
    — Façam quatro fogueiras — disse Halcon —, empilhando as lenhas no centro. Dificilmente os lobos ousarão passar por elas.
    A matilha, agora, descia a encosta, mantendo um coro de uivos curtos, que provocaram um inquietante arrepio em Malchus. Quando os lobos se aproximaram, o uivo cessou repentinamente.
    — Eles nos estão vendo — disse Halcon. — Fiquem atento a eles, mas não desperdicem as flexas. Precisamos de todas elas antes do amanhecer.
    Permanecendo absolutamente quietos, os amigos podiam ouvir o rastejar dos lobos sobre folhas caídas; mas a Lua já havia baixado e eles não conseguiam distinguir-lhes as figuras.
    — Parece-me — sussurrou Malchus — que vejo manchas de fogo brilhando nos arbustos.
    — É o reflexo do fogo nos olhos dos lobos — respondeu Halcon. — Veja! Eles estão ao nosso redor! Deve haver dezenas deles.
    Por algum tempo, os lobos não se acercaram. Então, encorajados pelo silêncio do pequeno e imóvel grupo, recolhido ao centro das fogueiras, duas ou três formas cinzentas apareceram no círculo de luz. Três arcos vibraram. Dois dos lobos caíram. Um terceiro, soltando um uivo de dor, fugiu na escuridão. Seguiu-se um som de uivos e rosnados. Depois, um ganido de dor, uma luta feroz e um rosnado prolongado.
    — O que eles estão fazendo? — Malchus perguntou, estremecendo.
    — Creio que eles estão comendo o lobo ferido — respondeu Halcon. — Ouvi dizer que esse é o costume desses brutos selvagens. Veja, as carcaças dos outros dois já desapareceram.

    Parte II


    Por mais rápidas que tenham sido aquelas quedas, alguns lobos se esgueiraram e arrastaram os dois outros corpos. Aquele incidente — evidência de quão extrema era a fome dos lobos e quão silenciosos eram seus movimentos — redobrou a vigilância dos caçadores.
    Malchus jogou um punhado de lenha em cada uma das fogueiras.
    — Devemos ter cuidado com a lenha — disse Halcon. — Seria bom que tivéssemos pensado nisso antes de nos deitarmos. Se tivéssemos juntado lenha suficiente para nossas fogueiras, estaríamos seguros. Mas duvido muito que nosso suprimento dure até o amanhecer.
    À medida que transcorriam as horas, a atitude dos lobos tornava-se cada vez mais ameaçadora. Eles já se achegavam às fogueiras. A cada vez que se aproximavam, braçadas de lenha eram arremessadas às fogueiras. À medida que as chamas saltavam com intensidade, os animais recuavam e a alcateia perdia vários de seus integrantes, que caíam, vitimados pelas flexas atiradas pelo pequeno grupo. Mas a pilha de madeira, agora, rapidamente se exauria, e — salvo quando os lobos avançavam — era preciso deixar o fogo queimar por si mesmo.
    — Devem faltar, ainda, quatro horas para o amanhecer — disse Halcon, enquanto jogava o último pedaço de lenha. — Olhem em volta, enquanto o fogo arde, e vejam se conseguem distinguir alguma árvore que possa ser escalada. Seria melhor que tivéssemos nos aproximado das árvores desde o início, em vez de confiar em nossas fogueira.
    Infelizmente, os homens haviam escolhido uma área um tanto aberta para o acampamento, pois o mato crescia denso entre as árvores.
    — Eis ali uma árvore — disse Malchus, apontando. — E ela tem um galho a menos de dois metros do chão. Basta que a escalemos e estaremos seguros
    — Muito bem — concordou Halcon. —Tentaremos saltar à árvore imediatamente, antes que o fogo se apague. Coloquem as espadas nas bainhas, conservem os arcos nos ombros e mantenham os archotes acesos. As tochas serão as nossas melhores armas, superiores a espadas ou lanças. Agora! Todos prontos, agora!
    Agitando as tochas acesas sobre suas cabeças, os três cartagineses correram em direção à árvore.
    Os lobos pareciam conscientes de que suas presas tentavam escapar. Com um uivo feroz, saltaram de sob os arbustos e correram para enfrentá-los. E, indiferentes às tochas em chamas, lançaram-se sobre os homens.
    Malchus mal sabia o que acontecera na luta breve e feroz. Um lobo saltou sobre seu escudo e quase o derrubou; mas dentes afiados perfuraram-lhe o corpo. O soldado arremessou um dos lobos para longe de si, ao mesmo tempo em que lançou a tocha, em cheio, no rosto de outro. Um terceiro lobo saltou sobre o seu ombro e o homem sentiu aquele hálito quente no rosto.
    Tendo lançado o archote, o soldado enfiou profundamente a sua adaga no flanco do lobo. Depois, arremessou o pesado escudo na massa de lobos à sua frente. Então, saltou para eles, e, agarrando o galho, pulou para a árvore. Lá se susteve com as pernas dobradas, enquanto um grupo de lobos saltava em sua direção com as goelas abertas.
    Malchus deixou escapar um grito de terror: seus dois companheiros jaziam no chão, e apenas uma massa confusa de corpos, em luta, mostrava onde eles haviam caído. Por um instante, ele hesitou, considerando se deveria pular e tentar resgatá-los; mas, olhando para baixo, sentiu que seria arrancado dali muito antes de chegar ao local onde os outros soldados haviam caído.
    Movendo-se ao longo do galho até alcançar o tronco, ele se ergueu e disparou as flechas, vingativamente, no meio da massa de lobos em luta, até que lhe restassem apenas três ou quatro flechas. Ele as reservou como último recurso.

    Parte III

    Agora, nada havia a fazer. Sentado sobre o galho, chorou pelo destino dos companheiros. Depois, viu que tudo estava quieto. O feroz bando havia devorado não apenas os soldados, mas seus próprios companheiros caídos. Agora, os lobos sentavam-se em círculo, expondo as línguas vermelhas, com os olhos fixos no sobrevivente. À medida que o fogo, gradualmente, se extinguia, suas formas desapareciam. Malchus, todavia, podia ouvir-lhes a rápida respiração e sabia que os lobos ainda mantinham a guarda.
    Malchus subiu na árvore até chegar a uma bifurcação, onde poderia sentar-se à vontade, e ali aguardou pelo advento da manhã. Esperava que a alvorada dispersasse os seus inimigos. Mas quando assomou a luz cinzenta, que precede o amanhecer, o soldado percebeu que a alcateia mantinha firme a vigília. E nem mesmo quando irrompeu a aurora, clareando o dia, os lobos exibiram qualquer sinal de movimento.
    Quando percebeu que os lobos não tinham a intenção de abandonar a posição, Malchus começou a considerar, seriamente, o que seria melhor a fazer. Pelo que sabia, ele ainda poderia estar a milhas de distância do acampamento, e seus amigos não teriam meios de saber onde ele se encontrava agora. Sem dúvida, a guarnição enviaria soldados em busca do grupo perdido. Mas, mas naquele deserto de floresta e montanha, as chances de ser encontrado eram mínimas.
    Ainda assim, parecia-lhe que aquela era a única possibilidade de ser resgatado. Ali, as árvores cresciam muito próximas umas às outras, e ele poderia facilmente passar de uma a outra, percorrendo, assim, alguma distância. Todavia, como os lobos o observavam e podiam ver tão bem de dia quanto de noite, não se via vantagem em sair de onde estava.
    O dia transcorria lentamente. A maior parte dos lobos havia partido, mas alguns mantiveram, constantes, os seus postos sob a árvore. Malchus sabia que os outros lobos estavam deitados sob os arbustos, não muito longe, pois era possível ouvir-lhe os frequentes rosnados, e às vezes, erguia-se uma cabeça cinzenta, e um par de olhos ansiosos voltavam-se, avidamente, para ele.
    De vez em quando, Malchus, sem fôlego, afiava os ouvidos, na esperança de ouvir os gritos distantes de seus camaradas. Todavia, tudo permanecia quieto na floresta e ele tinha certeza de que os lobos ouviriam, antes dele, qualquer um que se aproximasse dali.
    Uma ou duas vezes, de fato, supôs que os lobos — atentos, com suas orelhas em riste — estariam a ouvir sons inaudíveis aos humanos. Mas o alarme — se é que o foi — logo passou. Talvez os lobos ouvissem, apenas, os passos distantes de algum cervo passando pela floresta.

    Parte IV

    A noite voltou com suas horas longas e tristonhas. Malchus amarrou-se à árvore pelo cinto, para evitar a queda. Conseguiu, assim, algumas horas de sono inquieto, acordando sempre sobressaltado, coberto pelo suor frio, cria do medo, acreditando estar caindo nas mandíbulas famintas, que se abriam lá embaixo. Pela manhã, um desejo feroz de matar alguns de seus inimigos o dominou, e ele desceu para o galho mais baixo.
    Os lobos, vendo sua presa tão próxima, aglomeraram-se sob o galho e se esforçaram para pular sobre o homem. Deitando-se no galho, e trançando firmemente as penas, para obter o necessário apoio, Malchus enfiou a espada, quase até o cabo, entre as mandíbulas, que estalaram ferozmente, quando um lobo saltou, a poucos centímetros do galho. Vários morreram, e o restante, advertido, recuou a uma curta distância.
    De repente, uma ideia ocorreu a Malchus. Ele tirou o cinto e, com ele, fez um laço. Esperou até que os lobos reunissem coragem para atacar novamente. Não demorou muito. Enfurecidos pela fome, aguçada pelas presas já devoradas, os lobos, outra vez, se aproximaram, e começaram a saltar contra o galho.
    Malchus jogou o laço no pescoço de um deles e, com esforço, puxou-o para o galho e o matou com sua adaga. Depois, moveu-o ao longo do galho e o pendurou-o noutro, a cerca de três metros do chão, abrindo com sua adaga o peito e o ventre do animal. Feito isso, retornou para o lugar de origem.
    Seis lobos, um após o outro, foram içados e despachados, e, como Malchus esperava, o cheiro de sangue tornou o bando mais selvagem do que nunca. Os lobos se reuniram ao pé da árvore e continuaram a pular em direção ao tronco, fazendo esforços inúteis na obtenção daquele suprimento de comida, que pendia tentadoramente a uma distância muito curta, mas além de seu alcance.
    Passou-se o dia, mas sem sinais da tropa de resgate. Quando escureceu, Malchus desceu, novamente, ao galho mais baixo e disparou suas três flechas restantes aos lobos, que se reuniam abaixo dele. Altos uivos se seguiram a cada disparo, seguida do som de uma luta desesperada.
    Malchus deixou cair os seis lobos dependurados. E, depois, o mais silenciosamente possível, abriu caminho, ao longo de um galho, até uma árvore adjacente. Passou desta à outra, sucessivamente, até que alcançou uma distância razoável do lugar onde os lobos lutavam e rosnavam sobre os restos mortais de seus companheiros, muito absortos em seu trabalho para voltar qualquer pensamento ao homem em fuga.
    Silenciosamente, Malchus desceu ao chão e fugiu, correndo ao máximo de sua velocidade. Demoraria — ele tinha certeza — algum tempo até que os lobos terminassem seu banquete; e, mesmo que descobrissem que ele não mais estava na árvore, provavelmente levaria algum tempo até que pudessem sentir o seu cheiro, especialmente porque, tendo acabado o banquete de sangue, aqueles olfatos estariam entorpecidos.
    Por várias vezes, o soldado parava para escutar, temeroso de ouvir os uivos distantes — sinal de que que o bando estaria novamente em seu encalço. Mas tudo permanecia quieto, exceto pelos gritos e sonidos habituais da floresta. Duas horas depois, vislumbrou um brilho distante de luz e logo alcançou o acampamento de seus companheiros.

    Fonte: “Tales from the Works”, Londres, 1915.

  • Conto: O HÓSPEDE DE DRÁCULA

    {tocify} $title={Índice}


    O HÓSPEDE DE DRÁCULA

    Escrito por Bram Stoker

    Parte 1

    Quando partimos para o nosso passeio, o Sol brilhava radiosamente em Munique e a atmosfera estava cheia da euforia do princípio do Verão. Naquele momento,

    Herr Delbriick (o maitre do hotel Quatre Saisons, onde eu me alojava), desceu até a carruagem, e depois de me desejar uma digressão agradável, recomendou ao cocheiro, ainda com a mão pousada no puxador da porta do veículo:

    — Não se esqueça de regressar antes do anoitecer. O céu está límpido, mas há uma aragem fria do norte que pode prenunciar borrasca súbita. Tenho, porém, a certeza de que não se atrasará.

    Neste ponto, sorriu e acrescentou: 

    — Sabe perfeitamente que noite é esta.

    Johann replicou com um enfático “Ja, mein Herr”, e, levando dois dedos à pala do boné, pôs rapidamente a carruagem em movimento. Depois de deixarmos a cidade para trás, fiz-lhe sinal para que parasse e perguntei:

    — Diga-me uma coisa, Johann, que noite é esta?

    — “Walpurgisnatch”

    Exclamou severamente, ao mesmo tempo em que se benzia.

    Em seguida, puxou do relógio de bolso, um objeto enorme, um modelo antiquado de prata alemão do tamanho de um nabo, e consultou-o, de sobrancelhas franzidas e com um pequeno encolher de ombros de impaciência. Compreendi que se tratava da sua maneira de protestar respeitosamente contra a demora desnecessária e reclinei-me no banco, limitando-me a fazer-lhe sinal para que reatasse a marcha. O veículo pôs-se em movimento rapidamente, como para recuperar o tempo perdido. De vez em quando, os cavalos pareciam erguer as cabeças para recuperar o fôlego com uma certa desconfiança. Nessas ocasiões, eu olhava em volta com frequência, e alarmado. A estrada era completamente deserta, pois cruzamos uma espécie de planalto elevado batido pelo vento. Enquanto prosseguimos, observei um caminho que parecia pouco utilizado e dava a impressão de mergulhar num pequeno e sinuoso vale. Apresentava um aspecto tão convidativo que, embora correndo o risco de o contrariar, indiquei a Johann que parasse. E, quando obedeceu, anunciei que gostaria de seguir por aquele caminho. Apresentou uma variedade de pretextos para me impedir e ao mesmo tempo benzia-se com insistência enquanto falava. Tal fato estimulou-me a curiosidade, forçando-me a lhe fazer várias perguntas, às quais respondeu com relutância e de forma evasiva, ao mesmo tempo em que olhava repentinamente o relógio, em protesto por minha atitude. Por fim, declarei:

    — Quero ir por aí. Não lhe pedirei que me acompanhe, a menos que lhe interesse fazê-lo, mas explique-me, por favor, a que se deve essa sua atitude.

    Sem pronunciar uma palavra, pareceu lançar-se do seu lugar para o chão, tal a prontidão com que o abandonou. Em seguida, estendeu-me as mãos em um gesto de súplica, para que não fosse adiante com o desejo manifestado. Havia inglês suficiente no seu discurso em alemão para eu compreender o sentido geral das palavras. Parecia constantemente à iminência de me revelar algo, ideia que obviamente o aterrorizava, mas continha-se no último instante, enquanto se benzia proferia apenas as palavras:

    — Walpurgisnacht!

    Tentei argumentar com ele, mas era difícil sustentar um diálogo com alguém cujo idioma não dominamos. A vantagem inclinava-se sem dúvida a seu favor, pois embora começasse a falar algumas palavras em inglês, sua tentativa na língua era muito rudimentar e vacilante, acabava por se cansar e voltava a enveredar pela sua língua nativa e não parava de consultar o relógio. De repente, os cavalos deixaram transparecer o nervosismo e puseram-se a resfolegar. Ato contínuo, Johann empalideceu intensamente e, olhando em volta, aterrado, precipitou-se para frente, segurou nas bridas e conduziu os animais para diante, cerca de sete metros. O segui e perguntei o motivo de semelhante maneira de proceder. Como resposta, benzeu-se mais uma vez, apontou para o local que acabávamos de abandonar e levou a carruagem para a estrada, ao mesmo tempo em que indicava uma cruz e dizia, primeiro em alemão e depois em inglês:

    — Sepultaram-no, àquele que se matou…

    Recordei-me do velho costume de sepultar os suicidas nas encruzilhadas e exclamei:

    — Ah, compreendo; um suicida! Muito interessante! Mas confesso que não entendia a razão pela qual os cavalos se mostravam excitados.

    Enquanto conversávamos, ouvimos uma espécie de som estranho, algo entre um grito e um latido. Apesar de distante, os cavalos ainda ficaram mais excitados, e Johann necessitou se esforçar muito para os acalmar. Por último, quase pálido, proferiu:

    — Parecia um lobo, mas não há lobos nestas paragens…

    — Não? Estranhei.

    — Há muito que não se aproximavam tanto da cidade?

    — Muito, muito, na Primavera e no Verão. Mas, com a neve, andaram por aí não há muito tempo.

    Enquanto ele afagava os cavalos e tentava serená-los, nuvens negras cruzavam rapidamente o céu. O Sol desapareceu e envolveu-nos um vento frio. Tratava-se, porém, mais de um vento efêmero que de qualquer outra coisa, uma espécie de advertência, pois os raios solares não tardaram a reaparecer. Johann ergueu a mão à altura dos olhos para os proteger do clarão e, contemplando o horizonte, disse:

    — A tempestade de neve chega com grande antecedência.

    Em seguida, tornou a olhar o relógio e, sem perder um só segundo, pegou nas rédeas com firmeza, pois os animais ainda escavavam o chão com as patas e sacudiam as cabeças e subiu para o seu lugar, como se tivesse chegado o momento de sair dali.

    Entretanto, sentia-me um pouco obstinado e não entrei imediatamente na carruagem.

    — Fale-me do lugar até aonde o caminho conduz.

    Apontei para o desvio que tanto parecia impressioná-lo.

    Tornou a se benzer e murmurou uma breve prece antes de explicar:

    — É terrível.

    — O quê? Persisti.

    — A aldeia.

    — Nesse caso, há uma aldeia?

    — Não, não! Não vive lá ninguém há centenas de anos.

    A minha curiosidade recebeu um estímulo suplementar.

    — Mas você disse que havia uma aldeia.

    — Sim, havia.

    — Que lhe aconteceu?

    Neste ponto do diálogo, irrompeu uma longa história com palavras misturadas em alemão e inglês, tão confusa que não consegui compreender inteiramente o que dizia, mas depreendi que, há muito tempo, há centenas de anos, havia morrido pessoas e sido enterradas nas suas sepulturas, ouvindo-se depois sons na terra e, uma vez abertas, os homens e mulheres inumados encontravam-se rosados de vida, com as bocas vermelhas de sangue. E, empenhados em salvar as suas próprias vidas (sim, e as almas, e nesta passagem ele benzeu-se mais uma vez), os sobreviventes partiram apressadamente para outros lugares, onde os vivos viviam e os mortos permaneciam mortos e não… não qualquer outra coisa. Johann mostrava-se claramente receoso de pronunciar as últimas palavras. À medida que a narrativa prosseguia, denunciava excitação crescente. Poderia dizer que a imaginação se apoderara dele, e terminou num verdadeiro paroxismo de medo, pálido e a transpirar em bica, trêmulo e com olhares em volta constantes, como se esperasse que uma presença horrível se manifestasse numa área banhada pelo sol radioso. Finalmente, numa agonia de desespero, bradou:

    — Walpurgis Nacht! E apontou para a carruagem, a fim de que eu entrasse.

    Em face disso, todo o meu sangue britânico entrou em efervescência e, recuando um passo, acusei:

    — Está com medo, Johann… está com medo. Volte para trás! Eu regressarei sozinho. O passeio a pá me fará bem, a porta da carruagem encontrava-se aberta. Peguei na bengala de carvalho que deixara em cima do banco, objeto esse que me acompanhava sempre nas excursões de férias, fechei a porta, apontei para Munique e repeti:

    — Volte para trás, Johann. A Walpurgis Nacht não tem nada a ver com os ingleses.

    Os cavalos achavam-se agora mais excitados que nunca e o cocheiro tentava serená-los, ao mesmo tempo em que me implorava com veemência que não cometesse a imprudência que acabava de anunciar. A perturbação do pobre homem impressionava-me, pois parecia sincera, mas não pude evitar uma gargalhada. O seu inglês desaparecera por completo. O homem desnorteado acabou por se esquecer que o seu único meio de se fazer entender consistia em se exprimir no meu idioma, pelo que continuou a balbuciar o seu alemão nativo. A situação começou a tornar-se monótona. Depois de reiterar “Volte para trás!”, com um gesto elucidativo, virei-lhe as costas, para enveredar pelo caminho de acesso ao vale.

    Com um movimento de desespero, Johann apontou a carruagem para Munique. Me apoiei na bengala e o acompanhei com a vista. O veículo rolou lentamente durante uns minutos. De repente, surgiu do topo da colina um homem alto e magro. A distância a que se encontrava não me permitia fixar outros pormenores. Quando se aproximou dos cavalos, estes começaram a erguer-se nas patas posteriores e a sacudir as anteriores, como que para repelir um perigo invisível. Johann não conseguia dominá-los, e arrastaram a carruagem velozmente, até que desapareceu ao longe.

    Tentei, então, examinar melhor o desconhecido, mas ele também se eclipsara em meio a distância.

    Despreocupado, comecei a percorrer o caminho que conduzia ao vale e que tanto aterrorizara o cocheiro. Eu não descortinava o mínimo motivo justificasse tal reação, e prossegui em frente durante cerca de duas horas, indiferente ao tempo e à distância, sempre sem me cruzar com vivalma ou avistar qualquer casa. A área podia considerar-se virtualmente solitária. No entanto, não me apercebi particularmente disso até que, ao emergir de uma curva, me deparei com algumas árvores dispersas e reconheci, então, que ficara inconscientemente impressionado com a desolação da região que atravessava.

    Sentei-me para descansar e comecei a olhar em volta: Notei que fazia consideravelmente mais frio que no início do passeio, dava a impressão de me rodear uma espécie de suspiro constante, com, de vez em quando, em cima, num ponto elevado, algo como um rugido abafado. Ergui os olhos e notei que as nuvens densas deslizavam rapidamente no céu, de norte para sul. Havia sinais de borrasca iminente em camadas mais altas da atmosfera. Invadiu-me um certo frio e, atribuindo-o à imobilidade após uma longa caminhada, recomecei a andar.

    A área pela qual agora passava era muito pitoresca. Embora não houvesse objetos especiais que chamassem a atenção, imperava um certo encanto de beleza. Continuava a não me preocupar com as horas e só quando me apercebi da intensificação do crepúsculo principiei a encarar o problema da orientação para regressar à procedência. A claridade do dia extinguira-se. A temperatura descera e o teto de nuvens era mais baixo. O seu movimento fazia-se acompanhar de uma espécie de arrastar distante, através do qual dir-se-ia brotar, a intervalos, o grito misterioso que o cocheiro atribuíra a um lobo. Hesitei por uns momentos. Mas como dissera que visitaria a aldeia abandonada, continuei em frente, até que desemboquei numa ampla extensão de terreno aberto, ladeado por colinas. Os lados estavam cobertos de árvores, que se prolongavam em direção à planície, polvilhando, em pequenos grupos, as encostas e depressões suaves que se vislumbravam aqui e ali. Acompanhei com a vista o serpentear do caminho e verifiquei que descrevia uma curva perto de um dos mais densos desses grupos a que se perdia para além dele.

    De súbito, o ar pareceu atravessado por uma corrente gelada e a neve começou a tombar Pensei nos quilômetros sucessivos de paisagem desoladora que percorrera e apressei-me em direção à proteção das árvores à minha frente. O céu tornava-se cada vez mais negro, enquanto a neve caía copiosamente, até que o solo adiante e à minha volta se converteu num tapete branco e reluzente, cuja orla mais afastada se perdia na imprecisão da neblina. O caminho tornara-se mais primitivo, quando plano, com os limites menos marcados, até que cheguei à tenebrosa conclusão de que me desviara dele, porquanto os pés tinham deixado de pisar a superfície dura e passavam a afundar se na relva e no musgo. Em seguida, a intensidade do vento aumentou e soprou forte, a ponto de eu experimentar dificuldades em avançar contra ele. A temperatura tornou-se ainda mais cortante e, apesar do exercício que efetuava, principiei a sofrer. A neve caía agora tão densamente, por meio de turbilhões, que quase não conseguia manter os olhos abertos. De vez em quando, o céu era rasgado por clarões intensos de raios de sol que me permitiam vislumbrar em frente uma densa massa de árvores, em particular, teixos e ciprestes com as copas carregadas de neve.

    Não tardei a encontrar-me sob a sua proteção e, em comparativo silêncio, ouvia os silvos do vento sobre à minha cabeça, a grande altura. Por fim, a escuridão da tormenta mesclou-se com as trevas da noite. A fúria dos elementos foi-se atenuando gradualmente, até ficar reduzida a rajadas de vento ou trovões remotos ocasionais. Naqueles momentos, o som sinistro do lobo parecia ecoado por muitos outros similares à minha volta.

    De quando em quando, por entre a massa negra de nuvens em movimento, surgia uma faixa dispersa de luar que iluminava a paisagem e me revelava que estava na periferia de um grupo espesso de ciprestes e teixos. Como parara de nevar, abandonei o refúgio e comecei a investigar as imediações mais atentamente. Certifiquei-me que, no meio de tantas velhas construções pelas quais passara, poderia encontrar se ainda de pé uma casa que, embora em ruínas, me proporcionaria abrigo por algum tempo. Ao contornar a orla do arvoredo, descobri que o circundava um muro baixo, ao longo do qual segui até encontrar uma solução de continuidade. Aí, os ciprestes formavam uma passagem que se estendia até um edifício. Todavia, no momento em que me apercebi disso, as nuvens em movimento obscureceram a Lua, pelo que enveredei pelo caminho às escuras. O vento devia ter arrefecido, pois me descobri a tremer, mas existia a esperança de uma proteção e prossegui persistentemente.

    Detive-me, porque se registrou um silêncio repentino. A tormenta afastara-se por completo e, porventura em sincronia com a quietude da natureza, o meu coração pareceu parar de palpitar. No entanto, isso ocorreu apenas momentaneamente, porquanto o luar irrompeu de súbito das nuvens e revelou-me que alcançara um cemitério e o objeto retangular na minha frente era um maciço túmulo de mármore, tão branco como a neve que pousava nele e à sua volta. Com o luar, registrou-se um suspiro agudo da tormenta, a qual pareceu reatar a atividade com um uivo prolongado, como o produzido por muitos cães ou lobos. Fiquei assombrado e chocado e senti o frio aumentar, até que deu a impressão de se me apoderar do coração. De súbito, enquanto o luar incidia na placa de mármore, a fúria dos elementos deu ulteriores sinais de renovação, como se retrocedesse sobre os seus próprios passos. Impelido por uma espécie indeterminada de fascinação, acerquei-me do sepulcro para ver o que era e determinar a razão pela qual uma coisa daquelas se erguia, solitária, em semelhante lugar Contornei-o e li, por cima da porta dórica:

    “CONDESSA DOLLINGER DE GRATZ EM ESTÍRIA PROCURADA E ENCONTRADA MORTA 1801”

    No topo do túmulo, aparentemente cravado no mármore maciço, pois a estrutura compunha-se de alguns enormes blocos de pedra, havia uma grande cavilha ou estaca de ferro. Continuando a contorná-lo, avistei em largos caracteres russos:

    “OS MORTOS DESLOCAM-SE DEPRESSA.”

    Existia algo de tão tétrico e incrível em tudo aquilo que me obrigou a estremecer e a recear a perda dos sentidos. Comecei a arrepender-me, pela primeira vez, de não ter seguido o conselho de Johann. Por associação de ideias, ao pensar no cocheiro, evoquei um pormenor que surgiu em circunstâncias quase misteriosas e através de um choque terrível. Era a noite de Santa Valpurga!

    A noite de Santa Valpurga, em que, segundo a crença de milhões de pessoas, o diabo anda à solta, em que as sepulturas se abrem e os mortos se erguem e caminham. Em que todas as coisas hediondas da terra, do ar e da água se divertem à sua sinistra maneira. O cocheiro manifestara um pavor mortal daquele lugar. Era aquela aldeia abandonada por toda a população, séculos atrás. Era aí que jazia o suicida e onde me encontrava, só, desarmado, trêmulo de frio numa mortalha de neve e com uma tormenta cuja fúria parecia empenhada em se reatar a todo o momento. Necessitei de toda a minha filosofia, toda a religião que me haviam ensinado e toda a coragem para não ceder a um paroxismo de medo.

    De repente, um autêntico tornado explodiu à minha volta. A terra tremeu como se a percorressem milhares de cavalos a galope, e desta vez os elementos transportavam nas suas asas geladas, não neve, mas violentas saraivadas que pareciam disparadas por exímios fundibulários, pedras que arrancavam folhas e ramos e tornavam o abrigo dos ciprestes obsoleto. A princípio, precipitara-me para a árvore mais próxima, mas não tardei a ser obrigado a abandoná-la e a procurar o único lugar suscetível de oferecer proteção, a arcada dórica do túmulo de mármore. Aí, agachado junto da maciça porta de bronze, obtive alguma defesa contra o bombardeamento de saraiva, pois agora as pedras só me atingiam depois de ricochetearem no chão e do lado do mármore.

    Quando me encostei à porta, moveu-se levemente e abriu-se para dentro. Até o abrigo de um túmulo era bem-vindo naquela tormenta implacável, e preparava-me para avançar, quando um relâmpago intenso iluminou todo o céu. Naquele instante, tão certo quanto eu estar vivo, avistei, pois tinha os olhos voltados para dentro, uma mulher atraente, linda, de rosto arredondado e lábios vermelhos, aparentemente adormecida. 

    No momento em que o trovão retumbou sobre a minha cabeça, fui agarrado como que pela mão de um gigante e lançado para fora. Passou-se tudo tão rapidamente que, antes de me poder aperceber do choque, tanto moral como físico, senti a saraiva fustigar me de novo. Ao mesmo tempo, acudiu-me a estranha e crescente sensação de que não estava só. Volvi o olhar para o túmulo. Nessa altura registrou-se novo relâmpago ofuscante que deu a impressão de atingir a estaca de ferro cravada no mármore e prosseguir em direção ao solo, como se atravessasse mero papel. A mulher morta ergueu-se num momento de agonia, enquanto as chamas a envolviam e o intenso grito de horror era abafado pelo trovão. A última coisa que ouvi foi àquela mistura de som terrível, ao mesmo tempo em que voltava a ser agarrado por uma mão gigantesca e arrastado, enquanto a saraiva me flagelava e o ar em volta parecia reverberar com os uivos dos lobos. A última cena de que me recordo é de uma massa branca e vaga em movimento, como se todas as sepulturas à minha volta tivessem libertado os fantasmas dos seus amortalhados mortos e estes avançassem para mim através da espessa cortina de saraiva.

    Surgiu gradualmente uma espécie de vago início de reanimação, seguido de uma sensação de cansaço verdadeiramente horrível. Durante longos momentos, não me recordei de nada, até que os sentidos reataram gradualmente as suas funções. Os pés pareciam esmagados pela dor, e não podia movê-los. Davam a impressão de entorpecidos. Havia um desconforto glacial na nuca e ao longo da coluna vertebral, ao passo que as orelhas, à semelhança dos pés, permaneciam mortas e, não obstante, imersas em tormento, mas tinha no peito uma sensação de conforto que era, em comparação, deliciosa. Tudo se passava como num pesadelo, um pesadelo físico, se me é permitida a expressão, pois um peso opressivo no peito tornava-me a respiração difícil.

    Esse período de semiletargia perdurou por largo tempo e creio que, à medida que se dissipava, adormeci ou perdi os sentidos. A seguir, verificou-se uma espécie de aversão, como a fase inicial do enjoo do mar, e um desejo frenético de ficar livre de algo, mas não lograva determinar de quê. Envolveu-me um vasto silêncio, como se todo o mundo tivesse adormecido ou morrido, apenas alterado por um leve arquejar, como de um animal perto de mim. Notei a sensação áspera na garganta e em seguida a consciência da horrível verdade, que me enregelou até ao coração e expeliu o sangue em golfadas através do cérebro. Um animal enorme e determinado pousava em cima de mim e lambia-me a garganta. Receei efetuar o mínimo movimento, obrigado a permanecer estático por um instinto de prudência; porém, a fera pareceu aperceber se de que se registrara uma alteração em mim, pois levantou a cabeça. Por entre as pálpebras, descortinei em cima de mim os dois olhos enormes e flamejantes de um gigantesco lobo. Os dentes brancos e aguçados refulgiam na boca vermelha aberta, e senti o bafo quente e acre percorrer todo o corpo.

    Durante um período subsequente, não me recordei de mais nada. A seguir, tive a consciência de um grunhido rouco, que antecedeu um grito, renovado várias vezes. De repente, aparentemente muito longe, distingui um “Olá, Olá!”, proferido em uníssono por numerosas vozes. Ergui a cabeça cautelosamente e olhei na direção de onde os sons provinham; todavia, o cemitério bloqueava-me a visibilidade. O lobo continuava a uivar de um modo estranho e o clarão vermelho começou a mover se em torno do grupo de ciprestes, como se acompanhasse o som. À medida que as vozes se aproximavam, o lobo uivava com intensidade crescente. Entretanto, eu receava produzir o mínimo sinal de vida. O clarão vermelho acercava-se cada vez mais, por cima da mortalha branca que se estendia à minha volta, na escuridão: De súbito, surgiu de trás das árvores uma força de cavaleiros munidos de archotes. O lobo levantou-se do meu peito e correu para o cemitério. Vi um dos cavaleiros (soldados, a avaliar pelos bonés e longos capotes militares) erguer a espingarda e fazer pontaria. Um companheiro desviou-lhe o braço e ouvi a bala silvar sobre a minha cabeça. Era evidente que confundira o meu corpo com o do lobo. Outro visou o animal que se afastava e seguiu-se um estampido. Por fim, os soldados avançaram a galope, uns na minha direção e outros no encalço do lobo, que desaparecera entre os ciprestes carregados de neve.

    Enquanto se aproximavam, tentei mover-me, mas achava-me impotente, conquanto pudesse ouvir e ver tudo o que se passava à minha volta. Dois ou três soldados saltaram das montadas e ajoelharam junto de mim. Um ergueu-me a cabeça e pousou a mão no meu coração.

    — Boas notícias, camaradas! Exclamou.

    — O coração ainda bate!

    Em seguida, senti aguardente pela garganta, revigorou-me e consegui abrir os olhos por completo e observar o que me rodeava. Luzes e sombras moviam-se por entre as árvores e ouvi homens chamarem-se uns aos outros. Reuniram-se soltando gritos de pavor, e as luzes intensificaram-se, enquanto alguns emergiam do cemitério, agitados, como possessos. Quando os da frente se acercaram de nós, os que tinham ficado comigo perguntaram com ansiedade:

    — Então, encontraram-no?

    A resposta não se fez esperar:

    — Não! Não! Vamo-nos daqui, depressa… depressa! Não é lugar para ficar muito tempo, e logo nesta noite!

    — Que era? Constituía a pergunta geral, formulada em toda a gama de inflexões.

    A resposta registrou-se em tons variados, todos indefinidos, como se os homens fossem impelidos a falar por um impulso comum e, ao mesmo tempo, restringidos por um não menos comum medo de dar forma aos seus pensamentos.

    — Sim… era!… Balbuciou um, cuja presença de espírito ficara abalada por uns momentos.

    — Um lobo… e ao mesmo tempo não era um lobo! Aventurou outro, em voz trêmula.

    — Não adianta persegui-lo sem a bala sagrada, observou um terceiro, em voz mais normal.

    — Bem feito, por virmos esta noite! Podemos limpar as mãos à parede! Eram as recriminações de um quarto.

    — Havia sangue no mármore partido, disse outro, após uma pausa: O raio nunca produziu aquilo ali. E quanto a ele… está salvo? Reparem na garganta! Vejam, camaradas, o lobo deitou-se-lhe em cima e manteve o sangue quente.

    O oficial examinou-me a garganta e declarou:

    — Encontra-se bem. A pele não foi perfurada. Que significará tudo isto? Nunca o encontraríamos, se o lobo não uivasse.

    — Que foi feito dele? Perguntou o homem que me amparava à cabeça e parecia o menos aterrorizado do grupo, pois tinha as mãos firmes e o corpo não lhe tremia. Na manga do uniforme, tinha os galões de segundo tenente.

    — Recolheu à casa, respondeu um indivíduo de rosto pálido, que estremecia de medo, enquanto olhava em volta receosamente. Há aqui muitas sepulturas onde se pode deitar Vamos, camaradas, depressa! Abandonemos este local amaldiçoado.

    O oficial ajudou-me a sentar e proferiu uma ordem, após o que vários homens me transferiram para cima do cavalo. Ele instalou-se na sela atrás de mim, rodeou-me a cintura com o braço, mandou avançar e, deixando os ciprestes para trás, afastamo-nos rapidamente, em formação militar.

    A minha língua continuava a negar se a cumprir as suas funções, pelo que permanecia silencioso. Suponho que adormeci, pois aquilo de que me recordo a seguir é levantar me, amparado por um soldado de cada lado. Era quase dia claro e; a norte, via-se refletida uma faixa de raios solares, como um rasto de sangue, sobre a paisagem nevada. O oficial recomendava aos seus homens que não divulgassem uma única sílaba do que tinham visto, à parte o fato de haverem encontrado um desconhecido inglês, guardado por um cão enorme.

    — Cão! Aquilo não era nenhum cão! Protestou o homem que deixava transparecer um medo profundo.

    — Ainda sei reconhecer um lobo.

    — Já disse que era um cão, volveu o oficial, calmamente.

    — Qual cão! Volveu o outro, com uma inflexão de ironia. Era evidente que a sua coragem renascia com o sol e, apontando para mim, acrescentou: Repare na garganta dele. Isto é obra de um cão?

    Levei a mão ao local mencionado; num gesto instintivo, e emiti uma exclamação de dor. Os outros acudiram para ver o que era, alguns inclinados das selas, e tornou a ouvir se a voz calma do jovem oficial:

    — Um cão, como eu disse. Se afirmássemos outra coisa, riam-se de nós.

    Colocaram-me, então, na sela com um soldado, seguimos até aos subúrbios de Munique, onde encontramos uma carruagem, para a qual me transferiram, e fui conduzido ao hotel Quatre Saisons, acompanhado pelo segundo tenente, enquanto um soldado nos seguia com a sua montada e os restantes regressavam ao quartel.

    Quando chegamos, Herr Delbrizck desceu a escada tão apressadamente ao meu encontro, que era óbvio que assistira à nossa aproximação. Pegando-me em ambas as mãos, levou-me solicitamente para dentro. O oficial saudou-me, e voltava-se para sair quando me apercebi da sua intenção e insisti em que subisse aos meus aposentos.

    Diante de um copo de vinho regional, agradeci-lhe calorosamente e aos subordinados por terem-me salvo.

    Limitou-se a replicar que cumprira simplesmente o seu dever, e Herr Delbriick tomara as providências necessárias para manifestar gratidão aos seus homens. Ante as ambíguas palavras, o maitre d’hotel sorriu, enquanto o segundo-tenente invocava assuntos de serviço urgentes e se retirava.

    — Mas como se explica que os soldados se lembrassem de me procurar, Herr Delbrizck? Perguntei.

    Encolheu os ombros, como que em depreciação do ato que cometera, e replicou:

    — Tive a boa sorte de obter autorização do comandante do regimento em que prestei serviço para procurar voluntários.

    — Como soube, porém, que me perdi?

    — O cocheiro apareceu com o que restava da carruagem, parcialmente destruída quando os cavalos se espantaram e fugiram.

    — Não acredito que enviasse uma equipe de busca só por esse motivo.

    — Decerto que não! No entanto, antes de ele aparecer, recebi este telegrama do boiardo de quem é convidado.

    — E extraiu da algibeira um retângulo de papel que me entregou.

    Era do seguinte teor:

    “Bistrize,

    Tenha cautela com o meu convidado, a sua segurança é-me extremamente valiosa. Se Ihe suceder alguma coisa ou desaparecer, não se poupe a esforços para o encontrar e garantir o seu bem-estar. É inglês e, por conseguinte, intrépido. Surgem, por vezes, perigos na neve: os lobos e a noite… Não perca um momento em atuar se suspeitar de que Ihe ocorreu algo de desagradável. Asseguro o seu zelo com a minha fortuna.

    DRÁCULA”

    Conservei o telegrama na mão, enquanto o quarto parecia oscilar à minha volta, e se o solícito maitre do hotel não me segurasse, creio que teria caído. Havia algo de tão estranho no meio de tudo aquilo, de tão sinistro e impossível de conceber, que me gerava uma sensação de ser, de um modo impreciso, joguete de forças opostas, cuja mera e vaga ideia bastava para me paralisar. Achava-me na verdade sob alguma forma de proteção misteriosa. De um país distante, chegara no instante oportuno uma mensagem que me arrancara do perigo do sono na neve e das goelas do lobo.

    Notas:


    • Walpurgisnacht: Expressão do idioma Alemão que significa Noite de Santa Valburga.  Essa é uma festa tradicional cristã, celebrada na noite de 30 de Abril. Suas origens remontam as crenças pagãs que aos poucos foram se mesclando com as tradições da igreja cristã. Hoje em dia é celebrada por comunidades cristãs e não cristãs, em diversos países do norte da Europa.


    Na maioria dos países esta festividade é celebrada em honra de Santa Valburga, abadessa de Heidenheim na Baviera, nascida no Século VIII, Sendo considerada protetora contra a raiva e as tempestades pelos fiéis. 

    Durante os festejos é costume realizar danças e típicas e montar grandes fogueiras com a finalidade de afastar os espíritos malignos e almas penadas, os quais segundo a crença popular, vagueiam nesta noite por entre os vivos e nessa noite bruxas e demônios celebram juntos sem qualquer impedimento.


    • O hóspede de Drácula Faz parte de uma Coletânea de histórias curtas escritas por Bram Stoker, publicada pela primeira vez dois anos após sua morte em 1914. Junto desse conto estão outros como: “A Casa do Juiz” e “A Pele Vermelha”.


    O Hóspede de Drácula é considerado por muitos como o primeiro capítulo do livro Drácula de Bram Stoker, porém teria sido retirado do livro pelo autor. A alegação é de que essa parte teria sido eliminada da publicação original, por não ser seguir a forma epistolar de narrativa, encontrada no livro principal.

    Outros dizem que o conto é apenas um teste de Stoker, se aventurando no universo de terror fantástico e lendas europeias. 

    Esse assunto é cheio de controvérsias, uma vez que a própria viúva do escritor classificou esse conto como uma história suplementar, que acontece no mesmo mundo literário de Drácula, mas não fazendo parte diretamente de sua obra-prima. 

    • O lobo Esse animal é o antagonista da história, o que pode desapontar o leitor de primeira viagem que certamente esperava encontrar vampiros sedentos de sangue e castelos medievais. Porém vale lembrar que os lobos são fortes personagens de várias lendas que permeiam toda a Europa. 

    As lendas dos lobisomens são originárias da Grécia, que vinham com um forte teor mitológico sendo tido como um castigo dos deuses. Com o tempo o mito acabou migrando para o restante dos países europeus e sofrendo mudanças. 

    Em Drácula de Bram Stoker, vemos que os lobos são servos dos mortos-vivos, seguindo as ordens para atacar os prisioneiros que tentam fugir do castelo.


  • Conto: A dama pálida (Por Alexandre Dumas)

    Capitulo I


    SOU POLONESA, nascida em Sandomir, vale dizer, em um país onde as lendas se tornam artigos de fé, onde acreditam nas tradições de família mais que no Evangelho. Não há castelo entre nós que não tenha seu espectro, nenhuma cabana que não tenha seu gênio familiar. Na casa do rico como na do pobre, no castelo como na cabana, reconhece-se o princípio amigo e o princípio inimigo. 


    Às vezes estes dois princípios entram em luta e se combatem. Então se escutam ruídos tão misteriosos nos corredores, rugidos tão horrendos nas antigas torres, sacudidas tão formidáveis nas muralhas, que os habitantes fogem da cabana como do castelo, e aldeãos e nobres correm à igreja em procura da cruz bendita ou das santas relíquias, únicos resguardos contra os demônios que nos atormentam. Mas outros dois princípios mais terríveis ainda, mais furiosos e implacáveis, encontrem-se ali enfrentados: a tirania e a liberdade. 


    O ano 1825 viu empenhar-se entre a Rússia e Polônia uma dessas lutas que esgotam todo o sangue de um povo, como freqüentemente se esgota o sangue de uma família inteira. Meu pai e meus dois irmãos, rebelados contra o novo czar, tinham ido se alinhar sob a bandeira da independência polonesa, prostrada sempre, e sempre renascida. Um dia soube que meu irmão menor tinha sido morto; outro dia me anunciaram que meu irmão maior estava mortalmente ferido; e por fim, depois de uma jornada angustiante, durante a qual eu tinha escutado aterrorizada o trovejar sempre mais próximo do canhão, vi chegar meu pai com uma centena de soldados a cavalo, resíduo de três mil homens que ele comandava. 

    Tinha vindo encerrar-se em nosso castelo com a intenção de sepultar-se sob suas ruínas. Enquanto não temia nada por ele, tremia por mim. E em efeito, para ele era o único risco a morte, porque estava muito seguro de não cair vivo em mãos do inimigo; mas me ameaçava a escravidão, a desonra, a vergonha. 


    Meu pai escolheu dez homens entre os cem que ficaram, chamou o intendente, fez-lhe entrega de quanto dinheiro e objetos preciosos possuíamos. E, recordando que na ocasião da segunda divisão da Polônia, minha mãe quase menina ainda, tinha encontrado um asilo inacessível no monastério de Sabastru, situado em meio dos Montes Cárpatos, ordenou-lhe me conduzir para aquele monastério que abriria à filha, como fizera à mãe, suas hospitaleiras portas. 

    A despeito do grande amor que meu pai alimentava por mim, nossas saudações não foram longas. Segundo todas as probabilidades, os russos deviam chegar no dia seguinte à vista do castelo, por isso não havia tempo a perder. Pus depressa um vestido de amazona, com o que estava acostumada a acompanhar meus irmãos na caça. Trouxeram-me selado o melhor cavalo do estábulo; meu pai me pôs nos bolsos do casaco suas próprias pistolas, obra das fábricas de Tula, abraçou-me e deu a ordem de partida. 


    Durante aquela noite e o dia seguinte percorremos vinte léguas, costeando um desses rios sem nome que desembocam no Vístula. Esta primeira etapa nos havia tirado o perigo de cair nas mãos dos russos. O sol se dirigia ao tramonto, quando vimos brilhar os nevados topos dos Cárpatos. 

    Por volta da noite do dia seguinte chegamos a seu pé: ao fim, na manhã do terceiro dia, começamos a avançar por uma de suas gargantas. 

    Nossos Cárpatos não se parecem com os férteis Montes do ocidente de vocês. Tudo quanto a natureza tem de extraordinário e grandioso se apresenta ali em toda sua majestade. Suas tempestuosas cúpulas se perdem nas nuvens cobertas de eternas neves; seus imensos bosques de abetos se inclinam sobre o espelho de lagos que por sua vastidão assemelham-se a mares; e daqueles lagos, jamais barco algum sulcou suas ondas, jamais redes de pescadores turvaram seu cristal profundo como o azul do céu; apenas, de tempo em tempo, ressoa ali a voz humana, fazendo escutar um canto moldavo ao que respondem os gritos dos animais selvagens e cantos e gritos vão desvelar algum solitário eco, atônito de que um ruído qualquer lhe tenha revelado sua própria existência. 


    Por milhas e milhas se viaja ali sob a sombria abóbada dos bosques entrecruzados das inesperadas maravilhas que a solidão descobre a cada instante, e que fazem passar nosso ânimo do estupor à admiração. Aí sempre há perigo, e o perigo se compõe de mil riscos diversos; mas não se tem tempo para atemorizar-se, tão sublime são aqueles riscos. Aqui há alguma cascata a que deu origem imprevistamente a liquefação dos gelos e que, saltando de rocha em rocha, invade de repente o estreito atalho que se percorre, esboçado pelo passo das feras em fuga e do caçador que as persegue; ali há árvores minadas pelo tempo, que se desprendem do chão e caem com horrível estrépito semelhante ao de um terremoto. Em outra parte, enfim, são os furacões que nos envolvem de nuvens, em meio das quais se vê cintilar, estender-se e contorcer-se o relâmpago, como serpente inflamada. Logo, depois de ter superado aquelas partes agrestes, aqueles bosques primitivos, depois de lhes encontrar em meio de gigantescas montanhas e bosques intermináveis, vemo-nos ante imensos páramos, como mares que têm também suas ondas e suas tempestades, áridas e gibosas estepes, onde a vista se perde em um horizonte sem limite. Então não é terror o que experimentamos, a não ser uma triste e profunda melancolia, da qual nada terá que possa nos distrair, porque o aspecto da região, por longe que se alargue nosso olhar, é sempre o mesmo. 


    Acendamos ou descendemos cem vezes iguais barrancos, procurando em vão um caminho esboçado: ao nos achar tão perdidos naquele isolamento, em meio de desertos, acreditam-nos sozinhos na natureza, e nossa melancolia se converte em desolação. Parece-nos inútil caminhar mais adiante, porque não vemos uma meta para nossos passos; não encontramos uma aldeia, um castelo, nenhuma cabana, nada de vestígios de humana morada. Só de quando em quando, como uma tristeza maior naquela região melancólica, um pequeno lago, sem arbustos, dormindo no fundo de uma ravina, quase outro mar Morto, fecha-nos o caminho com suas verdes águas, sobre as quais se levantam ao nos aproximarmos algumas aves aquáticas de gritos prolongados e discordantes. 


    Rodeamos esse lago, transpomos a colina que está diante de nós, descemos a outro vale, superamos outra colina, e assim sucessivamente, até que tenhamos chegado aos começos da cadeia dos Montes que vão sempre diminuindo mais. Mas se ao concluir essa cadeia nos voltamos por volta do meio-dia, a região recupera um caráter majestoso, nos apresenta uma natureza mais grandiosa e descobriremos outra cadeia de montanhas mais altas, de forma mais pitoresca, de mais rica vegetação, toda coberta de espessos bosques, toda sulcada de arroios: com a sombra e com a água renasce também a vida naquela comarca; escuta-se já o tanger do sino de uma ermida, e sobre o flanco daquela montanha se vê serpentear uma caravana. Por fim, aos últimos raios do sol poente se percebem de longe, como bando de pássaros brancos, apoiando-as umas nas outras, as casas de uma aldeia, que parecem se agrupar em certo modo para defender-se de um assalto noturno; pois com a vida tornou o perigo: aqui não se lutará com ursos e lobos, como naquelas altas montanhas, mas com hordas de bandidos moldavos. 


    Enquanto isso nos aproximávamos de nossa meta. Dez dias de caminho tinha transcorrido sem nenhum incidente. Já distinguimos a cúpula do monte Pion, que se eleva sobre toda aquela família de gigantes, e sobre cuja vertente meridional está situado o convento Sabastru ao qual eu me transladava. 


    Três dias mais, e nós achávamos ao término de nossa viagem. Eram os últimos dias de julho. Tínhamos tido uma jornada muito cálida, e por volta das quatro respiramos com ansioso deleite as primeiras brisas do entardecer. Tínhamos deixado atrás, há pouco, as torres arruinadas do Niantzo. Baixamos a uma planície que começamos a ver através de uma fenda da montanha. 

    Do lugar onde estávamos, já podíamos seguir com a vista o curso do Bistriz, de ribeiras esmaltadas de verdes vinhedos e de altas campânulas de flores brancas. 


    Beiramos um abismo em cujo fundo corria o rio, que naquele lugar tinha apenas forma de corrente, e nossas cavalgaduras tinham escasso espaço para caminhar duas de frente. Precedia-nos um guia, que, inclinado de flanco sobre a garupa de seu cavalo, cantava uma canção ignorante, cujas palavras seguia com singular atenção. O cantor era também ao mesmo tempo o poeta. Precisaria ser um daqueles montanheses para poder nos expressar a melancolia de sua canção com sua selvagem tristeza, com toda sua profunda simplicidade. As palavras da canção eram pouco mais ou menos as seguintes: “Vejam ali esse cadáver no pântano de Stavila, onde correu tanto sangue de guerreiros! 


    Não é um filho da Iliria, não; é um feroz bandido, que depois de ter enganado a gentil María, roubou, exterminou, acendeu. 


    “Rápida como o relâmpago uma bala veio atravessar o coração do bandido; um yatagán lhe trancou o pescoço. Mas, oh mistério, depois de três dias, seu 

    sangue, morno ainda, rega a terra sob o pinheiro tétrico e solitário e enegrece o pálido Ovigan. 

    “Seus olhos turcos brilham sempre; fujamos, fujamos: ai de quem passa pelo pântano dele: é um vampiro! 


    O feroz lobo se afasta do impuro cadáver, e o fúnebre abutre foge ao monte de calva fronte.” 

    De repente se ouviu a detonação de uma arma de fogo e o assobiar de uma bala. A canção ficou interrompida, e o guia, ferido de morte, precipitou-se ao abismo, enquanto seu cavalo se detinha tremendo e baixando a inteligente testa para o fundo do precipício, onde desapareceu seu dono. Ao mesmo tempo, levantou-se pelos ares um grito estridente, e sobre os flancos da montanha vimos aparecer uma trintena de bandidos: estávamos completamente rodeados. 

    Cada um dos nossos empunhou uma arma, e bem que tomados improvisadamente, meus acompanhantes, como que eram velhos soldados acostumados ao fogo, não se deixaram intimidar, e ficaram em guarda. 


    Eu mesma, dando o exemplo, empunhei uma pistola, e conhecendo bem quão desvantajosa era nossa situação, gritei: – Adiante! 

    E dava com a espora em meu cavalo, que se lançou a toda carreira para a planície. Mas tínhamos que nos ver com montanheses que saltavam de rocha em rocha como verdadeiros demônios dos abismos, que até saltando, faziam fogo, mantendo nossos flancos a posição tomada. Então, nosso plano tinha sido previsto. Em um ponto onde o caminho se alargava e a montanha se aplainava um pouco, aguardava um jovem à cabeça de dez homens a cavalo. Quando nos viram, puseram ao galope suas montarias, e nos assaltaram de frente, enquanto aqueles que nos perseguiam baixavam saltando em grande quantidade, e barraram de tal modo nossa retirada, rodeando-nos por toda parte. 


    A situação era grave; entretanto, acostumada desde menina às cenas de guerra, pude apreciá-la sem que me escapasse uma só circunstância. Todos aqueles homens, vestidos de peles de carneiro, levavam imensos chapéus redondos, coroados de flores naturais ao modo dos húngaros. Cada um deles tinha um comprido fuzil turco, que agitavam vivamente logo depois de ter disparado, dando gritos selvagens, e na cintura levava um sabre curvo e duas pistolas. Seu chefe era um jovem de apenas vinte e dois anos, de tez pálida, de olhos negros e cabelos encrespados que lhe caíam sobre as costas. Vestia a casaca moldava guarnecida de pele e ajustada ao corpo por uma bandagem com listas de ouro e seda. Em sua mão resplandecia um sabre curvo, e em sua cintura reluziam quatro pistolas. 


    Durante a luta dava gritos roucos e inarticulados que pareciam não pertencer à fala humana, e entretanto eram uma eficaz expressão de seus desejos, pois a aqueles gritos obedeciam todos seus homens, ora deitava-se de barriga para baixo, para se esquivar a nossas descargas, ora levantando-se para disparar, fazendo cair aqueles de nós que ainda estavam de pé, matando os feridos, fazendo, enfim, da luta uma matança sangrenta. 


    Eu tinha visto cair um depois do outro dois terços de meus defensores. Quatro estavam ainda ilesos e se apertavam a meu redor, não pedindo uma graça que tinham a certeza de não conseguir, e pensando só em vender a vida o mais caro possível. 

    Então o jovem chefe deu um grito mais expressivo que os anteriores, estendendo a ponta de seu sabre para nós. Na verdade aquela ordem significava que devia rodear-se nosso último grupo com um cerco de fogo e nos fuzilar a todos juntos, pois de um golpe vimos nos apontar todos aqueles largos mosquetes. 


    Compreendi que tinha chegado a hora final. Elevei os olhos e as mãos ao céu, murmurando uma última prece, e aguardei a morte. Nesse instante vi, não descer mas precipitar-se de uma rocha para outra, um jovem que parou sobre uma pedra que dominava a cena, semelhante a uma estátua em um pedestal, e, estendendo a mão para o campo de batalha, pronunciou esta só palavra: – Basta! 

    Todos os olhos se voltaram para essa voz, e cada um pareceu obedecer ao novo amo. Só um bandido apontou de novo seu fuzil e fez o disparo. Um de nossos homens deu um grito: a bala lhe tinha quebrado o braço esquerdo. Voltou-se para lançar-se sobre o que lhe feriu, mas ainda não tinha dado quatro passos no seu cavalo, quando um relâmpago brilhou por cima de nós e o bandido rebelde caiu ferido por uma bala na cabeça… 


    Tantas e tão diversas emoções tinham acabado com minhas forças. Desmaiei. Quando recuperei os sentidos, achei-me deitada sobre a erva, com a cabeça apoiada nos joelhos de um homem, de quem via só a mão branca e coberta de anéis me rodeando o corpo, enquanto parava diante de mim, de braços cruzados e a espada sob a axila, o jovem chefe moldavo que dirigiu o assalto contra nós. 


    – Kostaki – dizia em francês e com gesto autoritário o que me sustentava – que seus homens se retirem imediatamente. Deixe aos meus cuidados esta jovem. 

    – Irmão, irmão – respondeu aquele a quem eram dirigidas tais palavras, e que parecia conter-se com esforço – cuidado para não cansar minha paciência. Eu te deixo o castelo, me deixe o bosque. No castelo você é o amo, mas aqui eu sou todo-poderoso. Aqui me bastaria uma só palavra para te obrigar a me obedecer. 

    – Kostaki, eu sou o mais velho. O que quer dizer que sou amo em todas partes, assim no bosque como no castelo, lá e aqui. Como em você, corre-me pelas veias o sangue dos Brankovan, sangue real que tem o hábito de mandar, e eu mando.

    – Mande seus servidores, Gregoriska, não em meus soldados.

    – Seus soldados são bandidos, Kostaki… bandidos que farei enforcar nas ameias de nossas torres se não me obedecerem imediatamente. 


    – Bem, tente lhes dar uma ordem, então. Senti então que quem me sustentava retirava seu joelho, e colocava suavemente minha cabeça sobre uma pedra. 

    Segui-o ansiosa com o olhar e pude examinar a aquele jovem que caiu, por assim dizê-lo, do céu em meio da luta, e que eu tinha visto, estando deprimida, enquanto aparecia na hora certa. 

    Era um jovem de vinte e quatro anos, alto e com dois grandes olhos azul-celeste e resplandecentes como o relâmpago, nos quais se lia uma extraordinária decisão e firmeza. Os longos cabelos loiros, indício da estirpe eslava, caíam-lhe sobre as costas como os do arcanjo Miguel, circundando duas faces coradas e frescas. Seus lábios realçados por um sorriso desdenhoso, deixavam ver uma fileira de pérolas. Vestia uma espécie de túnica de peludo negro, calções rodeados às pernas e botas bordadas. Na cabeça tinha um gorro ornado de uma pluma de águia, na cintura levava uma faca de caça, e ao ombro uma pequena carabina de dois canos, cuja precisão tinha aprendido a apreciar um dos bandidos. 

    Estendeu a mão, e com esse gesto imperioso pareceu impor-se até a seu irmão. Pronunciou algumas palavras em língua moldava, as quais pareceram causar profunda impressão sobre os bandidos. Então, falou na mesma língua o jovem chefe, e me pareceu que seu discurso estava cheio de ameaças e de imprecações. Diante daquele comprido e veemente discurso o irmão maior respondeu com uma só palavra. Os bandidos se submeteram: fez um gesto, e os bandidos se submeteram; fez um gesto, e os bandidos se reuniram detrás de nós. 


    – Bem! Seja, pois, Gregoriska – disse Kostaki voltando a falar em francês – Esta mulher não irá à caverna, mas não por isso será menos minha. Encontrei-a, é linda, conquistei-a eu e eu a quero para mim. 


    Assim dizendo, lançou-se para mim e me levantou entre seus braços. – Esta mulher será levada ao castelo e entregue a minha mãe, eu não a abandonarei – disse meu protetor. 

    -Meu cavalo! – gritou Kostaki em língua moldava. Vários bandidos se apressaram a obedecer, conduziram a seu senhor a cavalgadura pedida… 

    Gregoriska olhou em torno, agarrou as rédeas de um cavalo sem dono, e saltou à cadeira sem tocar os estribos. Kostaki, que me tinha ainda apertada entre seus braços, montou quase tão agilmente como seu irmão, e partiu a todo galope. O cavalo de Gregoriska pareceu ter recebido o mesmo impulso e foi ficar pego ao flanco e ao cangote do corcel de Kostaki. Estranho de ver-se eram aqueles dois cavalheiros que voavam o um junto ao outro, taciturnos, silenciosos, sem perder-se de vista um só instante, mesmo que aparentassem não olhar-se, e se entregavam por inteiro a suas montarias, cuja impetuosa carreira os levava através de bosques, rochas e precipícios. 


    Tinha a cabeça baixa, e isso me permitia ver os belos olhos de Gregoriska fixos em mim. Kostaki o advertiu, levantou-me a cabeça, e vi mais que seu tétrico olhar me devorando. Desci as pálpebras, mas em vão: através de seu véu, via ainda aquele olhar fulminante que me penetrava até as vísceras e me ferroava o coração. Então me aconteceu uma estranha alucinação. Parecia-me ser Leonora, da balada de Bürger, levada pelo cavaleiro fantasma, e quando senti que me fechavam, abri os olhos amedrontada, estava persuadida de ver ao redor meu só cruzes podres e tumbas abertas. Vi algo um pouco mais alegre, porém. Era o pátio interno de um castelo moldavo construído no século XIV. 


    Kostaki me deixou escorregar ao chão, descendo quase em seguida depois que eu; mas, por rápido que tivesse sido seu ato, Gregoriska lhe tinha precedido. Como disse, no castelo ele era o amo. Ao ver chegar os dois jovens e a estrangeira que levavam com eles, acudiram os servidores. Embora dividissem suas diligências entre Kostaki e Gregoriska, parecia claro que os maiores olhares, o respeito mais profundo eram para o segundo. 


    Aproximaram-se duas mulheres, Gregoriska lhes deu uma ordem em moldavo, e com a mão me indicou que as seguisse. O olhar que acompanhava aquele gesto era tão respeitoso que eu não vacilei em lhe obedecer. Cinco minutos depois me encontrava em um aposento que, mesmo que pudesse parecer nu e triste a uma pessoa mais sofisticada, era entretanto evidentemente o mais bonito do castelo. 

    Uma grande sala quadrada, com uma espécie de divã verde, assento de dia, leito de noite. Havia também ali cinco ou seis poltronas de carvalho, um imenso cofre, e em um ângulo, um trono semelhante a uma grande cadeira de couro. 


    Não terei que falar de cortinas nas janelas e no leito. Ao lado da escada que levava para ali, erguiam-se, dentro de nichos, três estátuas dos Brankovan de tamanho superior ao natural. Logo mais trouxeram nossas bagagens, entre as quais se encontravam também minhas malas. As mulheres me ofereceram seus serviços. Mas não obstante, reparando a desordem que o acontecido causou em mim, conservei minha roupa de amazona, a qual, mais que qualquer outra, acordava com o modo de vestir de minhas hóspedes. Logo que tinha feito as poucas mudanças necessárias em minhas roupas, quando ouvi bater levemente na porta. 

    – Entre – disse em francês, sendo esta língua para nós os poloneses, como sabem, quase uma segunda língua materna. 


    Gregoriska entrou.

    – Ah! Senhora, quanto me agrada que fale francês. – E eu também – respondi – estou contente de saber esta língua, porque pude, graças a isso, apreciar toda a generosidade de sua conduta comigo. Nessa língua me defendeu dos intuitos de seu irmão, e nessa língua lhe ofereço meu sincero agradecimento. 

    – Eu que lhe agradeço, senhora. Era coisa muito natural que me preocupasse com uma mulher que se encontrava em sua situação. Andava de caça pelos Montes quando chegaram a meu ouvido algumas detonações anormais e contínuas; compreendi que se tratava de um assalto a mão armada, e parti ao encontro do fogo, como dizemos nós. Graças a Deus, cheguei a tempo, mas seria talvez muito atrevido se lhe perguntasse, senhora, por qual motivo uma mulher de alta linhagem, como é você, viu-se reduzida a aventurar-se em nossos Montes? 

    – Sou polonesa – respondi -. Meus dois irmãos sucumbiram, não há muito, na guerra da Rússia. Meu pai, deixei enquanto se preparava a defender seu castelo, sem dúvida reuniu-se a meus irmãos, a esta hora, e eu, fugindo por ordem de meu pai de todos aqueles estragos, ia em busca de refúgio no monastério de Sabastru, onde minha mãe, em sua juventude e em circunstâncias semelhantes, tinha encontrado asilo seguro. 

    – É inimizade dos russos, tão melhor – disse o jovem-este título lhe será de poderosa ajuda no castelo, e nós necessitaremos de todas nossas forças para sustentar a luta que se prepara. Mas acima de tudo, senhora, porque já sei quem é, deve saber também quem somos: o nome dos Brankovan não lhe é desconhecido, certo, senhora? 


    Eu me inclinei. – Minha mãe é a última princesa deste nome, a última descendente do ilustre chefe mandado matar pelos Cantimir, os vis cortesãos de Pedro I. Casou em primeiras núpcias com meu pai, Serban Waivady, príncipe também, mas de estirpe menos ilustre. Meu pai tinha sido educado em Viena, e ali pôde apreciar as vantagens da civilização. Decidiu fazer de mim uma européia. Partimos para a França, Itália, Espanha e Alemanha. Minha mãe – não é da conta de um filho, sei, lhe narrar isso, mas, já que por nossa salvação é necessário que nos conheçamos bem, reconhecerá justos os motivos desta revelação – minha mãe, digo, que durante as primeiras viagens de meu pai, enquanto era eu ainda menino, tinha tido um relacionamento adúltero com um chefe de parciais (que com tal nome, adicionou sorrindo Gregoriska, chamam-se neste país aos homens por quem se foi agredido), certo conde Giordaki Koproli. Era um médico grego e meio moldavo. Ela escreveu a meu pai lhe confessando tudo e lhe pedindo o divórcio, apoiando sua demanda em que não queria ela, uma Brankovan, continuar sendo por mais tempo mulher de um homem que se tornava dia a dia mais estrangeiro em sua pátria. 


    “Ah! Meu pai não teve necessidade de dar seu consentimento a essa petição, que poderá parecer estranha, mas entre nós é coisa muito natural. Ele tinha morrido de um aneurisma que desde muito tempo o atormentava, e eu recebi a carta de minha mãe. A mim agora não ficava outra coisa senão fazer votos sinceros pela felicidade de minha mãe, e lhe escrevi uma carta, em que lhe comunicava estes meus votos junto com a notícia de sua viuvez. Naquela carta lhe pedia também permissão para poder continuar minhas viagens, que foi concedido. Tinha eu a firme intenção de me estabelecer na França ou Alemanha para não me encontrar cara a cara com um homem que me aborrecia, e que não podia amar, quero dizer o marido de minha mãe; quando vim aqui que, de improviso, devia saber que o conde Giordaki Koproli tinha sido assassinado, segundo diziam, pelos velhos cossacos de meu pai. Amava eu muito a minha mãe para não me apressar a retornar à pátria, compreendia seu isolamento e a necessidade que devia ter de encontrar-se com ela em tais circunstâncias as pessoas que podiam lhe ser queridas. 


    “Mesmo que ela nunca fosse muito carinhosa comigo, era seu filho. Uma manhã cheguei inesperadamente ao castelo de meus pais. Ali encontrei um jovem, a quem a princípio tomei por um estrangeiro, mas logo soube que era meu irmão. Era Kostaki, o filho do adultério, legitimado por um segundo matrimônio; Kostaki, a indomável criatura que viu, para quem são leis só suas paixões, que nada tem por sagrado aqui embaixo fora sua mãe, a quem obedece como o tigre obedece ao braço que o domou, mas rugindo por sempre, na vaga esperança de poder me devorar um dia. No interior do castelo, no lar dos Brakovan e dos Waivady, eu sou ainda o amo. Mas fora deste recinto, lá fora, nos campos, ele se converte no selvagem filho dos bosques e dos Montes, que quer dobrar tudo sob sua férrea vontade. Como hoje ele e seus homens fizeram para ceder, não sei; talvez por antigo costume, ou por um resto de respeito que me têm. Mas não queria arriscar outra prova. Permaneça aqui, não saia deste quarto, do pátio, do castelo em suma, e respondo por tudo; se der um passo fora do castelo, não posso lhe prometer outra coisa que me fazer matar para a defender. 


    – Não poderei então – disse eu – segundo o desejo de meu pai, continuar a viagem para o convento de Sabastru? 

    – Se insistir, eu te acompanharei, mas ficarei na metade do caminho, e você… você certamente não alcançará a meta de sua viagem. 

    – Mas o que fazer, então? – Fique aqui, aguarde, observe, reflita e aproveite as circunstâncias. Suponho ter se cansado, e que só seu valor poderá tirá-la do apuro, só sua calma salvá-la. Minha mãe, a despeito da preferência que concede a Kostaki, filho de seu amor, é boa e generosa. Por outra parte, é uma Brankovan, vale dizer uma verdadeira princesa. Vai vê-la: ela te defenderá das brutais investidas de Kostaki. Ponha-se sob o amparo dela, é uma mulher gentil. E em realidade (adicionou ele com expressão indefinível), quem poderia olhá-la e não gostar da senhorita? Agora, venha à sala de jantar, onde minha mãe a espera. Não demonstre desagrado nem desconfiança: fale polonês, aqui ninguém conhece esta língua. Eu traduzirei a minha mãe suas palavras, e fique tranqüila, que só direi aquilo que seja conveniente dizer. Sobretudo, nenhuma palavra do que lhe revelei, ninguém deve suspeitar que estamos de acordo. Você não sabe ainda de quanta astúcia e dissimulação é capaz o mais sincero de entre nós. Venha. 

    Segui-o pela escada iluminada de tochas de resina ardendo, postas dentro de mãos de ferro que se sobressaiam do muro. 


    Era evidente que aquela insólita iluminação tinha sido disposta para mim. Chegamos ao salão. Apenas Gregoriska abriu a porta daquela sala, e pronunciado na soleira uma palavra em língua moldava, que depois soube significava “a estrangeira”, veio a nosso encontro uma mulher de alta estatura. Era a princesa Brankovan. Tinha cabelos brancos entrelaçados ao redor da cabeça, a qual estava coberta de um gorro de zibelina, ornado de um penacho, signo de sua origem principesca. Vestia uma espécie de túnica de brocado, o peito semeado de pedras preciosas, sobrepostas a uma larga pala de estofo turco, guarnecida de pele igual a do gorro. Tinha na mão um rosário de contas de âmbar, que fazia correr rapidamente entre os dedos. Junto a ela estava Kostaki, vestido com o esplêndido e majestoso traje magiar, no qual me pareceu ainda mais estranho. Seu traje estava composto de uma sobreveste de veludo negro, de larga mangas, que lhe caía até debaixo do joelho, calções de cachemira vermelha, e os longos cabelos de cor negra-azulada lhe caíam sobre o pescoço nu, rodeado somente pela orla branca de uma fina camisa de seda. Saudou-me rudemente, e pronunciou em moldavo algumas palavras para mim ininteligíveis. 


    – Pode falar em francês, irmão – disse Gregoriska – a senhorita é polonesa e compreende esta língua. 


    Então Kostaki disse em francês algumas palavras quase tão incompreensíveis para mim como as que pronunciou em moldavo, mas a mãe, estendendo o braço, interrompeu aos dois irmãos. 

    Parecia claro que intimava os seus filhos, para que esperassem que só ela me recebesse. Começou então em língua moldava um discurso de cumprimento, ao qual a mobilidade de suas feições dava um sentido fácil de explicar-se. Indicou-me a mesa, ofereceu-me uma cadeira perto dela, apontou com um gesto a casa toda, como dizendo que estava a minha disposição, e, sentando-se antes dos outros com benévola dignidade, fez o sinal da cruz e pronunciou uma prece. Então cada um ocupou seu lugar próprio, estabelecido pela etiqueta, Gregoriska perto de mim. Como estrangeira, eu tinha determinado que Kostaki tocasse o posto de honra junto a sua mãe Smeranda. Assim se chamava a condessa. 


    Também Gregoriska tinha mudado de roupa. Usava igualmente a túnica magiar e os calções de cachemira, mas aquela de cor granada e estes eram turcos. Tinha no pescoço uma esplêndida condecoração pendurada, o nisciam do sultão Mahmud. 

    Os outros comensais da casa jantavam na mesma mesa, cada um no lugar que lhe correspondia segundo o grau que ocupava entre os amigos ou os servidores. O jantar foi triste: Kostaki não me dirigiu nunca a palavra, embora seu irmão tivesse sempre a atenção de me falar em francês. A mãe me oferecia de tudo com suas próprias mãos com esse gesto solene que lhe era natural; Gregoriska havia dito a verdade: era uma verdadeira princesa. 

    Logo depois do jantar, Gregoriska se aproximou de sua mãe, e lhe explicou em língua moldava o desejo que eu devia ter de estar sozinha, e quão necessário me seria o repouso depois das emoções daquela jornada. Smeranda fez um gesto de aprovação, estendeu-me a mão, beijou-me na fronte, como se eu fosse sua filha, e me desejou boa noite. 


    Gregoriska não se enganou: eu ansiava ardentemente aquele instante de solidão. Agradeci por isso à princesa, quem me conduziu até a porta, onde me esperavam as duas mulheres que antes já me acompanharam em meu quarto. Depois de dar boa-noite à mãe e aos dois filhos, voltei para meu aposento, de onde saíra uma hora antes. 


    O sofá estava transformado em leito. Outras mudanças não havia. Agradeci às mulheres: fiz-lhes compreender que me despiria sozinha, e elas saíram em seguida com mil testemunhos de respeito que queriam significar ter ordens de me obedecer em tudo e por tudo. 


    Fiquei sozinha naquela imensa câmara, que minha vela podia iluminar apenas em parte. Era um singular jogo de luzes, uma espécie de luta entre o resplendor trêmulo de meu círio e os raios da lua que passavam através da janela sem cortinados. Além da porta pela que entrei, e que caía sobre a escada, haviam outras duas na câmara, mas seus grossos ferrolhos, que se fechavam por dentro, bastavam para me tranqüilizar. Olhei a porta de entrada; também ela tinha meios de defesa. Abri a janela: dava sobre um abismo. Compreendi que Gregoriska tinha escolhido aquela câmara calculadamente. De volta por fim a meu sofá, encontrei sobre uma mesinha posta junto à cabeceira um cartão dobrado. Abri-a e li em polonês: “Durma tranqüila: nada tem que temer enquanto permaneça no interior do castelo. Siga o meu conselho”, e como o cansaço vencia sobre as preocupações que me deixava desanimada, deitei-me e em seguida dormi. 


    Desde aquele momento ficava fixada minha permanência no castelo e tinha princípio o drama que vou lhes contar. 


    Os dois irmãos se apaixonaram por mim, cada um segundo sua índole. Kostaki me confessou de improviso, no dia seguinte, que me amava, e declarou que seria dele e não de outro, e que me mataria antes que eu cedesse a quem quer que fosse. Gregoriska não me disse nada, mas se mostrou cheio de amor e de considerações comigo. Para me agradar pôs em prática todos os meios de sua refinada educação, todas as lembranças de uma juventude transcorrida na mais nobres Cortes da Europa. Ah! Não era coisa tão difícil pois já o primeiro som de sua voz me tinha acariciado a alma, e já no seu primeiro olhar me tinha serenado o coração. Ao cabo de três meses, Kostaki me tinha repetido cem vezes que me amava, e eu o odiava. Gregoriska ainda não me havia dito uma palavra de amor e eu sentia que quando ele desejasse, eu seria toda sua. 


    Kostaki tinha renunciado a suas incursões. Encerrado sempre no castelo, tinha cedido momentaneamente o mando a um sub-tenente, quem de quando em quando vinha a lhe pedir ordens, e em seguida desaparecia. Também Smeranda tinha concebido por mim uma amizade apaixonada, cujas expressões me causavam temor. Protegia ela visivelmente a Kostaki, e parecia ciumenta de mim mais ainda do que ele. Mas como não falava polonês nem francês, e eu não compreendia o moldavo, ela não tinha modo de insistir diante mim em favor de seu filho predileto. Havia entretanto aprendido a dizer em francês umas palavras que repetia sempre, quando pousava seus lábios em minha fronte: – Kostaki ama Edvige!… 


    Um dia recebi uma notícia horrível que encheu minha desventura. Os quatro homens sobreviventes do combate tinham sido postos em liberdade e retornado a Polônia, prometendo que um deles, antes que passassem três meses, voltaria para me dar notícias de meu pai. Em efeito, uma manhã se apresentou de novo um deles. Nosso castelo tinha sido tomado, incendiado, destruído, e meu pai fora morto defendendo-o. Agora, estava sozinha no mundo. Kostaki redobrou suas insinuações, e Smeranda suas ternuras; mas desta vez aduzi como pretexto meu duelo pela morte de meu pai. Kostaki insistiu dizendo que quanto mais só me encontrava, tão mais necessidade tinha de apoio, e sua mãe insistiu mais que ele. 


    Gregoriska me tinha falado do poder que os moldavos têm sobre si mesmos, quando não querem que outros leiam em seu coração. Ele era um vivo exemplo disso. Estava muito seguro de seu amor, e entretanto, se alguém me tivesse perguntado em que prova se fundava tal certeza, me teria sido impossível dizê-lo: ninguém no castelo tinha visto nunca que sua mão tocasse a minha, ou que seus olhos procurassem meus. Só o ciúmes podiam tornar claro a Kostaki a rivalidade do irmão, como só o amor que eu alimentava por Gregoriska podia me fazer claro seu amor. Entretanto, confesso-o, inquietava-me muito aquele poder de Gregoriska sobre si mesmo. Eu tinha fé nele, mas não bastava; precisava ser convencida… quando uma noite, de volta em meu quarto, ouvi bater levemente em uma das duas portas que se fechavam por dentro. Pelo modo de bater adivinhei que era uma chamada amiga. Aproximei-me, perguntando quem estava ali. 


    – Gregoriska – respondeu uma voz, cujo acento não podia me enganar. – O que querem de mim? – perguntei-lhe trêmula. 

    – Se tiver fé em mim – disse Gregoriska – se acredita num homem de honra, permite-me uma pergunta? 

    – Qual? – Apague a luz como se te tivesse deitado, e daqui em meia hora, me abra esta porta. 

    – Volte dentro de meia hora… – foi minha única resposta. Apaguei a luz e aguardei. O coração me palpitava com violência, pois compreendia que se tratava de um fato importante. Transcorreu a meia hora: ouvi bater mais levemente ainda que a primeira vez. 

    Durante o intervalo tinha aberto os ferrolhos e abri a porta. Gregoriska entrou, e sem que me dissesse, fechei a porta atrás dele e joguei os ferrolhos. Ele permaneceu um instante mudo e imóvel, me impondo silêncio com o gesto. Logo, quando esteve seguro de que nenhum perigo nos ameaçava no momento, levou-me ao centro da vasta câmara, e sentindo, por meu tremor, que não teria podido me sustentar de pé, buscou-me uma cadeira. Sentei-me ou melhor, me deixei cair sobre o assento. 


    – Meu Deus! – disse-lhe – o que há de novo, ou por que tantas precauções? 

    – Porque minha vida, que não contaria para nada, e acaso também a sua, dependem da conversação que teremos. 

    Amedrontada, aferrei-lhe uma mão. Ele a levou aos lábios, me olhando como se pedisse desculpas por tanta audácia. Desci eu os olhos, era um tácito consentimento. 

    – Eu te amo – disse me com aquela voz melodiosa, como um canto – E você? Também me ama? 

    – Sim -respondi-lhe. – E consentiria em ser minha mulher? Levou a mão à frente com profunda expressão de felicidade. – Sim. – Então, não recusará me seguir? – Seguirei com você para qualquer lugar. – Pois compreenderá bem que não podemos ser felizes a não ser fugindo deste lugar. 

    – Claro que sim! Vamos fugir… – exclamei. – Silêncio – disse ele estremecendo. – Silêncio! – Tem razão. E me aproximei, assim, trêmula. – Escute o que tenho feito – continuou Gregoriska – escute porque estive tanto tempo sem lhe confessar que a amava. Queria, quando estivesse seguro de seu amor, que ninguém pudesse opor-se a nossa união. Eu sou rico, querida Edvige, imensamente rico, mas como o são os senhores moldavos: rico em terras, em ganhos, em servidores. Agora bem, vendi por um milhão, terras, rebanhos e camponeses ao monastério de Hango. Deram-me trezentos mil francos em muitas pedras preciosas, cem mil francos em ouro, o resto em letras de mudança sobre Viena. Estará bem para você um milhão? 


    Apertei-lhe a mão. – Me bastaria só seu amor, Gregoriska. – Bem! Escute… amanhã vou ao monastério de Hango para tomar minhas últimas disposições com o superior. Ele tem cavalos preparados que nos esperarão das nove da manhã em adiante ocultos a cem passos de castelo. Depois do jantar, subirei de novo como hoje a sua câmara; como hoje apagará a luz; como hoje entrarei eu em seu aposento. Mas amanhã, em vez de sair sozinho, você me seguirá, sairemos pela porta que dá sobre os campos, encontraremos os cavalos, montaremos, e depois de amanhã pela manhã teremos percorrido trinta léguas. 


    -Oh! Por que não será já depois de amanhã! – Querida Edvige! Gregoriska me apertou sobre o peito, e nossos lábios se encontraram. Oh, havia dito ele, eu tinha aberto a porta de meu quarto a um homem de honra; mas compreendeu bem que se não lhe pertencia em corpo lhe pertencia em alma. 


    Transcorreu a noite sem que pudesse fechar os olhos. Via-me fugir com Gregoriska, sentia-me transportada por ele como já o tinha sido por Kostaki: só que aquela carreira terrível, fúnebre, permutava-se agora em um apuro suave e delicioso, ao que a velocidade do movimento adicionava deleite, pois também o movimento veloz tem um deleite próprio… 

    Nasceu o dia. Desci. Pareceu-me que o gesto com que me saudou Kostaki era ainda mais tétrico que de costume. Seu sorriso era irônico e ameaçador. Smeranda não me pareceu mudada. Depois, Gregoriska organizou seus cavalos. Parecia que Kostaki não dava nem a mínima atenção naquela ordem. Por volta das onze Gregoriska nos saudou, anunciando que estaria de volta de noite, e rogando a sua mãe que não o esperasse para jantar: depois, voltou-se para mim e me pediu desculpas. 

    Saiu. O olhar de seu irmão o seguiu até quando deixou a câmara, e nesse momento lhe brotou dos olhos um tal relâmpago de ódio que me estremeci. Podem imaginar-se com que inquietação passei aquele dia. A ninguém tinha contado nossos intentos, com muita dificuldade falei com Deus disso em minhas preces, e me parecia que todos os conheciam, que cada olhar posto em mim pudesse penetrar e ler no íntimo de meu coração… O jantar foi um suplício, áspero e taciturno, Kostaki, por costume, falava raramente: desta vez não disse mais que duas ou três palavras em moldavo a sua mãe, e sempre com tal acento que fazia estremecer. Quando me levantei para subir a meu aposento, Smeranda, como de 

    ordinário, abraçou-me, e ao me abraçar repetiu aquela frase que desde oito dias não lhe saía da boca: “Kostaki ama Edvige!“ 


    Esta frase me seguiu como uma ameaça até meu quarto, e até ali me parecia que uma voz fatal me sussurrasse ao ouvido: Kostaki ama Edvige! Agora o amor de Kostaki, Gregoriska dissera, equivalia à morte. Por volta das sete da noite vi Kostaki atravessar o pátio. 

    Voltou-se para ver-me, mas me afastei para que não pudesse me descobrir. Estava inquieta, pois por quanto podia eu ver desde minha janela, parecia-me que ele ia diretamente para a cavalariça. Arrisquei-me a correr os ferrolhos de uma das portas internas de meu quarto e passar à câmara vizinha, de onde podia ver tudo o que ele estava fazendo. Dirigia-se, mesmo, para a cavalariça, e quando chegou, tirou ele mesmo seu cavalo favorito, selando-o de sua própria mão com o cuidado de um homem que dá a maior importância a cada detalhe. Vestia o mesmo traje que quando me aparecesse a primeira vez, mas não levava outra arma que o sabre. Quando teve selado o cavalo, olhou outra vez para a janela de meu quarto. Não me havendo visto, saltou sobre a sela, fez-se abrir a mesma porta pela que saíra e devia voltar seu irmão, e se afastou a todo galope em direção do monastério de Hango. 


    Me apertou então terrivelmente o coração; um fatal pressentimento me dizia que Kostaki ia ao encontro de seu irmão. Estive na janela até quando pude distinguir o caminho que, a um quarto de légua de distância do castelo, fazia uma curva à esquerda e se perdia no começo de um bosque. Mas a noite se tornava cada vez mais fechada, e logo não pude distinguir mais o caminho. 


    Finalmente, a inquietação que me atormentava renovou, precisamente por excesso, minhas forças, e pois as primeiras notícias, de um ou de outro irmão, deviam me chegar na sala inferior, desci. 


    Olhei acima de tudo Smeranda. Na tranqüilidade de seu rosto adverti que não tinha nenhuma apreensão; dava ordens para a acostumado jantar, e os talheres dos irmãos estavam nos lugares habituais. Não me atrevi a interrogar a ninguém. Por outra parte, a quem tivesse podido me dirigir? No castelo ninguém, exceto Kostaki e Gregoriska, falavam as duas línguas que eu sabia. Sobressaltava-me ao mínimo rumor. Por costume, ìamos à mesa às nove. 

    Tinha descido à sala às oito e meia, e seguia com o olhar a agulha dos minutos, cujo avanço era quase visível sobre o amplo quadrante do relógio. A viajante agulha transitou a distância que nos separava do quarto de hora. 


    O quarto bateu, e as vibrações ressoaram profundas e tristes; em seguida, a agulha continuou seu girar silencioso, e a vi percorrer de novo a distância com a regularidade e a lentidão da ponta de um compasso. Alguns minutos antes de dar as nove me pareceu-me ouvir o esperneio de um cavalo no pátio. Ouviu-o também Smeranda, e voltou o rosto para a janela: mas a noite era muito escura para poder distinguir objeto algum. Oh! Se eu fosse mais cuidadosa naquele momento, quão disposta teria adivinhado o que acontecia meu coração… 

    Ouviu-se o espernear de um só cavalo, e era coisa muito natural, pois estava eu bem segura de que teria retornado um só cavaleiro. Mas qual? Ressoaram alguns passos no hall; passos lentos, como os de um homem que caminha hesitando: cada um deles me parecia apertar o coração. A porta se abriu, e na escuridão vi delinear-se uma sombra. 


    A sombra se deteve um instante na porta; meu coração ficou em suspense. A sombra avançou, e à medida que entrava no círculo da luz, recuperava eu o fôlego. Reconheci Grecoriska. Alguns momentos mais, e o coração me quebrava. Reconheci Gregoriska, mas estava pálido como um cadáver. Com apenas um olhar se podia adivinhar que tinha acontecido algo terrível. 

    – É você, Kostaki? – perguntou Smeranda. – Não, minha mãe – respondeu Gregoriska com voz surda. – Ah, enfim! – disse ela – e desde quando a sua mãe tem que lhe esperar? – Minha mãe – disse Gregoriska olhando o relógio – são nove horas. E efetivamente nesse mesmo momento soaram as nove. – É verdade – disse Smeranda -. Onde está seu irmão? Em minha mente apresentou o pensamento de que Deus tinha feito a mesma pergunta a Caim. Gregoriska não respondeu. 

    – Ninguém viu até agora Kostaki? – perguntou Smeranda. O vatar, ou seja o mordomo, foi informar-se. – Por volta das sete – disse ele de volta – o conde esteve nas cavalariças, selou com própria mão seu cavalo, e partiu pelo caminho de Hango. 

    Nesse instante meus olhos se encontraram com os de Gregoriska. Não sei se foi realidade ou alucinação, mas me pareceu notar uma gota de sangue em meio de sua frente. Levei lentamente o dedo à frente indicando o ponto onde acreditava eu ver aquela mancha, Gregoriska me compreendeu: tirou o lenço e se limpou. 

    – Sim, sim – murmurou Smeranda – terá encontrado algum lobo ou urso, e se terá entretido em persegui-lo. Aqui está por que um filho faz esperar a sua mãe. Onde o deixou, Gregoriska? 

    – Minha mãe – respondeu este com voz comovida mas firme-meu irmão e eu não saímos juntos. 

    – Bem – disse Smeranda -. Vamos à mesa, cada um fique em seu lugar, e logo fechem as portas; quem está fora, dormirá lá fora. 

    As duas primeiras partes destas ordens foram estritamente executadas. Smeranda ficou em seu lugar, Gregoriska se sentou à sua direita, eu à sua esquerda. Depois os servidores saíram para cumprir a terceira parte das ordens, quer dizer para fechar as portas do castelo. Nesse momento mesmo se escutou um grande estrépito no pátio, e um servidor entrou espantado dizendo: – Princesa, entrou neste instante ao pátio o cavalo do conde Kostaki, só e inteiramente coberto de sangue. 

    – Oh! -murmurou Smeranda levantando-se pálida e ameaçadora – de tal modo voltou uma noite ao castelo o cavalo de seu pai. 

    Dirigiu um olhar a Gregoriska: não estava pálido já, estava lívido. O cavalo do conde Koproli, em efeito, tinha retornado uma noite ao castelo todo manchado de sangue, e uma hora depois os servidores encontraram e trouxeram o corpo do amo coberto de feridas. Smeranda tomou uma tocha de mãos de um criado, aproximou-se da porta e abrindo-a, desceu ao pátio. O cavalo, espantado, era retido por três ou quatro serviçais que faziam toda classe de esforços para tranqüilizá-lo. Smeranda se aproximou do animal, examinou o sangue que cobria a sela. 

    – Kostaki foi morto – disse ela – em duelo e por um só inimigo. Procurem seu corpo, meus filhos, mais tarde procuraremos o homicida. 

    Assim como o cavalo tinha entrado pela porta de Hango, todos os servidores se precipitaram fora por ela, e se viram suas tochas perder-se na campina e entrar no profundo do bosque, como em uma formosa noite de estio se vêem cintilar as vaga-lumes na planície da Niza ou de Pisa. 


    Smeranda, como se tivesse estado certa de que a busca não duraria muito, aguardou erguida na porta. Nenhuma lágrima umedecia as faces daquela mãe desolada, entretanto se via que o desespero rugia tempestuosa no profundo de seu coração… Gregoriska estava detrás dela, e eu perto de Gregoriska. 


    Ao abandonar a sala, pareceu querer me oferecer seu braço, mas não se atreveu a fazê-lo. Desde aí em perto de um quarto de hora se viu aparecer na curva do caminho uma tocha, logo uma segunda, uma terceira, e finalmente se distinguiram todas. Só que agora, em vez de dispersar-se estavam agrupadas em torno de um centro comum. Esse centro era, como bem logo se pôde ver, parelhas com um homem estendido sobre elas. 

    O fúnebre cortejo avançava lentamente, mas ao cabo de dez minutos quem o levava tiraram o chapéu instintivamente a cabeça, e taciturnos entraram no pátio, onde foi depositado o corpo. Então, com um majestoso gesto, Smeranda ordenou que lhe dessem passagem, e aproximando-se do cadáver pôs um joelho em terra ante ele, apartou os cabelos que lhe formavam um véu sobre o rosto, e esteve contemplando-o longamente, sem derramar uma lágrima. Abriu-lhe logo a roupa moldava e afastou camisa ensangüentada. A ferida se achava na parte mão direita do peito. Devia ter sido feita com uma folha reta e de dois fios. Recordei ter visto essa manhã mesma no flanco de Gregoriska a faca de caça que servia de baioneta a sua carabina. Procurei com os olhos a arma: não estava já ali. 


    Smeranda se fez levar água, molhou nela seu lenço e lavou a chaga. Um sangue puro e morno ainda avermelhou os lábios da ferida. O espetáculo que tinha sob os olhos era a um tempo atroz e sublime. Aquela vasta sala defumada pelas tochas de resina, aqueles rostos bárbaros, aqueles olhos cintilantes de ferocidade, aquelas roupagens singulares, aquela mãe que, à vista do sangue, calculava quanto tempo fazia que a morte levara seu filho, aquele profundo silêncio interrompido só pelos soluços dos bandidos cujo chefe era Kostaki, tudo isso, repito, tinha em si algo de atroz e de sublime. Smeranda aproximou seus lábios à frente de seu filho, e se levantou; em seguida, tornando-se às costas as largas tranças de brancos cabelos que lhe tinham desunido: – Gregoriska! – disse.Gregoriska estremeceu, sacudiu a cabeça e saindo de sua atonia: – Minha mãe – respondeu. 


    – Venha aqui, meu filho, e me escute. Gregoriska obedeceu, tremendo, mas obedeceu. À medida que se aproximava do corpo de Kostaki, o sangue brotava da ferida mais abundante e mais vermelha. Felizmente Smeranda não olhava mais para aquele lado, pois à vista daquele sangue não teria tido já necessidade de procurar o assassino. 

    – Gregoriska – disse ela – bem sei que Kostaki e você não se olhavam com bons olhos, bem sei que você é um Waivady por parte de seu pai, e ele um Koproli por parte do dele, mas por parte de mãe são ambos do sangue dos Brankovan. Sei que você é um homem de cidade ocidental e ele um filho das montanhas orientais; mas pelo sei o que os levou a ambos, são irmãos. Pois bem! Gregoriska, quero saber se meu filho será levado a jazer junto à tumba de seu pai sem que tenha sido pronunciado o juramento, se eu enfim poderei chorar tranqüila, como mulher, sabendo que você castigará o homicida. 


    – Me diga, senhora, o nome do homicida, e ordena; juro que dentro de uma hora, se você o exigir, terá deixado de viver. 

    – Jure sob pena de minha maldição, entende, meu filho? Jure que o assassino morrerá, que não deixará pedra sobre pedra de sua casa: que sua mãe, seus filhos, seus irmãos, sua mulher ou sua prometida perecerão por sua mão? Jure, e, ao jurar, invoque sobre você a cólera celeste se faltar à sacra promessa. Se faltar a esta sacra promessa, padecerá a miséria, a abominação dos amigos, a maldição de sua mãe. 


    Gregoriska estendeu a mão sobre o cadáver, e disse: – Juro que o assassino morrerá – disse. 

    Aquele singular juramento, cujo verdadeiro sentido eu sozinha e o morto talvez podíamos compreender, vi ou acreditei ver cumprir um horrendo prodígio. Os olhos do cadáver se abriram, fixaram-se sobre mim mais vivos que nunca, e, como se aquele olhar tivesse sido evidente, senti me penetrar até o coração um ferro candente. Não resisti tanto dor, e desmaiei. 

    Quando recuperei os sentidos me encontrei deitada sobre o leito de meu quarto: uma das duas mulheres velava perto de mim. Perguntei onde estava Smeranda; foi respondido que velava junto ao corpo de seu filho. Perguntei onde estava Gregoriska: me disse que no monastério do Hango. 


    Agora não era preciso fugir: não tinha morrido Kostaki? Não se devia já falar de bodas, eu podia me casar com o fratricida? Transcorreram assim três dias e três noites em meio de estranhos sonhos. Na vigília e no sonho via sempre aqueles dois olhos vivos nesse rosto de morto: era uma visão horrenda. Kostaki devia ser sepultado ao terceiro dia. 

    Pela manhã foi-me emprestado de parte de Smeranda um vestido completo de viúva. Vesti isso e desci. A casa parecia vazia, todos estavam na capela. Encaminhei-me para ela, e ao tempo que transpunha sua soleira, veio a meu encontro Smeranda a quem não tinha visto há três dias. 

    Disseram-me que era a imagem da Dor. Com lento movimento como o de uma estátua, pousou sobre minha frente seus lábios, e com voz que parecia sair já da tumba, pronunciou as habituais palavras: Kostaki te ama!… Não se podem imaginar o efeito que produziram em mim aquelas palavras. Esse protesto de amor expresso no presente e não no passado, que dizia te ama, e não te amava; esse amor de ultratumba que vinha me buscar na vida, fez sobre meu coração uma impressão terrível. Ao mesmo tempo se apoderava de mim um estranho sentimento, tal como se fosse verdadeiramente a mulher daquele que tinha morrido, não a prometida do vivo. Aquele ataúde atraía meu pesar, dolorosamente, como a serpente atrai ao pássaro por ela fascinado. 


    Procurei com os olhos Gregoriska; vi-o pálido e erguido contra uma coluna: olhava para o alto. Não sei dizer se me viu. Os monges do convento de Hango rodeavam o corpo cantando salmos do rito grego, às vezes harmoniosos, com freqüência monótonos. Também eu quis orar, mas a prece expirava em meus lábios; minha mente estava tão confusa que me parecia antes presenciar um consistório de demônios que uma reunião de monges. Quando foi tirado o corpo dali, quis segui-lo, mas me faltaram forças. Senti as pernas moles, e me apoiei na porta. Então Smeranda se aproximou e fez um gesto a Gregoriska. Este se aproximou. Smeranda me falou em moldavo: – Minha mãe me ordena lhe repetir palavra por palavra o que vai dizer – expressou-me Gregoriska. 


    Smeranda falou de novo; quando tiver terminado: – Hei aqui as palavras de minha mãe – disse ele – “Chore a meu filho, Edvige, seu o amava, certo? Agradeço-lhe as lágrimas e seu amor; de agora em diante tem uma pátria, uma mãe, uma família. Derramemos as muitas lágrimas devidas aos mortos, logo sejamos de novo dignas ambas daquele que já não é… eu sua mãe, você sua mulher! Adeus, volta para seu quarto; eu acompanharei a meu filho até sua última morada. Quando retornar, encerrarei-me em minha casa com minha dor, e me voltará a ver só quando o tiver vencido. Fique tranqüila, matarei essa dor, porque não quero que me mate . 


    A estas palavras da Smeranda, traduzidas por Gregoriska, não pude responder a não ser com um gemido. Subi a meu quarto: o fúnebre cortejo se afastou, e o vi desaparecer no ângulo do caminho. O convento de Hango estava a só meia légua de distância do castelo em linha reta; mas os obstáculos faziam dar muitas voltas ao caminho, de modo que se empregavam duas horas em percorrer aquele espaço. Era o mês de novembro. As jornadas se tornaram frias e breves, e às cinco já era noite escura. Por volta das sete vi aparecer as tochas; o cortejo fúnebre tinha retornado. O cadáver repousava na tumba de seus pais; tudo estava concluído. 


    Disse-lhes já em que singular pesadelo vivia, presa logo do fatal sucesso que inundasse a todos no duelo, e sobretudo depois que vi abrir-se e fixar-se sobre mim os olhos fechados do morto. A noite que seguiu, oprimida pelas emoções experimentadas durante o dia, estava ainda mais triste. Escutava soar todas as horas do relógio do castelo, e à medida que o tempo fugitivo me aproximava do momento em que tinha morrido Kostaki, sentia-me cada vez mais desconsolada. Soaram às nove menos um quarto. Então se apoderou de mim uma estranha sensação. Corria-me por todo o corpo um terror, um estremecimento que me gelava; logo uma espécie de sonho invencível entorpece meus sentidos, oprimia-me o peito, e me velava os olhos. Estendi o braço e fui cair de costas sobre o leito. Entretanto não tinha perdido totalmente os sentidos como para que não pudesse ouvir uns passos aproximando-se de minha porta, depois me pareceu abri-la, em seguida não vi nem escutei mais nada. Só senti uma viva dor no pescoço. Logo depois, caí em profunda letargia. 


    Despertei a meia-noite; meu abajur ardia; tentei me levantar, mas estava tão fraca que tive que repetir a tentativa duas vezes. Finalmente consegui superar minha debilidade, e como acordada, sentia no pescoço a mesma dor que experimentara no sonho, arrastei-me, me apoiando no muro, até o espelho, e olhei. Algo que assemelhava a picada de um alfinete marcava a artéria de meu pescoço. Acreditei que algum inseto me tivesse picado durante o sonho, e como me sentia abatida pela extenuação, deitei-me de novo e dormi. À manhã despertei como de costume; mas então senti uma tal debilidade como senti só uma vez em minha vida, à manhã seguinte de um dia em que fora sangrada. Olhei-me no espelho, e me surpreendi de minha extraordinária palidez. A jornada transcorreu triste e escura; experimentava eu uma coisa singular; quando me encontrava em um lugar sentia necessidade de ficar ali: qualquer mudança de posição me fatigava. 

    Chegada a noite, trouxeram-me o abajur; as minhas serviçais, conforme podia eu compreender por seus gestos, ofereceram-se a ficar comigo. Agradeci e saíram. À mesma hora que a noite precedente experimentei os mesmos sintomas. 


    Quis me levantar então e pedir ajuda; mas não pude chegar à saída. Ouvi vagamente alguns passos que ressoaram pelo quarto, abriu-se a porta, mas eu não via nem escutava nada, e, como a noite anterior, caí de costas sobre o leito. Como no dia anterior experimentei uma dor no mesmo lugar. Como no dia anterior despertei a meia-noite; mas mais pálida e mais fraco ainda. Ao dia seguinte se renovou o horrível pesadelo. 


    Estava decidida a descer aos aposentos de Smeranda por mais fraca que me sentisse, quando entrou no quarto uma de minhas servas e pronunciou o nome de Gregoriska. O jovem a seguia. Tentei me levantar para o receber, mas voltei a cair em minha poltrona. Ele deu um grito, e quis lançar-se para mim, mas tive a força de estender o braço para ele. 

    – O que faz aqui? – perguntei-lhe. – Ah! – disse ele – venho lhe dizer adeus! Dizer-lhe que abandono este mundo que me é insuportável sem seu amor e sua presença e anunciar que me retiro ao monastério de Hango. 

    – Gregoriska – respondi-lhe – pode estar privado de minha presença, mas não de meu amor. Eu o amo, sempre amarei, e minha maior tristeza é que este amor seja doravante quase um delito. 

    – Então, posso esperar que vai pedir-me que fique, Edvige? – Sim, mas não o poderei fazer ainda – repliquei eu com um sorriso triste. – Por que não? Mas na verdade a vejo muito abatida. Diga-me, o que tem? Por que está tão pálida? 

    – Porque… Deus tem certamente piedade de mim, e Ele deve estar me chamando. 

    Gregoriska se aproximou, tomou-me a mão que não tive força de sustentar, me olhando fixo no rosto: – Essa palidez não é natural, Edvige – disse – qual é a causa? – Se lhe dissesse isso, Gregoriska, ia achar que estou louca. 

    – Não, não, fale, Edvige, suplico-lhe. Estamos em um país que não se parece com nenhum outro país, em uma família que não se assemelha a nenhuma outra família. Diga, conte-me tudo, por favor. 


    Contei-lhe tudo: a estranha alucinação que me possuía à hora em que Kostaki devia ter morrido, esse terror, essa letargia, esse frio glacial, essa prostração que me fazia cair de costas sobre o leito, esse ruído de passos que eu parecia ouvir, essa porta que acreditava abrir-se, e finalmente essa aguda dor no pescoço, seguida de uma palidez e de uma debilidade sempre crescentes. Acreditava eu que meu relato pareceria a Gregoriska um começo de loucura, e o terminei com certo acanhamento, quando notei, pelo contrário, que ele me prestava grande atenção. 


    Quando terminei de falar, Gregoriska refletiu um instante. – De maneira – perguntou ele – que você vai dormir, cada noite, às nove menos um quarto? 

    – Sim, por muitos que sejam os esforços que faça para resistir ao sonho. – E a essa mesma hora você acredita ver abrir-se a porta? – Sim, embora jogue o ferrolho. – E então experimenta uma aguda dor no pescoço? – Sim, embora seja apenas visível o sinal da ferida. – Posso ver? Dobrei a cabeça para trás. Ele Examinou a cicatriz. – Edvige – disse Gregoriska depois de um momento de reflexão-, você confia em mim? – Ainda me pergunta? – reposndi. – Crê em minha palavra? – Como creio no Evangelho. – Bem, Edvige, por minha fé, juro-lhe que não tem oito dias de vida se não aceitar fazer, hoje mesmo, o que vou lhe dizer. 

    – E se concordar? – Se concordar, talvez vai se salvar. – Talvez? – ele se calou-. Aconteça o que acontecer, Gregoriska – continuei dizendo – farei o que me disser para fazer. 

    – Escute então – disse ele – e acima de tudo não se espante. Em seu país, como na Hungria e em nossa Romênia, existe uma tradição. 

    Tremi porque essa tradição já tinha voltado para minha memória. – Ah! Sabe o que quero dizer? – Sim – respondi – na Polônia vi algumas pessoas padecerem da horrenda coisa. – Quer dizer, do vampiro, não é verdade?

    – Sim, menina ainda, aconteceu-me ver desenterrar no cemitério de uma aldeia pertencente a meu pai, quarenta pessoas mortas em quinze dias, sem que se tivesse podido em nenhuma ocasião saber causa de sua morte. Dezessete desses cadáveres expuseram todos os sinais de vampirismo, quer dizer foram encontrados frescos como se estivessem estado vivos. Os outros eram suas vítimas. 

    – E o que se fez para libertar a região disso? – Foram-lhes cravadas estacas nos corações, e então os queimaram. – Sim, é o que se costuma fazer, mas para nós isso não basta. Para a libertar de seu fantasma, antes quero conhecê-lo, e por Deus! Hei de conhecê-lo. Sim, e se for preciso, lutarei corpo a corpo com ele, seja quem for. 

    – Oh, Gregoriska! – exclamei espantada. Disse: – Seja quem for, repito-o. Mas para levar a bom fim esta terrível aventura, é necessário que faça tudo o que lhe exigirei. 

    – Farei. – Esteja preparada às sete. Desça à capela, mas desça sozinha; é necessário que vença a sua debilidade, Edvige. Ali receberemos a bênção nupcial. Consinta isso, minha amada: para velar por você. Então subiremos de novo a este quarto, e então veremos. 

    – Gregoriska – exclamei – se for ele, vai matar você! – Não tema, amada Edvige. Apenas consita. – Sabe bem que farei tudo o que quiser, Gregoriska. – Então, até mais à noite. – Sim, faça o que achar mais oportuno, e vou fazer o melhor que eu puder. Adeus. Ele se foi. Um quarto de hora depois, vi um cavalheiro precipitar-se a toda carreira pelo caminho do monastério. Era ele. 


    Apenas o perdi de vista, caí de joelhos e orei, orei como já não se reza em nossas terras sem fé, e aguardei às sete, oferecendo a Deus e aos Santos o holocausto de meus pensamentos; não me levantei a não ser ao soar as sete horas. Estava fraca como uma moribunda, pálida como uma morta. Joguei sobre a cabeça um grande véu negro, desci a escada, me apoiando no muro, e me dirigi à capela sem encontrar ninguém. 


    Gregoriska me esperava com o pai Basílio, prior do monastério de Hango. Rodeava uma espada Santa, relíquia de um antigo cruzado que assistiu a tomada de Constantinopla com Ville-Hardouin e Baldouin de Flandes. 

    – Edvige – disse ele batendo com a mão na sua espada – com a ajuda de Deus, esta romperá o encantamento que ameaça sua vida. Se aproxime, pois, resolutamente. Este santo homem, que já recebeu minha confissão, receberá nossos juramentos. 


    Começou a cerimônia. Talvez nunca outra foi mais singela e a um tempo mais solene. Ninguém ajudava o monge, ele mesmo nos pôs sobre a cabeça as coroas nupciais. Vestidos ambos de luto, giramos em torno do altar com um círio na mão; então o monge, depois de pronunciar as palavras sagradas, adicionou: – Vão-se agora, meus filhos, e o Senhor lhes dê força e valor para lutar contra o inimigo do gênero humano. Armados da inocência de vocês e defendidos por Sua justiça, vencerão o demônio. Vão, e abençoados sejam. 


    Beijamos os Livros Santos e saímos da capela. Então pela primeira vez me apoiei no braço da Gregoriska, e me pareceu que ao contato daquele braço forte, daquele nobre coração, a vida voltava para minhas veias. Estava segura do triunfo, porque Gregoriska estava comigo. Subimos ao meu quarto. Soaram as badaladas das oito e meia. 

    – Edvige – disse me então Gregoriska – não temos tempo a perder. Quer dormir, como de costume, para que tudo aconteça durante seu sonho, ou permanecer acordada e vê-lo? 

    – Junto com você não temo nada, quero permanecer acordada e ver tudo. Gregoriska extraiu de seu peito um raminho abençoado, úmido ainda de água 

    benta, e me deu: – Tome então – disse – deite-se em seu leito, recite as preces da Virgem e aguarde sem temor. Deus está conosco. Cuide acima de tudo de não deixar cair o raminho, pois com ele poderá mandar até no inferno. Não me chame, não dê nenhum grito, reze, confie e aguarde. 

    Deitei-me. Cruzei as mãos sobre o seio, e pus sobre ele o raminho benta. Gregoriska se ocultou atrás do trono de que já falei. Eu contava os minutos, e com certeza meu marido fazia o mesmo. 


    Soaram os três quartos. Vibrava ainda o tinido do relógio, quando me senti presa do mesmo entorpecimento, do mesmo terror e do mesmo frio glacial dos dias precedentes. Aproximei de meus lábios o ramo bendito, e aquela primeira sensação se desvaneceu. Ouvi então muito claro o ruído daquele fenômeno que, lento e cuidadoso, subia os degraus da escada e se aproximava da porta. Logo a porta se abriu, sem ruído, como que empurrada por sobrenatural força, e então… 


    A voz se apagou pela metade, quase sufocada na garganta da narradora. E então -continuou fazendo um esforço – vi Kostaki, pálido como me surgiu nas montanhas, os longos cabelos negros, caindo sobre as costas, gotejava sangue. Vestia-se como de costume, mas tinha o peito descoberto e deixava ver sua sangrem ferida. Tudo estava morto, tudo era cadáver… carne, roupas, porte… somente os olhos, aqueles terríveis olhos, estavam vivos. 

    Ante aquela aparição, sinto que me fogem as palavras! Em vez de sentir aumentar-me o medo, senti crescer a minha coragem. Deus me enviou isso para decidir minha situação e me defender do inferno. 


    Ao primeiro passo que o espectro deu para meu leito, cravei-lhe audaciosamente os olhos no rosto e lhe apresentei o ramo bendito. O espectro tentou avançar, mas um poder mais forte que ele o reteve no lugar. Parou. 


    – Ah… – murmurou – ela não está dormindo, sabe tudo. Pronunciou ele estas palavras em língua moldava, e entretanto as compreendi eu como se tivessem sido pronunciadas minha própria língua. 


    Estávamos assim, um frente ao outro, o fantasma e eu, sem que eu pudesse afastar meus olhares dos seus, quando com o canto dos olhos vi Gregoriska sair detrás do baldaquino, semelhante ao anjo exterminador e com a espada no punho. Fez o sinal da cruz com a mão esquerda, e avançou lentamente com a espada erguida para o fantasma. Este, ao ver o irmão, desembainhou também o sabre, soltando uma horrível gargalhada. Mas apenas seu sabre tocou o ferro bendito, o braço lhe caiu inerte junto ao corpo. Kostaki exalou um suspiro de raiva e desespero. 

    – O que quer de mim? – perguntou ao irmão. – Em nome do Deus verdadeiro e vivente – disse Gregoriska – eu ordeno que me responda. 

    – Pergunte – disse o espectro chiando os dentes. – Peguei você em uma emboscada, quando estava vivo? – Não. – Assaltei-o? – Não. – Feri-o? – Não. – Jogou-se você mesmo sobre minha espada e você mesmo correu ao encontro da morte. Então, ante Deus e os homens não sou culpado do delito de fratricídio. Então, você não recebeu uma missão divina, mas sim infernal. E saiu de sua tumba não como uma sombra santa, mas sim como um espectro maldito, e voltará para sua tumba. – Com ela, eu volto, sim! – Exclamou Kostaki fazendo um supremo esforço para apoderar-se de mim. 

    – Voltará lá sozinho! – exclamou por sua vez Gregoriska -. Esta mulher me pertence. 

    E ao pronunciar tais palavras tocou com a ponta do ferro bendito a chaga viva. 

    Kostaki soltou um grito como se lhe houvessem metido uma espada de fogo e, levando uma mão ao peito, deu um passo atrás. Ao mesmo tempo, Gregoriska, com um movimento que parecia coordenado com o do irmão, deu um passo adiante; então, com os olhos fixos nos olhos do morto, com a espada contra o peito de seu irmão, começou uma marcha lenta, terrível, solene. Era algo semelhante à passagem de 

    dom Juan e o comendador. 


    O espectro retrocedia sob a pressão da sacra espada, sob a vontade irresistível do campeão de Deus, que o seguia passo a passo, sem pronunciar uma palavra, ambos os ofegantes, ambos os rostos lívidos, o vivo avançando contra o morto e obrigando-o a abandonar o castelo, sua anterior morada, para voltar para a tumba, sua morada futura… Asseguro-o, por minha fé, era coisa horrenda de ver-se! E entretanto, eu mesma, movida por uma força superior, invisível, desconhecida, sem saber o que fazia, levantei-me e os segui. 


    Descemos a escada, iluminados só pelas ardentes pupilas de Kostaki. Atravessamos a galeria e o pátio, e logo transpusemos a porta, sempre com o mesmo passo lento, o espectro retrocedendo, Gregoriska com o braço erguido, eu detrás deles. 

    Esta marcha fantástica durou uma hora, pois era necessário voltar o cadáver para sua tumba, mas em vez de seguir o caminho acostumado, Kostaki e Gregoriska atravessaram o terreno em linha reta, desviando-se dos obstáculos, que para eles já não existiam; ante eles o chão se aplainava, os riachos secavam, as árvores se afastavam, as rochas se abriam. O mesmo milagre se operava para mim: só que o céu me parecia todo coberto de um negro véu, as luas e as estrelas tinham desaparecido e em meio das trevas só via resplandecer os olhos chamejantes do vampiro. 


    Chegamos de tal modo a Hango e passamos através da sebe viva que servia de cerco ao cemitério. Apenas entramos, distingui entre as sombras a tumba de Kostaki, junto à de seu pai, não sabia que estava ali e entretanto a reconheci. Nada me era desconhecido naquela noite. 

    Gregoriska parou próximo da fossa aberta. – Kostaki – disse ele – Está tudo terminado para você, e uma voz do céu me avisa que pode conceder o perdão se você se arrepender, promete retornar à tumba, não sair mais dela e consagrar a Deus o culto que consagrou ao inferno. 

    – Não! – respondeu Kostaki. – Arrepende-se? – perguntou Gregoriska. – Não! – Pela última vez, arrepende-se? – Não! – Bem! Invoque então a ajuda de Satanás, como invoco eu a de Deus, e veremos quem sairá desta vez ainda vitorioso. 


    Ressoaram simultaneamente dois gritos, os ferros se cruzaram despedindo centelhas, e a luta durou um minuto que me pareceu um século. Kostaki caiu, vi elevar-se a terrível espada de seu irmão, introduzir-se no seu corpo, e cravar esse corpo sobre a terra recém removida. Um último grito que nada tinha de humano se elevou pelo ar. 

    Acorri: Gregoriska estava em pé, mas vacilante. Ajudei-o, apoiando-o com meus braços. 

    – Está ferido? – perguntei-lhe ansiosamente. – Não – respondeu-me – mas em tal duelo, querida Edvige, a luta, não a ferida, é o que mata. Lutei com a morte, e a ela pertenço. 

    – Meu querido – exclamei – se afaste daqui e voltemos à vida. – Não, esta é minha tumba, Edvige, mas não percamos tempo. Toma um pouco desta terra impregnada de seu sangue e coloque-a na mordida que ele lhe fez; é o único meio que pode preservá-la no futuro de seu horrendo amor. 


    Obedeci tremendo. Inclinei-me para recolher aquela terra sangrenta, e ao me dobrar vi o cadáver ao chão: a espada bendita lhe atravessava o coração, e um sangue escuro lhe brotava abundante da ferida, como se tivesse morrido naquele momento. Amassei um pouco d eterra com sangue, e apliquei na minha ferida o espantoso talismã. 

    – Agora, minha adorada Edvige – disse Gregoriska com voz sumida – escute bem meu último conselho. Abandone o país assim que possível. Só a distância é segura para você. O pai Basilio recebeu hoje minha suprema vontade e a cumprirá. Edvige, um beijo! O último, o único beijo! Edvige, vou morrer… 


    E assim dizendo, Gregoriska caiu junto ao irmão. Em qualquer outra circunstância, em meio daquele cemitério, perto daquela tumba aberta, com aqueles dois cadáveres jazendo um junto ao outro, eu teria enlouquecido. Mas Deus me tinha inspirado uma força igual aos acontecimentos, dos que Ele me fizera não só testemunha mas também atriz. 

    Enquanto olhava ao meu redor em busca de ajuda, vi abrir-se a porta do monastério e avançarem dois monges conduzidos pelo pai Basílio, levando círios ardentes e cantando as preces de defuntos. O pai Basílio tinha chegado fazia pouco ao convento, e prevendo o acontecido, dirigia-se ao cemitério com toda a congregação. Encontrou-me viva perto dos dois mortos. 


    Uma última convulsão tinha torcido o rosto do Kostaki. Gregoriska em compensação, estava tranqüilo e quase sorridente. 

    Foi sepultado, como desejava, junto ao irmão, o cristão junto ao maldito. Smeranda, quando teve notícia da nova desdita, quis me ver, foi me buscar no convento de Hango, e soube de meus lábios tudo quanto tinha acontecido naquela tremenda noite. 

    Referi-lhe todos os detalhes da fantástica história, mas ela me escutou, como já me escutasse Gregoriska, sem mostrar estupor nem espanto. 

    – Edvige – respondeu-me ela depois de um instante de silêncio – por muito estranho que seja o que me contou, disse só a verdade. A estirpe dos Brankovan esta maldita até a terceira e quarta geração, porque um Brankovan matou um sacerdote. O término da maldição chegou, pois você, embora esposa, é virgem, e em mim se extingue a linhagem. Se meu filho lhe deixou uma boa herança, toma-a. Depois de minha morte, salvo os piores legados que tenho a intenção de fazer, receberá o resto de meus bens. E agora siga o conselho de seu marido. Volte o mais rápido que puder para aquelas terras onde Deus não permite que se cumpram tão horrendos prodígios. Não necessito de ninguém para chorar comigo por meus filhos. Minha dor quer solidão. Adeus, não se preocupe comigo. Minha sorte futura pertence só a mim e a Deus. 

    E logo depois de me beijar na fronte como de costume, deixou-me e foi encerrar-se no castelo de Brankovan. 


    Oito dias depois parti para a França. Como esperava Gregoriska, minhas noites não foram mais perturbadas pelo terrível fantasma. 


    Restabeleceu-se minha saúde, e daquela aventura não ficou outra lembrança, exceto esta palidez mortal que costuma acompanhar até o fim dos seus dias qualquer ser humano que tenha sofrido o beijo de um vampiro.